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Algoritmo predador: como as plataformas se tornaram cúmplices da exploração infantil

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13/08/2025 às 08:15
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A denúncia de Felca não expôs apenas um influenciador, mas um sistema que lucra com a curiosidade e a vulnerabilidade. A tecnologia que nos conecta também pode criar um mercado para a perversidade. O algoritmo pode ser cúmplice da exploração infantil?

Introdução

A internet e as redes sociais mudaram a forma como vivemos, nos comunicamos e nos divertimos. Figuras como os influenciadores digitais ganharam um poder imenso, mas esse novo cenário também abriu portas para problemas graves. Um dos mais alarmantes é a exploração sexual de crianças e adolescentes, que encontrou no mundo digital um ambiente fértil para se espalhar. Este artigo analisa essa questão a fundo, usando como ponto de partida as denúncias feitas pelo influenciador Felipe "Felca" Bressanim, que expuseram as supostas práticas de outro influenciador, Hytalo Santos 1.

O "Caso Felca", como ficou conhecido, foi muito além de um simples debate moral. Ele provocou uma discussão nacional sobre a "adultização" de crianças, a responsabilidade criminal de quem cria conteúdo e, principalmente, o papel das próprias redes sociais como ferramentas que podem facilitar crimes 2. A repercussão foi tão grande que o Ministério Público da Paraíba (MPPB) abriu uma investigação oficial sobre o caso, mostrando que a denúncia pública teve força para acionar o sistema de justiça 1.

Nesta análise, vamos explorar as várias camadas desse problema. Primeiro, vamos entender o que foi denunciado e como o abuso digital acontece por meio de influenciadores. Depois, veremos como a lei brasileira enquadra essas atitudes, quais os crimes possíveis e suas punições. Também vamos discutir a responsabilidade das plataformas, como Instagram e TikTok, e os desafios para provar esses crimes e garantir a justiça. Por fim, faremos um paralelo entre o que a lei prevê e o que acontece na prática, sugerindo as mudanças necessárias para proteger nossas crianças e adolescentes no ambiente online.


1. O Caso que Chocou a Internet: Entendendo a Denúncia

Para compreender a dimensão legal do caso, é preciso primeiro entender os fatos denunciados e o contexto em que eles aconteceram. As atitudes atribuídas ao influenciador Hytalo Santos não são apenas moralmente questionáveis; elas podem configurar uma série de crimes complexos sob a ótica da proteção infantil.

1.1. O que foi Denunciado?

As denúncias de Felca, que deram origem à investigação do Ministério Público, descrevem uma forma sistemática de expor crianças e adolescentes a situações de vulnerabilidade e com conotação sexual 2. Os vídeos de Hytalo Santos, que alcançavam mais de 17 milhões de seguidores, supostamente mostravam crianças em contextos que as transformavam em objetos, usando roupas inadequadas, fazendo danças sensuais, consumindo bebidas alcoólicas e insinuando práticas sexuais 2.

O ponto central da denúncia é a "adultização", um termo que descreve a prática de forçar crianças a se comportarem, se vestirem e assumirem papéis de adultos, roubando delas a chance de viverem sua infância de forma saudável 2. Essa prática é uma forma de violência psicológica e vai contra o princípio mais importante da legislação brasileira: a proteção integral da criança e do adolescente, garantida pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

1.2. O Algoritmo como Ferramenta para o Crime

A denúncia de Felca foi além da conduta de um único influenciador e apontou uma falha grave no funcionamento das redes sociais. Em um teste prático, Felca mostrou como o algoritmo do Instagram, ao perceber o interesse por vídeos de Hytalo Santos, começou a sugerir em massa conteúdos parecidos, criando uma "bolha" que não só prende o usuário, mas o direciona para uma rede de vídeos potencialmente ilegais 2.

O algoritmo não é neutro; ele atua como uma ferramenta que impulsiona o crime. Ao promover ativamente conteúdo que sexualiza crianças, a plataforma deixa de ser um mero espaço de postagem para se tornar uma curadora e amplificadora desse material. A lógica é a da "economia da atenção": o que gera mais engajamento é mais exibido, não importa se é legal ou apropriado. Conforme apontado por Felca, nos comentários desses vídeos, predadores sexuais usavam códigos como "trade" para negociar material de abuso infantil, transformando a plataforma em um ponto de encontro para criminosos 2. Essa participação ativa do algoritmo é um fator crucial para analisar a responsabilidade das redes sociais.


