Capa da publicação É possível indenizar a falta de afeto paterno?
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Dano moral por abandono afetivo na relação paterno-filial.

É possível obrigar a amar?

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25/11/2025 às 18:20
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O estudo sustenta que o abandono afetivo paterno-filial não gera dano moral indenizável, pois não há dever jurídico de amar nem ilícito civil na omissão afetiva.

Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar os argumentos contrários e favoráveis à responsabilização civil por dano moral decorrente do abandono afetivo paterno-filial. Destacam-se, entre eles, a ausência dos pressupostos da responsabilidade civil, a impossibilidade de o Direito impor a alguém o dever de amar e a não caracterização de conduta ilícita. Inicialmente, apresentam-se as noções gerais da responsabilidade civil, com enfoque em seus pressupostos e funções. Em seguida, examina-se a afetividade nas relações paterno-filiais e sua evolução histórica. Aborda-se, ainda, o conceito de abandono afetivo e os instrumentos jurídicos destinados a coibir sua prática. Na sequência, expõe-se a interpretação doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, analisando os principais argumentos favoráveis ao dever de indenizar e aqueles que evidenciam a impossibilidade de aplicação da responsabilidade civil aos pais por abandono afetivo.

Palavras-chave: responsabilidade civil; abandono afetivo; relação paterno-filial.


1. INTRODUÇÃO

O desenvolvimento humano exigiu constantes adaptações legislativas e judiciais, de modo a acompanhar as mutações ocorridas no seio da entidade familiar. As modernas concepções de família refletem uma compreensão que privilegia os laços afetivos, reconhecendo sua relevância na constituição e manutenção dessas relações.

Nesse contexto, paralelamente ao reconhecimento jurídico de novas formas de organização familiar, surgem situações em que pais e filhos não compartilham de uma convivência afetiva. Esse fenômeno tem gerado intenso debate doutrinário e jurisprudencial acerca da possibilidade — ou não — de responsabilização civil por danos morais em razão do abandono afetivo paterno-filial.

Trata-se de questão de elevada complexidade, que exige cautela do operador do Direito, a fim de evitar o estímulo à chamada "indústria do dano moral".

Diante das significativas divergências existentes sobre o tema, justifica-se o presente estudo, que tem por objetivo apresentar, analisar e avaliar os fundamentos que apontam para a impossibilidade de responsabilização civil do pai que não mantém vínculo afetivo com o filho, bem como verificar a plausibilidade dos argumentos favoráveis à reparação.


2. CONCEITOS E PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A expressão responsabilidade advém do latim “respondere”, que, por sua vez, representa a obrigação que alguém tem de assumir com as consequências jurídicas de sua atividade. Este vocábulo possui raiz latina – “spondeo”, fórmula utilizada nos contratos verbais do Direito Romano para vincular o devedor a uma determinada obrigação. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011).

A responsabilidade civil, inicialmente lastreada na autotutela, tem suas raízes nas civilizações primitivas quando os cidadãos lesados utilizavam-se da vingança privada contra aquele que ocasionou determinado prejuízo. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011).

Com a evolução histórica, aboliu-se a reparação violenta baseada na retribuição do mal pelo mal, introduzindo-se a culpa como elemento caracterizador da responsabilidade extracontratual e estabelecendo-se o caráter indenizatório da pena.

Grande marco desse progresso foi a Lex Aquilia, plebiscito aprovado provavelmente nos fins do século III ou início do século II a.C., que passou a aplicar uma punição àquele que praticasse conduta lesiva aos bens de terceiros. A penalidade consistia no pagamento de determinada quantia em dinheiro ao detentor dos bens destruídos ou deteriorados. (VENOSA, 2006).

Observa-se que a responsabilidade civil é elemento intrínseco da própria vida social, tendo em vista que os diversos comportamentos humanos podem ensejar uma convivência conflituosa.

A noção desse instituto vincula-se ao dever de ressarcimento dos prejuízos ocasionados pela violação de uma norma jurídica ou de um dever de conduta. Desse modo, a responsabilidade surge em consequência do descumprimento de uma obrigação, o que lhe confere a característica de dever jurídico sucessivo. (GONÇALVES, 2007).

De acordo com Sílvio Rodrigues (2007, p. 06), “a responsabilidade civil é a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam”.

Nos dizeres de Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 51):

A noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, às consequências do seu ato (obrigação de reparar). Trazendo esse conceito para o âmbito do Direito Privado, e seguindo essa mesma linha de raciocínio, diríamos que a responsabilidade civil deriva da agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando, assim, o infrator, ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura o estado anterior de coisas.

Conforme preceitua o art. 186. do Código Civil, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. (BRASIL, 2002).

Em sequência, o art. 187. estabelece que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. (BRASIL, 2002).

Como afirma Sílvio de Salvo Venosa (2005, p. 573), essa ilicitude “diz respeito à infringência de norma legal, à violação de um dever de conduta, por dolo ou culpa, que tenha como resultado prejuízo de outrem”.

