Capa da publicação O fim do foro privilegiado em debate: restrições pelo STF
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O fim do foro privilegiado no Direito Constitucional brasileiro.

Fundamentos, crítica e perspectivas

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória interpretativa e legislativa do foro por prerrogativa de função no Brasil revela uma clara mutação constitucional: de um instrumento concebido para proteger o exercício independente de determinadas funções públicas, converteu-se em mecanismo que, na prática, favoreceu a morosidade, a prescrição e, não raro, a impunidade. Essa metamorfose institucional explica a forte reação da doutrina e da jurisprudência, que passaram a questionar não apenas a sua extensão, mas a sua própria legitimidade diante dos princípios constitucionais estruturantes.

O exame desenvolvido demonstrou que o foro especial, ao afastar autoridades do juiz natural, colide frontalmente com os princípios republicano e da igualdade. A doutrina majoritária — de José Afonso da Silva a Pedro Lenza, passando por Alexandre de Moraes e Guilherme Nucci — tem denunciado que a prerrogativa, longe de resguardar a função, transformou-se em privilégio, inconstitucional em essência e disfuncional em prática. Do ponto de vista jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal, a partir da AP 937, restringiu o foro a crimes cometidos no exercício e em razão do cargo, e posteriormente, em decisões como a ADI 6.502 e a ADI 6.504, reafirmou que as constituições estaduais não podem ampliar o rol de autoridades beneficiadas. O Superior Tribunal de Justiça, em consonância, delimitou sua competência originária, reafirmando que se trata de exceção interpretada restritivamente.

As análises também revelaram que a restrição do foro traz três consequências centrais:

  1. reforça a responsabilização dos agentes públicos, combatendo a morosidade processual;

  2. fortalece a jurisdição de primeira instância e amplia o controle social, aproximando a Justiça do cidadão; e

  3. contribui para a despolitização dos tribunais superiores, devolvendo-lhes o papel técnico de guardiões da Constituição e da lei federal.

A conclusão que se impõe, portanto, é a de que a manutenção ampla do foro privilegiado não encontra respaldo no Estado Democrático de Direito. Se ainda se admite sua existência, deve ser reduzida a hipóteses pontuais, nas quais haja risco concreto à imparcialidade da jurisdição. Fora desses casos, a prerrogativa converte-se em privilégio inconstitucional, atentando contra a igualdade e o princípio republicano.

A hermenêutica restritiva do Supremo Tribunal Federal sinaliza um caminho: o da reconstrução do instituto em conformidade com a Constituição de 1988. Mais do que isso, representa um passo decisivo na consolidação de uma cultura de accountability, em que as autoridades, longe de gozarem de blindagens processuais, submetem-se às mesmas regras de responsabilização aplicáveis a todos os cidadãos. Trata-se, em suma, de reafirmar que, em uma República, não há espaço para desigualdades jurídicas arbitrárias: todos são iguais perante a lei, sem exceções que desfigurem esse postulado.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito 4703 QO/DF. Rel. Min. Luiz Fux. 1ª Turma, julgado em 12 jun. 2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 232.627/DF. Rel. Min. Gilmar Mendes. Plenário, julgado em 11 mar. 2025, publicado em 12 mar. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.430. Rel. Min. Rosa Weber. Plenário, julgado em 27 nov. 2018, publicado em 04 dez. 2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6502/PE. Rel. Min. Roberto Barroso. Plenário, julgado em 23 ago. 2021, publicado em 16 set. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6504/PI. Rel. Min. Rosa Weber. Plenário, julgado em 25 out. 2021, publicado em 05 nov. 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 462.361. Rel. Min. Laurita Vaz. 5ª Turma, julgado em 10 mar. 2020, publicado em 17 mar. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 857 QO. Rel. Min. João Otávio de Noronha. Corte Especial, julgado em 06 jun. 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 874 QO. Rel. Min. Nancy Andrighi. Corte Especial, julgado em 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 878 QO. Rel. Min. Benedito Gonçalves. Corte Especial, julgado em 2019.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão nº 1096958, Processo 20170020204397APN. Rel. Des. Angelo Passareli. Conselho Especial, julgado em 15 maio 2018, publicado em 18 maio 2018.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Conflito de Jurisdição 0001032-36.2019.8.08.0047. Rel. Des. Fernando Zardini Antonio. 2ª Câmara Criminal, publicado em 25 fev. 2022.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo Interno Cível 1001246-91.2016.8.26.0474. Rel. Des. Wanderley José Federighi. Câmara Especial de Presidentes, julgado em 28 jul. 2022.

BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Ação Penal 1.0308.22.000943-8/000. 1ª Câmara Criminal, 2022.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2024.

MORAES, Alexandre de. Constituição de 1988 Comentada. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.

SILVA, José Afonso da. Princípios Constitucionais da Administração Pública. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.

COSTA, João Marcello Alves. Foro por Prerrogativa de Função em ações penais no STF: origens, controvérsias e perspectivas. Dissertação (Mestrado em Direito) – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.


Notas

  1. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 364.

  2. MORAES, Alexandre de. Constituição de 1988 Comentada. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 221.

  3. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 365

  4. STF. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Plenário, j. 03. maio 2018, publ. 10. maio 2018.

  5. STF. ADI 6502/PE, Rel. Min. Roberto Barroso, Plenário, j. 23. ago. 2021, publ. 16. set. 2021; STF. ADI 6504/PI, Rel. Min. Rosa Weber, Plenário, j. 25. out. 2021, publ. 05. nov. 2021.