2. A Lei Contra a Exploração Infantil: Quais Crimes Podem Ter Sido Cometidos?

As atitudes denunciadas podem ser enquadradas em diversos crimes, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto no Código Penal. O desafio é aplicar leis tradicionais a novas formas de crime que acontecem no mundo digital.

2.1. Crimes Previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

O ECA tem leis específicas para crimes contra crianças e adolescentes que se aplicam diretamente ao caso.

  • Produzir e Divulgar Pornografia Infantil (Arts. 240, 241-A e 241-B): A questão aqui é se as danças sensuais e as roupas inadequadas podem ser consideradas "pornografia" pela lei 3. A Justiça entende que pornografia não é apenas o ato sexual explícito, mas também a exposição do corpo infantil de forma sexualizada para satisfazer o desejo de outras pessoas. Além disso, apenas guardar esses vídeos em celulares ou computadores, mesmo sem publicar, já pode ser considerado um crime separado (art. 241-B) 5.

  • Aliciamento (Art. 241-D): Se for provado que o influenciador convenceu ou pressionou os menores a fazerem atos de conotação sexual para os vídeos, ele pode responder por aliciamento 4. A relação de poder e a promessa de fama podem ser vistas como uma forma de pressão.

  • Submeter à Exploração Sexual (Art. 244-A): Este é um crime central no caso. A exploração sexual não é só prostituição; é qualquer situação em que a sexualidade da criança é usada como um produto para obter alguma vantagem, seja dinheiro, fama ou engajamento 6. O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que basta um único ato para o crime ser configurado, não precisa ser algo recorrente 7.

2.2. Crimes Previstos no Código Penal

As condutas também podem se encaixar em crimes ainda mais graves do Código Penal.

  • Estupro de Vulnerável (Art. 217-A): Este é o crime mais grave que pode ser aplicado, com pena de 8 a 15 anos de prisão 8. Ele acontece quando se pratica "ato libidinoso" com menor de 14 anos. A Justiça tem entendido que "ato libidinoso" não exige contato físico. Ordenar que uma criança pratique atos sexuais para uma câmera, para satisfazer o desejo do agressor ou da audiência, pode ser considerado estupro de vulnerável 9. Para menores de 14 anos, a vulnerabilidade é absoluta, ou seja, qualquer suposto consentimento da vítima não tem valor legal 10.

  • Favorecimento da Exploração Sexual de Vulnerável (Art. 218-B): Este crime pune quem induz ou atrai um vulnerável à exploração sexual, com pena de 4 a 10 anos 8. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já deixou claro que não é preciso um intermediário; o próprio agente que explora a sexualidade do vulnerável como uma "mercadoria" comete o crime 11.

2.3. Soma de Crimes e Agravantes

Como várias condutas diferentes podem ter sido praticadas, é possível que o acusado responda por todos os crimes em concurso, e as penas sejam somadas 5.

Além disso, existe um agravante importante. A lei prevê um aumento de pena se o crime for cometido por alguém que tenha "autoridade sobre" a vítima 8. Tradicionalmente, isso se aplica a pais, professores, etc. No entanto, a realidade digital exige uma nova interpretação. O influenciador, como líder de uma "turma" e com grande poder sobre jovens em situação de vulnerabilidade, exerce uma autoridade de fato 2. Usar essa autoridade para explorar sexualmente uma criança torna o crime ainda mais grave e justifica uma pena maior.

2.4. Tabela Resumo: Possíveis Crimes e Penas

Conduta Denunciada

Lei Aplicável

Crime

Pena Base

Gravar e divulgar vídeos de menores de 14 anos em danças sensuais

Art. 217-A, Código Penal

Estupro de Vulnerável

8 a 15 anos de prisão

Produzir e publicar conteúdo pornográfico com menores

Art. 241-A, ECA

Produção de Pornografia Infantil

4 a 8 anos de prisão e multa

Armazenar os vídeos produzidos

Art. 241-B, ECA

Posse/Armazenamento de Pornografia Infantil

1 a 4 anos de prisão e multa

Induzir menores a produzirem conteúdo sexual

Art. 241-D, ECA

Aliciamento de Menores

3 a 6 anos de prisão e multa

Usar a imagem sexualizada de menores para obter lucro

Art. 218-B, Código Penal

Favorecimento da Exploração Sexual de Vulnerável

4 a 10 anos de prisão e multa

Fornecer bebida alcoólica a menores

Art. 243, ECA

Fornecer produto que cause dependência

2 a 4 anos de detenção e multa


3. E as Redes Sociais? Qual a Responsabilidade das Plataformas?

A discussão sobre a responsabilidade das plataformas digitais por conteúdo de terceiros no Brasil mudou radicalmente, e isso tem impacto direto em casos como o denunciado por Felca.

