4. DOUTRINA SOBRE A EXTINÇÃO DO FORO PRIVILEGIADO
4.1. Críticas doutrinárias ao foro como privilégio inconstitucional
A crítica doutrinária ao foro por prerrogativa de função parte da constatação de que se trata de um instituto que, ao invés de resguardar a independência funcional das autoridades públicas, converteu-se em verdadeira deformação do princípio da igualdade e em um resquício aristocrático, incompatível com a forma republicana de governo. A lógica que o sustenta é a de que determinados agentes não devem ser julgados pelo juiz natural que a todos alcança, mas por tribunais superiores cuja competência originária, de natureza excepcional, torna-se artificialmente ampliada. Essa ruptura com o desenho constitucional da jurisdição, além de comprometer a isonomia, revela-se como expressão de privilégio processual injustificável no Estado Democrático de Direito.
José Afonso da Silva afirma, de modo incisivo, que o foro privilegiado, ao invés de servir como instrumento de proteção institucional, “acaba por se transformar em um obstáculo à justiça, criando desigualdades perante a lei”.29 Nessa mesma linha, Alexandre de Moraes sustenta que a sua manutenção em larga escala representa um desvio dos princípios da igualdade e da moralidade, pois afasta autoridades do alcance do juiz natural e da fiscalização ordinária da sociedade.30 Pedro Lenza vai além ao considerar que a restrição do foro atende ao sistema republicano, porquanto limita privilégios processuais que se tornaram incompatíveis com a democracia contemporânea.31
As críticas doutrinárias também identificam um déficit de legitimidade funcional: ao retirar milhares de processos da competência dos juízes de primeiro grau, próximos à realidade fática e com melhores condições de instrução probatória, o foro especial acaba por favorecer a morosidade e a prescrição, gerando, como efeito colateral, a impunidade seletiva de autoridades. É por isso que Guilherme de Souza Nucci, com a contundência que lhe é característica, adverte que, se todos são iguais perante a lei, seria necessária uma razão muito excepcional para afastar o réu de seu juiz natural, o que na prática não se verifica.32
Em síntese, a crítica doutrinária ao foro privilegiado denuncia a sua contradição estrutural: pensado como prerrogativa funcional, degenerou em privilégio pessoal. Ao ferir os princípios republicano, da igualdade e do juiz natural, não apenas desvirtua a Constituição, mas compromete a própria legitimidade da jurisdição penal, razão pela qual parte expressiva da doutrina propugna pela sua redução a limites mínimos ou pela sua supressão.
4.2. Argumentos favoráveis à manutenção restrita do foro
Se, de um lado, o foro por prerrogativa de função é alvo de críticas consistentes, de outro não se pode ignorar os argumentos formulados em sua defesa, ao menos em termos restritivos. Esses argumentos não se orientam pela ideia de perpetuação do privilégio, mas pela preservação de um núcleo funcional mínimo capaz de resguardar a independência e a imparcialidade do julgamento em casos nos quais a exposição da autoridade ao crivo da jurisdição ordinária possa comprometer a própria neutralidade do processo.
A primeira razão invocada é a de que o foro atua como salvaguarda contra perseguições políticas locais. Ao se considerar que prefeitos, governadores, parlamentares e magistrados exercem atividades que inevitavelmente interferem em interesses regionais, admitir que fossem julgados por juízes hierarquicamente vinculados às estruturas políticas locais poderia abrir espaço para represálias, pressões e instrumentalizações do Poder Judiciário. João Marcello Alves Costa lembra que, embora o debate público costume associar o foro à impunidade, sua concepção originária foi a de criar um obstáculo às perseguições contra autoridades políticas e de evitar que a sua influência fosse revertida em pressão indevida sobre o Judiciário.33
A segunda razão decorre da necessidade de proteger a imparcialidade da jurisdição nos casos em que a própria corporação poderia ser parte interessada. O Superior Tribunal de Justiça, em questão de ordem na APn 878, reconheceu que desembargadores acusados de crimes, ainda que não relacionados às suas funções, deveriam ser julgados no STJ, e não por juízes de primeiro grau vinculados ao mesmo tribunal, justamente para resguardar a independência do julgamento.34 Nesse sentido, a prerrogativa do foro desempenha função de assegurar que o julgador não se encontre em relação de subordinação institucional ou de coleguismo direto com o acusado.
Por fim, há quem veja no foro um mecanismo de racionalização das competências em situações excepcionais. Gilmar Mendes, ao relatar casos de 2025 no STF, alertou para o risco de “flutuações de competência” e insegurança jurídica se os processos oscilassem constantemente entre instâncias em razão da alternância no exercício do cargo.35 Nessa linha, o foro restringido garantiria estabilidade e previsibilidade, evitando que a jurisdição se transformasse em um jogo de sobe-e-desce processual.
