Capa da publicação Caso Bolsonaro: principais inconstitucionalidades
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As principais inconstitucionalidades da Ação Penal nº 2.668

12/09/2025 às 10:04

Resumo:


  • O foro por prerrogativa de função se aplica ao Presidente da República apenas em infrações penais comuns cometidas durante o exercício do cargo e relacionadas às funções desempenhadas.

  • O sistema acusatório no Brasil não admite a condução de investigações penais por órgãos jurisdicionais, pois viola o princípio da imparcialidade do juiz e a separação de funções entre acusar e julgar.

  • É fundamental respeitar a Constituição e não flexibilizar suas normas com base em circunstâncias políticas ou conveniências institucionais, a fim de preservar a legalidade e a justiça em uma República democrática.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O artigo analisa o foro por prerrogativa e o sistema acusatório no caso Bolsonaro. Pode o STF julgar após o mandato e conduzir investigação sem Ministério Público?

Resumo: a presente reflexão se deterá especificamente nos aspectos processuais do caso Bolsonaro envolvendo a suposta tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, mormente nas questões do foro em razão da pessoa e no sistema acusatório de condução da persecução penal, sem adentrar nos elementos referentes a culpabilidade ou não dos agentes envolvidos.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Processual Penal. Foro por prerrogativa de função. Sistema Acusatório. Imparcialidade.


1. O foro por prerrogativa de função

Prefacialmente, é imperioso asseverar que a Constituição da República, sem seu artigo 102, inciso I, alínea “b”, estabelece o foro por prerrogativa de função, dentre outras autoridades, se aplica ao Presidente da República, nas infrações penais comuns.

Malgrado, não define em qual momento esse foro será acionado. Dessa forma, outros dispositivos devem ser consultados para o deslinde da questão, num exercício de interpretação sistemática.

Nessa senda, o artigo 86, § 4º, da Constituição Federal de 1988, na seção sobre a responsabilidade do Presidente da República, define que essa autoridade, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

Logo, ao que tudo indica, o foro ratione personae somente prevalecerá quando o Presidente da República estiver sendo processado por atos concêntricos ao exercício de suas funções. Em casos estranhos ao exercício de suas funções, somente será processado quando o mandato estiver extinto, face a imunidade penal temporária.

Conforme assevera o professor Pedro Lenza (2022, p. 132),

Consoante interpretação do STF, as regras sobre a imunidade formal em relação à prisão (art. 86, § 3.º), bem como aquelas relacionadas à imunidade penal relativa (art. 86, § 4.º), estabelecidas para o Presidente da República, devem ser interpretadas como derrogatórias do direito comum, tendo sido estabelecidas com exclusividade para o Presidente da República, não podendo ser estendidas aos Governadores de Estado e, no mesmo sentido, ao Governador do DF e Prefeitos por atos normativos próprios, nem mesmo nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas do DF e dos Municípios. (g. n.)

Destarte, a imunidade penal relativa, por ser regra excepcional no regime republicano, deve ser interpretada restritivamente, não cabendo a sua ampliação para casos outros além daqueles indicados na Carta Magna, em nenhuma hipótese.

Dessa forma, a regra é, encerrado o exercício do cargo público, encerra-se o foro. Esse inclusive é o entendimento sedimentado no julgamento da Ação Penal nº 937, que tramitou no Supremo Tribunal Federal. Eis a ementa do julgado:

DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. QUESTÃO DE ORDEM EM AÇÃO PENAL. LIMITAÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO AOS CRIMES PRATICADOS NO CARGO E EM RAZÃO DELE. ESTABELECIMENTO DE MARCO TEMPORAL DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA. 6. Resolução da questão de ordem com a fixação das seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. (g. n.)

De toda sorte, esse entendimento é acompanhado de perto pela doutrina processual. Eis as palavras do Promotor de Justiça Moreira Alves (2025, p. 427):

a) o foro por prerrogativa de função apenas é aplicável às infrações penais praticadas durante o exercício do cargo público: e não basta que a infração penal seja cometida durante o exercício do cargo público; para se ter direito ao foro, o agente público deve permanecer ocupando o cargo público. Logo, encerrado o cargo, encerra-se o foro, devendo os autos serem remetidos ao juiz de primeiro grau, sem necessidade de refazimento dos atos processuais até então realizados. A esse respeito, deve ser conferido o teor da Súmula nº 451 do STF: “A competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funciona”. (g. n.)