  6. STJ. APn 857, QO, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Corte Especial, j. 06. jun. 2018; STJ. APn 874, QO, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, j. 2019.

  7. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 364.

  8. MORAES, Alexandre de. Constituição de 1988 Comentada. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 221.

  9. STF. ADI 4.430, Rel. Min. Rosa Weber, Plenário, j. 27. nov. 2018, publ. 04. dez. 2018.

  10. STJ. HC 462.361, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 10. mar. 2020, publ. 17. mar. 2020.

  11. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 365.

  12. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 251.

  13. SILVA, José Afonso da. Princípios Constitucionais da Administração Pública. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2023. p. 157.

  14. STF. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Plenário, j. 03. maio 2018, publ. 10. maio 2018.

  15. STJ. AgRg na APn 866/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, j. 20. fev. 2020, publ. 27. fev. 2020.

  16. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 251.

  17. STF. ADI 6502/PE, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 23. ago. 2021, publ. 16. set. 2021.

  18. STF. ADI 6504/PI, Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. 25. out. 2021, publ. 05. nov. 2021.

  19. STJ. APn 857, QO, Corte Especial, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 06. jun. 2018.

  20. STF. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Plenário, j. 03. maio 2018, publ. 10. maio 2018.

  21. STF. Inq 4703 QO/DF, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 12. jun. 2018.

  22. STF. HC 232.627/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. 11. mar. 2025, publ. 12. mar. 2025.

  23. STJ. APn 857, QO, Corte Especial, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 06. jun. 2018.

  24. STJ. APn 874, QO, Corte Especial, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 2019.

  25. STJ. APn 878, QO, Corte Especial, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 2019.

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  26. TJDFT. Acórdão nº 1096958, Proc. 20170020204397APN, Rel. Des. Angelo Passareli, Conselho Especial, j. 15. maio 2018, publ. 18. maio 2018.

  27. TJES. Conflito de Jurisdição 0001032-36.2019.8.08.0047, Rel. Des. Fernando Zardini Antonio, 2ª Câmara Criminal, publ. 25. fev. 2022.

  28. TJSP. Agravo Interno Cível 1001246-91.2016.8.26.0474, Rel. Des. Wanderley José Federighi, Câmara Especial de Presidentes, publ. 28. jul. 2022; TJMG. Ação Penal 1.0308.22.000943-8/000, 1ª Câmara Criminal.

  29. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 364.

  30. MORAES, Alexandre de. Constituição de 1988 Comentada. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 221.

  31. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 365.

  32. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 251.

  33. COSTA, João Marcello Alves. Foro por Prerrogativa de Função em ações penais no STF: origens, controvérsias e perspectivas. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2021.

  34. STJ. APn 878, QO, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Corte Especial, j. 2019.

  35. STF. HC 232.627/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. 11. mar. 2025.

  36. SILVA, José Afonso da. Princípios Constitucionais da Administração Pública. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2023, p. 157.

  37. STF. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Plenário, j. 03. maio 2018, publ. 10. maio 2018.

  38. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 365.

  39. Senado Federal. Jornal do Senado, 1º jun. 2017, citando estudo da Fundação Getulio Vargas sobre taxa de condenação de autoridades no STF.

  40. STF. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Plenário, j. 03. maio 2018, publ. 10. maio 2018.

  41. STJ. APn 857, QO, Corte Especial, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 06. jun. 2018.

  42. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 365.

  43. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 364

  44. STF. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Plenário, j. 03. maio 2018, publ. 10. maio 2018.

  45. STJ. APn 874, QO, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, j. 2019.

  46. STF. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Plenário, j. 03. maio 2018, publ. 10. maio 2018.

  47. STJ. APn 857, QO, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Corte Especial, j. 06. jun. 2018; APn 874, QO, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, j. 2019.


The end of privileged jurisdiction in Brazilian constitutional law: foundations, criticism, and perspectives

Abstract: The forum for privileged functions, traditionally called privileged forum, was established to protect the independence of public authorities against political persecution. However, the Brazilian experience has shown that its broad application has had the opposite effect: delays, statutes of limitations, and a sense of impunity. The majority doctrine criticizes the institution for violating the principles of equality, natural justice, and republicanism, while recent case law from the Federal Supreme Court and the Superior Court of Justice has restricted its application to crimes committed in the exercise of and due to the function. This article analyzes the historical evolution, constitutional foundations, doctrinal production, and practical impacts of the restriction of jurisdiction. It concludes that its broad maintenance is incompatible with the Democratic Rule of Law and should be reduced to strict limits, as a functional exception intended only to safeguard the impartiality of the jurisdiction.

Key words : Privileged jurisdiction; functional prerogative; equality; natural judge; republican principle; Federal Supreme Court; accountability.

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Sobre o autor
Paulo Vitor Faria da Encarnação

Advogado. Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Sócio do escritório Santos Faria Sociedade de Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ENCARNAÇÃO, Paulo Vitor Faria. O fim do foro privilegiado no Direito Constitucional brasileiro.: Fundamentos, crítica e perspectivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8084, 19 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115292. Acesso em: 5 dez. 2025.

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