Tais razões, contudo, não justificam a manutenção ampla e indiscriminada do foro privilegiado, mas apenas sua conservação em hipóteses pontuais, nas quais se demonstre a necessidade de tutela da função e da imparcialidade jurisdicional. A defesa que se faz, portanto, não é do foro como privilégio, mas como exceção funcional, interpretada restritivamente e aplicada somente nos casos em que a isenção do julgamento esteja em risco real.
4.3. O debate contemporâneo: igualdade, eficiência e accountability
O debate contemporâneo sobre o foro por prerrogativa de função desloca-se de uma visão puramente formal para uma análise substancial dos valores constitucionais em jogo. O instituto não é mais aferido apenas pela sua compatibilidade literal com o texto constitucional, mas pela sua conformidade material com os princípios da igualdade, da eficiência da jurisdição e da responsabilização democrática dos agentes públicos.
O princípio da igualdade impõe que a jurisdição seja distribuída de forma uniforme, sem distinções arbitrárias entre cidadãos comuns e autoridades. Daí porque o foro privilegiado, ao criar distinção processual em benefício de determinadas funções, passa a ser percebido como anomalia, admitida apenas em hipóteses estritamente necessárias. Como bem registra José Afonso da Silva, ele constitui uma exceção histórica que desfigura a própria noção de igualdade, ao permitir que “alguns sejam mais iguais que os outros”.36
A eficiência, por sua vez, emerge como novo critério de aferição da legitimidade do instituto. A experiência concreta demonstra que a concentração de processos criminais contra autoridades nos tribunais superiores redunda em morosidade, prescrição e, não raro, impunidade. A perpetuação do foro contribui para a sobrecarga das cortes e para a inefetividade do processo penal, produzindo o paradoxo de um privilégio que mina a confiança social na Justiça. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da AP 937, explicitou essa preocupação, ao assentar que a restrição do foro era necessária para preservar a funcionalidade do sistema de justiça.37
Finalmente, a noção de accountability – a exigência republicana de que os agentes públicos prestem contas de seus atos perante a sociedade – impõe a superação de mecanismos que possam funcionar como escudos de proteção. A doutrina recente enfatiza que a restrição ou extinção do foro é condição de possibilidade para o fortalecimento da responsabilidade política e jurídica, na medida em que submete as autoridades às mesmas regras que vinculam os demais cidadãos. Como sintetiza Pedro Lenza, a limitação do foro atende ao sistema democrático ao reduzir privilégios processuais incompatíveis com a igualdade republicana.38
O resultado é que a discussão atual não se resume a um embate técnico, mas representa uma redefinição do pacto democrático: ou o foro se restringe a limites mínimos de proteção funcional, ou se converte em um mecanismo de exceção que afronta os valores constitucionais estruturantes. É nesse ponto que a hermenêutica constitucional deve assumir a sua função reconstrutiva, orientando-se pela máxima efetividade da igualdade, pela racionalidade da eficiência e pela centralidade da accountability como condição de legitimidade no exercício do poder.
5. IMPACTOS PRÁTICOS DA RESTRIÇÃO DO FORO PRIVILEGIADO
5.1. A responsabilização dos agentes públicos e a morosidade processual
A análise empírica da aplicação do foro por prerrogativa de função revela um paradoxo estrutural: concebido para resguardar a imparcialidade e a independência da jurisdição, o instituto produziu, em larga escala, efeitos de morosidade e de inefetividade processual, que acabam por corroer a própria ideia de responsabilização dos agentes públicos. A sobrecarga dos tribunais superiores, sem estrutura para a instrução e julgamento de milhares de processos criminais, transformou o foro em catalisador da prescrição e, em muitos casos, em instrumento de blindagem de autoridades contra a responsabilização.
Os dados apresentados pela Fundação Getulio Vargas, frequentemente citados nos debates legislativos e doutrinários, apontam que, entre 2011 e 2016, menos de 1% das ações penais contra autoridades no Supremo Tribunal Federal resultaram em condenação, enquanto cerca de 68% não chegaram a qualquer conclusão.39 Esse panorama traduz a disfuncionalidade do sistema, no qual a prerrogativa deixa de cumprir a função protetiva da instituição e converte-se em escudo de impunidade.
O Supremo Tribunal Federal, ciente desse cenário, alterou sua jurisprudência no julgamento da AP 937, restringindo o foro apenas a crimes cometidos durante o mandato e em razão do cargo, com a finalidade de evitar que a prerrogativa fosse utilizada como obstáculo à celeridade e à efetividade da jurisdição.40 O Superior Tribunal de Justiça, ao seguir essa orientação em casos como a APn 857, reforçou a necessidade de que a prerrogativa não seja compreendida como privilégio pessoal, mas como exceção funcional estritamente delimitada.41
A redução do foro é medida necessária para combater a impunidade e restabelecer a confiança da sociedade na Justiça, pois a morosidade processual associada ao privilégio termina por inviabilizar a responsabilização concreta dos agentes públicos.