Nesse diapasão, de forma muito plácida, podemos afirmar que, encerrado do exercício de cargo de Presidente da República pelo Sr. Jair Messias Bolsonaro em 1º de janeiro de 2023, nenhuma razão jurídica remanesce para que o seu julgamento prosseguisse na Suprema Corte, salvo, evidentemente, por questões de política judiciária, conforme posto na estranha Súmula 704 do STF 1, eis que consagradora de uma indefinida discricionariedade judicial.


2. O sistema acusatório

Lado outro, o Tribunal Constitucional, para sustentar sua competência, invocou o artigo 43 de seu Regimento Interno, segundo o qual “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.2

É bem verdade que esse é um fundamento extremamente forte para embasar uma investigação judicial. Nesse sentido, existe entendimento sumulado já antigo, conquanto diga respeito ao Poder Legislativo Federal, conforme consta em destaque:

Súmula 397 do STF: O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito.

Sem embargo, o Regimento Interno da Suprema Corte precisa passar pelo filtro constitucional, para se aferir se as suas normas subsistem no atual ordenamento jurídico.

Conforme consta no artigo 144, § 1º, inciso I, da Lei Maior, a Polícia Federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo disposto na Lei Federal nº 10.446 de 2022.

Ademais, o artigo 129, incisos I e VII, da Constituição de Outubro prescreve ser função institucional do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública e exercer o controle externo da atividade policial, ambas na forma da lei.3

Como se não bastasse, o Código de Processo Penal, por meio da Lei Federal nº 13.964 de 2019 (Pacote Anticrime), adotou expressamente o sistema acusatório de persecução penal, afirmando categoricamente que são “vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” (art. 3º-A).

Nesse sentido, são absolutamente perspicazes as palavras de Aury Lopes Jr (2020, p. 57):

As principais características do sistema inquisitório são:

a) gestão/iniciativa probatória nas mãos do juiz (figura do juiz-ator e do ativismo judicial = princípio inquisitivo);

b) ausência de separação das funções de acusar e julgar (aglutinação das funções nas mãos do juiz);

c) violação do princípio ne procedat iudex ex officio , pois o juiz pode atuar de ofício (sem prévia invocação);

d) juiz parcial;

e) inexistência de contraditório pleno;

f) desigualdade de armas e oportunidades.

Ora, a toda evidência, um inquérito criminal conduzido tanto pelo Poder Legislativo, quanto mais pelo Poder Judiciário, escapam ao controle externo ministerial, o que equivale a dizer que são conduzidos sem um sistema de freios e contrapesos (checks and balances), essencial num Estado Democrático de Direito.

Ocorre, que em relação do Poder Legislativo, como ele não possui a última palavra sobre o direito (juris dictio) e nem julga qualquer processo, é possível sustentar a constitucionalidade de seu inquérito excepcional, nos termos da Súmula 397/STF. Já em relação do Poder Judiciário isso é praticamente inverossímil, sobretudo quando tramita na última instância, sem possibilidade de acesso ao duplo grau de jurisdição 4

Assim, causa enorme estranheza jurídica quando, por exemplo, na Ação Penal nº 2.668, o Juiz Alexandre de Moraes questiona o delator Mauro Cid sobre o que falaram dele em reunião acerca da investida do golpe de Estado, ou quando afirma que na operação “punhal verde e amarelo” uma das vítimas seria ele mesmo, o que demonstra a inadequação para essa instrução tramitar no STF, por violação ao sistema acusatório e a imparcialidade judicial.5

Nesse sentido, em 24 de outubro de 2023, na ADI nº 6298-DF, a Corte Máxima havia decidido o seguinte sobre o sistema acusatório:

  • A estrutura acusatória do processo penal, prevista na primeira parte do dispositivo, apenas torna expresso, no texto do Código de Processo Penal, o princípio fundamental do processo penal brasileiro, extraído da sistemática constitucional, na esteira da doutrina e da jurisprudência pátrias.

  • Deveras, na lição de Luigi Ferrajoli “A separação de juiz e acusação é o mais importante de todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório, como pressuposto estrutural e lógico de todos os demais” (Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal. 3ª ed., Madrid: Trotta, 1998. p. 567, tradução nossa).