3.1. A Mudança na Lei: O Fim da "Proteção Total"

O Marco Civil da Internet, em seu artigo 19, estabelecia que uma plataforma só seria responsabilizada por conteúdo de terceiros se, após uma ordem judicial, não o removesse 12. Essa regra, criada para proteger a liberdade de expressão, na prática se mostrou ineficaz para combater a disseminação de conteúdos claramente ilegais.

Isso mudou com uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal em 2025 13. O STF decidiu que, para uma lista de "conteúdos ilícitos graves" — que inclui pornografia infantil e crimes contra crianças —, a plataforma pode ser responsabilizada a partir de uma simples notificação, sem precisar de ordem judicial 13. Essa decisão já era esperada, pois o STJ vinha tomando decisões parecidas em casos de proteção infantil 27.

3.2. O "Dever de Cuidado" e a Falha do Sistema

A decisão do STF traz para o Brasil o conceito de "dever de cuidado" (duty of care). Isso significa que as plataformas não são mais vistas como intermediárias passivas, mas como agentes que têm a responsabilidade de criar e operar seus serviços de forma a diminuir riscos de danos graves aos usuários.

No "Caso Felca", os sinais de uma "falha sistêmica" são claros 13. A denúncia mostra não apenas vídeos isolados, mas todo um ecossistema que os promove. O algoritmo que recomenda ativamente conteúdo que sexualiza crianças e a falta de ação da plataforma para impedir que predadores se organizem nos comentários são provas de uma falha na própria estrutura do serviço 2. Sob a nova visão do STF, essas falhas são suficientes para responsabilizar a plataforma.


4. Da Denúncia à Condenação: Os Desafios da Justiça

Transformar uma denúncia pública em uma condenação na Justiça é um caminho cheio de obstáculos, tanto para a acusação quanto para a defesa.

4.1. Estratégias de Defesa

A defesa do acusado pode usar vários argumentos para tentar a absolvição.

  • Falta de Intenção: A defesa pode alegar que não havia a intenção de cometer um crime sexual, argumentando que os vídeos eram apenas "danças da moda" ou "expressão artística", sem maldade.

  • Falta de Provas: A defesa pode questionar a autenticidade dos vídeos, sugerir que foram manipulados ou que a coleta das provas digitais não seguiu as regras, pedindo a anulação com base no princípio de que "na dúvida, a favor do réu" 14.

  • Erros no Processo: A defesa também pode apontar falhas processuais, como a inversão da ordem dos depoimentos, para tentar anular o processo 15.

4.2. A Dificuldade da Prova Digital

Investigar crimes na internet é complicado. Provas digitais podem ser apagadas facilmente, e identificar os responsáveis por trás de perfis falsos é um desafio 16. Além disso, quando os servidores das empresas estão em outros países, conseguir os dados para a investigação se torna um processo lento e burocrático, o que muitas vezes leva à impunidade.

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4.3. A Força da Palavra da Vítima e a Lei da Escuta Protegida

Apesar dos desafios, a lei brasileira dá um peso especial à palavra da vítima em crimes sexuais, pois eles geralmente acontecem sem testemunhas 17.

Para proteger as vítimas e qualificar essa prova, foi criada a Lei da Escuta Protegida (Lei 13.431/2017) 18. Ela estabelece o depoimento especial, um procedimento em que a criança ou adolescente é ouvido uma única vez por um profissional especializado, em um ambiente seguro e acolhedor. Esse depoimento é gravado e serve como prova no processo, evitando que a vítima tenha que repetir a história várias vezes, o que causa um novo trauma (a chamada "revitimização").


5. A Distância entre a Lei e a Realidade

O Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo para proteger a infância, mas existe uma grande distância entre o que está no papel e o que acontece na prática.