Dessa forma, a restrição do foro não é apenas questão de igualdade formal, mas de efetividade republicana: sem responsabilização tempestiva e sem decisões judiciais em prazo razoável, a ideia de que todos respondem perante a lei perde substância. O combate à morosidade, portanto, não é mero aspecto procedimental, mas condição de possibilidade para a realização do princípio da responsabilidade política e jurídica que estrutura o Estado Democrático de Direito.
5.2. O fortalecimento da primeira instância e o controle social
A restrição do foro privilegiado não se limita a corrigir distorções de natureza formal; ela produz também efeitos institucionais relevantes, sobretudo no fortalecimento da jurisdição de primeira instância e na ampliação do controle social sobre o exercício do poder. Ao devolver às instâncias ordinárias a competência para processar e julgar autoridades por crimes comuns, transfere-se ao juiz natural — próximo dos fatos, das provas e das realidades locais — a responsabilidade de conduzir processos que, quando centralizados nos tribunais superiores, permaneciam distantes da concretude social.
Essa redistribuição funcional promove ganhos de transparência e legitimidade. Como bem observa Pedro Lenza, a limitação do foro compatibiliza-se com o sistema republicano, justamente porque elimina privilégios processuais incompatíveis com a democracia e sujeita as autoridades ao mesmo escrutínio jurisdicional dos demais cidadãos.42 Em reforço, José Afonso da Silva sublinha que a manutenção ampla do foro constitui um obstáculo à justiça, criando desigualdade perante a lei e, por consequência, esvaziando o papel do juiz natural como instância de controle jurídico efetivo.43
O Supremo Tribunal Federal, ao fixar a tese da AP 937, deixou claro que a redução do foro visa não apenas garantir celeridade, mas também democratizar o processo penal, ao permitir que as autoridades sejam julgadas pelos juízos ordinários competentes.44 O Superior Tribunal de Justiça, em questão de ordem na APn 874, aplicou essa lógica ao reconhecer que a prerrogativa de foro de governadores não poderia se estender a mandatos pretéritos, justamente para evitar que a competência originária se transformasse em um privilégio desprovido de pertinência funcional.45
Sob a perspectiva social, a transferência de competência fortalece o controle difuso da cidadania sobre os processos criminais envolvendo autoridades. A primeira instância, mais acessível e próxima da opinião pública, permite maior escrutínio e dificulta que casos de grande repercussão fiquem circunscritos a instâncias superiores, distantes da fiscalização popular. Esse deslocamento institucional aproxima o sistema de justiça da sociedade, reforçando a confiança pública e o ideal republicano de responsabilidade política e jurídica.
Em suma, o fortalecimento da primeira instância não é apenas um efeito colateral da restrição do foro, mas uma consequência estrutural desejada: democratizar a jurisdição, ampliar o controle social e reafirmar que, no Estado de Direito, não há espaço para privilégios jurisdicionais que afastem autoridades do crivo comum da Justiça.
5.3. A despolitização dos tribunais superiores
Um dos efeitos mais relevantes da restrição do foro por prerrogativa de função consiste na progressiva despolitização da atuação dos tribunais superiores. Ao longo da experiência constitucional recente, a sobrecarga dessas cortes com processos penais envolvendo autoridades políticas transformou o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça em arenas de disputas político-institucionais, frequentemente desviando-os de suas funções primordiais: a guarda da Constituição e a uniformização da interpretação da legislação federal.
Esse fenômeno foi denunciado tanto pela doutrina quanto por parlamentares, que apontaram o foro privilegiado como mecanismo de blindagem e de captura política das cortes. A manutenção indiscriminada do foro gera não apenas morosidade e impunidade, mas também uma contaminação política da jurisdição, em que os tribunais deixam de desempenhar seu papel técnico para se converterem em espaços de negociação de interesses e pressões externas.
O Supremo Tribunal Federal, ao decidir a AP 937, reconheceu explicitamente esse risco ao afirmar que a limitação do foro era necessária não apenas por razões de eficiência, mas também para preservar a missão institucional da Corte, evitando que ela se transformasse em juízo criminal de primeira instância de milhares de autoridades.46 O STJ, ao seguir a mesma linha em questões de ordem como a APn 857 e a APn 874, reafirmou que sua competência originária deveria ser interpretada restritivamente, sob pena de desviar-se de sua função uniformizadora da interpretação da lei federal.47
A restrição do foro, portanto, cumpre função saneadora: ao retirar dos tribunais superiores a atribuição de instruir e julgar processos criminais sem pertinência direta com a sua missão constitucional, devolve-lhes o papel de órgãos de cúpula, responsáveis pela estabilidade e coerência do sistema jurídico. Com isso, reduz-se a percepção de que as decisões possam ser pautadas por interesses políticos conjunturais, reforçando a confiança social na imparcialidade das cortes.
Nesse sentido, a despolitização é mais do que um efeito colateral; é um objetivo central da reforma interpretativa conduzida pelo STF. Ao limitar o foro às hipóteses estritamente funcionais, garante-se que os tribunais superiores retomem sua vocação técnico-jurídica, afastando-os da condição de arenas políticas e restabelecendo sua legitimidade republicana.