A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos Recursos Extraordinários nº 1.037.396 (Tema 987) e nº 1.057.258 (Tema 533), com repercussão geral reconhecida, representa um marco paradigmático no debate sobre a responsabilidade civil de plataformas digitais por conteúdos de terceiros. A Corte, por maioria, declarou a inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), flexibilizando a exigência de ordem judicial para que tais plataformas sejam responsabilizadas civilmente por conteúdos ilícitos.
A nova interpretação ampliou o escopo de responsabilização, estabelecendo que as big techs podem ser responsabilizadas mesmo sem ordem judicial, em casos de crimes graves e atos ilícitos evidentes, especialmente em situações envolvendo impulsionamento pago, redes artificiais de desinformação (bots), e crimes específicos como terrorismo, incitação ao suicídio, pornografia infantil, racismo, violência contra a mulher, tráfico de pessoas e atos antidemocráticos.
No entanto, a mesma decisão afirma que sua eficácia não alcança as disposições específicas da legislação eleitoral nem os atos normativos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), conforme registrado expressamente na tese fixada. Aparentemente, essa ressalva buscou preservar a autonomia da Justiça Eleitoral, que detém competência normativa própria nos termos do art. 23, IX, do Código Eleitoral, e regulamenta a propaganda eleitoral nas redes sociais por meio da Resolução TSE nº 23.610/2019.
Contudo, nota-se uma inconsistência normativa e dogmática relevante: vários dos ilícitos listados pelo STF como hipóteses de responsabilização sem necessidade de ordem judicial possuem tipificação penal e eleitoral simultaneamente, o que gera tensões hermenêuticas e institucionais. É o caso do crime de violência política contra a mulher, previsto no art. 326-B do Código Eleitoral e também abordado na Lei nº 14.192/2021, que o STF expressamente incluiu em seu rol de ilicitudes que impõem um "dever de cuidado" às plataformas. Outro exemplo é o art. 359-N do Código Penal, que trata da abolição violenta do Estado democrático de Direito, frequentemente associado a atos antidemocráticos com impactos eleitorais, especialmente em períodos de campanhas polarizadas.
A coexistência dessas normas em distintos ramos do Direito – penal comum e eleitoral – evidencia o risco de interferência jurisdicional cruzada. De um lado, o STF pretende proteger bens jurídicos constitucionais ao ampliar a responsabilização de plataformas. De outro, preserva-se formalmente a competência eleitoral, mas sem impedir que o novo regime incida, na prática, sobre ilícitos eleitorais relevantes, em especial aqueles associados à violência política, desinformação e ataques à lisura do processo eleitoral.
Nesse contexto, é possível identificar uma tensão entre ativismo judicial e separação dos poderes, já que a Corte Suprema, ao reinterpretar amplamente um dispositivo legal infraconstitucional, invadiu, ao menos em parte, a esfera de atuação do Poder Legislativo, conforme pontuado nos votos divergentes dos Ministros André Mendonça, Edson Fachin e Nunes Marques. Além disso, o novo regime estabelecido altera substancialmente as balizas regulatórias para o enfrentamento da desinformação, o que pode afetar diretamente a atuação da Justiça Eleitoral, ainda que não tenha sido essa a intenção expressa da decisão.
Do ponto de vista comparado, tal movimento pode ser compreendido como um exemplo de judicialização expansiva da política (HIRSCHL, 2004), em que tribunais constitucionais, diante da omissão legislativa e da ineficiência regulatória, passam a ocupar espaços normativos centrais na formulação de políticas públicas e modelos regulatórios digitais. Embora motivado pela proteção de direitos fundamentais e do regime democrático, esse fenômeno acarreta efeitos colaterais relevantes, como a potencial deslegitimação da atuação judicial perante os demais Poderes e a sociedade (GARAPON, 2011).
Essa tensão pode ser descrita como backlash institucional, ou seja, uma reação adversa à atuação judicial que extrapola sua função tradicional de intérprete da Constituição, podendo gerar movimentos legislativos de resistência, esvaziamento ou revisão da decisão judicial, como já ocorreu em outras jurisdições ao redor do mundo.
Assim, o caso brasileiro oferece um campo fértil para o estudo dos limites do ativismo judicial no contexto do constitucionalismo democrático e do equilíbrio entre Poderes, especialmente quando se trata de matérias sensíveis como liberdade de expressão, desinformação e integridade do processo eleitoral.
Referências
HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitutionalism. Harvard University Press, 2004.
GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia: O Guardião das Promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from the Courts. Princeton University Press, 2005.
RESOLUÇÃO TSE Nº 23.610/2019 (Regulamenta a propaganda eleitoral e as condutas ilícitas em campanha).
STF. RE 1.037.396 e RE 1.057.258. Julgamento de 26/06/2025.