5.1. Os Números que Não Vemos

As estatísticas sobre abuso online são assustadoras. A ONG Safernet Brasil relatou um recorde histórico de denúncias de imagens de abuso sexual infantil em 2023, com um aumento de 77% em relação ao ano anterior 19. O Brasil está entre os cinco países que mais denunciam esse tipo de crime no mundo 20. Dados oficiais mostram que 76% dos estupros registrados no país são de vulneráveis 21.

No entanto, esses números são apenas a "ponta do iceberg" 4. Estima-se que apenas 10% dos casos de abuso cheguem ao conhecimento das autoridades 22. O medo, a vergonha e a desconfiança na Justiça alimentam o silêncio. A mesma tecnologia que facilita a ação dos criminosos, com o anonimato e o uso de inteligência artificial 19, também permite que a sociedade denuncie. O desafio é usar a tecnologia para proteger, e não para agredir.

5.2. Desafios na Aplicação da Lei

A Lei da Escuta Protegida é um grande avanço, mas sua implementação é um desafio enorme. Muitas cidades não têm a estrutura necessária: salas adequadas, equipamentos e profissionais capacitados 18. O próprio Ministério Público da Paraíba admite essa carência de infraestrutura, o que compromete a aplicação da lei e continua expondo as vítimas a novos traumas.


6. Como Tornar a Internet um Lugar Mais Seguro? Propostas e Soluções

O problema da exploração sexual online exige uma resposta completa, que envolva leis melhores, políticas públicas eficientes e o aprendizado com experiências de outros países.

6.1. Melhorando as Leis Brasileiras

O Congresso Nacional já discute projetos para fortalecer a proteção de crianças e adolescentes na internet. O Projeto de Lei 2.628/2022, por exemplo, busca criar um dever geral de cuidado para as plataformas, obrigando-as a ter verificação de idade e melhores ferramentas de controle para os pais 23. Outras propostas buscam responsabilizar também os pais pela supervisão do uso da internet, o que gera um debate importante sobre até onde vai o papel da família.

6.2. O que Podemos Aprender com Outros Países?

  • Reino Unido - Online Safety Act: Aprovada em 2023, essa lei é uma das mais rigorosas do mundo. Ela impõe um "dever de cuidado" às plataformas, que devem impedir que crianças acessem conteúdos prejudiciais, como pornografia e promoção de suicídio. A lei exige verificação de idade eficaz e prevê multas pesadíssimas, de até 10% do faturamento global da empresa 24. Apesar de ser um modelo, a lei também é criticada por possíveis riscos à privacidade 25.

  • União Europeia - Digital Services Act (DSA): Em vigor desde 2024, o DSA proíbe publicidade direcionada a menores, exige que as grandes plataformas avaliem os riscos de seus serviços para crianças e tomem medidas para diminuí-los 26. A Comissão Europeia já está usando a lei para investigar plataformas como o TikTok, mostrando sua força 27.

6.3. Políticas Públicas para Além da Lei

Apenas mudar a lei não é suficiente. É preciso um conjunto de ações integradas.

  • Educação Digital: As escolas precisam ensinar cidadania digital. Crianças e adolescentes devem aprender a identificar riscos, proteger sua privacidade e ter um olhar crítico sobre o que consomem online.

  • Fortalecimento da Rede de Proteção: O governo precisa investir na capacitação de conselheiros tutelares, policiais, promotores e juízes para que saibam lidar com crimes cibernéticos e aplicar corretamente a Lei da Escuta Protegida.

  • Cooperação Obrigatória com as Plataformas: A cooperação voluntária das redes sociais não basta. É preciso criar, por lei, canais obrigatórios para que elas forneçam dados para investigações e removam conteúdo ilegal rapidamente, sob pena de multas severas.

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Sobre o autor
Adilson Furlani

Advogado com expertise única na intersecção entre Direito e Tecnologia. Minha formação multidisciplinar em Direito, Sistemas, Segurança da Informação e Geoprocessamento permite oferecer soluções jurídicas inovadoras e precisas. Atuo com Direito Civil, Digital e LGPD, compreendendo a tecnologia por trás da lei, e com Direito Imobiliário e Ambiental, utilizando análises de dados geoespaciais. Meu compromisso é traduzir a complexidade técnica e jurídica em estratégias claras e seguras para os meus clientes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURLANI, Adilson. Algoritmo predador: como as plataformas se tornaram cúmplices da exploração infantil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8078, 13 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115192. Acesso em: 5 dez. 2025.

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