  • Esta Corte assentou a compreensão de que “O princípio fundante do sistema ora analisado, a toda evidência, é o princípio acusatório, norma decorrente do due process of law (art. 5º, LIV, CRFB) e prevista de forma marcante no art. 129, I, da CRFB, o qual exige que o processo penal seja marcado pela clara divisão entre as funções de acusar, defender e julgar, considerando-se o réu como sujeito, e não como objeto da persecução penal” (ADI 4414, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 31/05/2012).

  • Deriva do princípio acusatório a vedação, a priori, à iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória das partes. A posição do juiz no processo é regida pelos princípios da imparcialidade e da equidistância, porquanto “[...] A separação entre as funções de acusar defender e julgar é o signo essencial do sistema acusatório de processo penal (Art. 129, I, CRFB), tornando a atuação do Judiciário na fase préprocessual somente admissível com o propósito de proteger as garantias fundamentais dos investigados” (ADI 4414, Relator Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 31/05/2012).

  • A legítima vedação à substituição da atuação probatória do órgão de acusação significa que o juiz não pode, em hipótese alguma, tornar-se protagonista do processo. Simultaneamente, remanesce a possibilidade de o juiz, de ofício: (a) “determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante ” (artigo 156, II); (b) determinar a oitiva de uma testemunha (artigo 209); (c) complementar a sua inquirição (artigo 212) e (d) “proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição” (artigo 385).

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Além de tudo, a nova figura do juiz das garantias não se aplica ao foro por prerrogativa de função, por haver lei própria regulando o procedimento, conforme definido pela Corte Constitucional na ADI nº 6298-DF, configurando uma garantia processual a menos aos investigados no STF.


3. Conclusão

Diante de todo o exposto, conclui-se que o foro privilegiado, nos termos da Constituição da República e conforme consolidado pelo Supremo Tribunal Federal na AP nº 937, somente subsiste enquanto o agente político estiver no exercício de suas funções, e desde que os supostos crimes estejam diretamente relacionados ao desempenho do cargo. Encerrado o mandato, como no caso do ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro a partir de 1º de janeiro de 2023, inexiste respaldo constitucional para a manutenção da competência do STF, salvo por fundamentos estranhos ao texto da Constituição, como eventuais razões de política judiciária.

No tocante ao sistema acusatório, é igualmente evidente que o modelo constitucional brasileiro não admite a condução de investigações penais por órgãos jurisdicionais, sob pena de grave violação ao princípio da imparcialidade do juiz e à separação de funções entre acusar e julgar.

Embora o artigo 43 do RISTF confira poderes investigativos em situações limitadas, tal dispositivo não pode prevalecer sobre as normas constitucionais que conferem à Polícia Federal a função de investigação criminal, pois se configura como Polícia Judiciária da União, e não somente do Poder Executivo.

Por conseguinte, a condução de investigações criminais diretamente por ministros do foro máximo, notadamente sem a participação efetiva e autônoma do órgão ministerial, compromete o devido processo legal, fragiliza o sistema de freios e contrapesos e afronta os pilares do Estado Democrático de Direito.

Em uma República que se pretende fiel à legalidade e à justiça, não se pode admitir flexibilizações ou exceções à Constituição com base em circunstâncias políticas ou conveniências institucionais, fora hipóteses caracterizadoras das crises constitucionais.


Referências bibliográficas

Alves, Leonardo Barreto Moreira. Processo Penal – Parte Geral. 15ª ed. - São Paulo: Juspodivm, 2025.

Lenza, Pedro. Direito Constitucional. 26ª. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022. (Coleção Esquematizado)

Lopes Junior, Aury. Direito processual penal. 17ª. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.


Notas

1 Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.

2 Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoregimentointerno/anexo/ristf.pdf

3 Lei Complementar nº 75 de 1993, art. 9º: O Ministério Público da União exercerá o controle externo da atividade policial por meio de medidas judiciais e extrajudiciais podendo: I - ter livre ingresso em estabelecimentos policiais ou prisionais; II - ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim policial; III - representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder; IV - requisitar à autoridade competente para instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da atividade policial; V - promover a ação penal por abuso de poder.

4 Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), art. 8º, 2, alinea “h”: Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZHN1lfv_G9c

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Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestre em Direito. Procurador Municipal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno Abdalla. As principais inconstitucionalidades da Ação Penal nº 2.668. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8108, 12 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115566. Acesso em: 5 dez. 2025.

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