O ato ilícito gera, pois, o dever de indenizar, conforme prevê o art. 927. do Código Civil, segundo o qual “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. (BRASIL, 2002).

O dever de reparar o dano assenta-se na ideia de se restaurar o equilíbrio patrimonial ou moral lesados. Como ensina Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 01) “o interesse em restabelecer a harmonia e o equilíbrio violados pelo dano constitui a fonte geradora da responsabilidade civil”.

Para tanto, faz-se necessária a presença de alguns pressupostos, quais sejam: a conduta, o dano, o nexo de causalidade entre essa ação e o dano suportado e, por fim, a culpa do agente. É o que afirma Sílvio de Salvo Venosa (2005, p. 575):

Para que surja o dever de indenizar, é necessário, primeiramente, que exista ação ou omissão do agente; que essa conduta esteja ligada por relação de causalidade com o prejuízo suportado pela vítima e, por fim, que o agente tenha agido com culpa. Faltando algum desses elementos, desaparece o dever de indenizar.

A conduta humana, primeiro elemento da responsabilidade civil, consiste na ação ou omissão voluntária que transgride um dever e venha a causar um dano alheio. Dessa forma, “o núcleo fundamental, portanto, da noção de conduta humana é a voluntariedade, que resulta exatamente da liberdade de escolha do agente imputável, com discernimento necessário para ter consciência daquilo que faz”. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 27).

Assim, o comportamento comissivo ou omissivo do agente deve ser resultado de seu arbítrio, reconhecendo-se, como pressuposto da responsabilidade civil, apenas a conduta humana guiada pela vontade. Entretanto, cumpre observar que a voluntariedade não se traduz, essencialmente, na intenção de provocar o dano, mas sim na consciência do que se está praticando.

É importante mencionar que o Código Civil, fundamentado no dever de custódia e vigilância, prevê a responsabilização por ato de terceiro que esteja sob a guarda do agente, bem como do dono de animal que provocar dano.

Outro pressuposto da responsabilidade civil é o dano, que diz respeito ao prejuízo experimentado pela vítima. Considerado por Gagliano e Pamplona Filho (2011) como a “pedra de toque” da responsabilidade civil, a ocorrência do dano é indispensável para sua configuração.

Não há dever de indenizar sem que exista dano, sem que a vítima tenha sofrido um prejuízo, uma lesão ao bem jurídico, ou seja, “somente haverá possibilidade de indenização, como regra, se o ato ilícito ocasiona dano”. (VENOSA, 2006, p. 29).

Segundo elucida Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 36), “sem a prova do dano, ninguém pode ser responsabilizado civilmente”, de modo que “a inexistência do dano é óbice à pretensão de uma reparação, aliás, sem objeto”. (GONÇALVES, 2007, p. 36).

O dano pode ser material ou moral. O dano patrimonial é aquele suscetível de avaliação pecuniária e ocorre quando a vítima é ofendida em seus atributos econômicos, em seus interesses pecuniários. Abrange o dano emergente (efetivo prejuízo sofrido pelo lesado) e os lucros cessantes (correspondente ao que a vítima deixou de auferir em consequência do dano).

Lado outro, o dano moral resulta da lesão aos direitos da personalidade (direito à dignidade, à honra, ao nome, à intimidade, à privacidade, à liberdade, à reputação), afetando a vítima de forma íntima. É resultado da lesão aos bens extrapatrimoniais sem qualquer cunho econômico, ocasionando uma dor psíquica ou um desconforto comportamental

À luz das análises de Gagliano e Pamplona Filho (2011), para que o dano seja passível de indenização, exige-se a presença de determinados requisitos: (i) violação de um interesse jurídico, seja ele patrimonial ou extrapatrimonial, de pessoa física ou jurídica; (ii) certeza e efetividade do dano; e (iii) sua subsistência no tempo.

Em outras palavras, somente haverá reparação quando configurados a agressão a um bem juridicamente tutelado, a existência de um dano certo e concreto e a ausência de reparação espontânea por parte do agente causador. Trata-se, portanto, de uma conjugação de elementos sem os quais não se admite o ressarcimento.

Outro pressuposto essencial da responsabilidade civil é o nexo causal, entendido como a relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o prejuízo suportado pela vítima. Tal requisito é indispensável para identificar a quem se deve atribuir a responsabilidade pelo dano.

Constitui a “relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente e o dano verificado”. (GONÇALVES, 2007, p. 36). Pode, também, ser definido como “o liame que une a conduta do agente ao dano”. (VENOSA, 2006, p. 42).

A identificação do nexo causal é necessária, ainda, para que seja responsabilizado somente aquele cujo comportamento violou direito alheio e ocasionou o dano verificado.

Finalmente, surge a culpa como último pressuposto da responsabilidade civil. Em sentido amplo, a culpa pode ser entendida como “a inobservância de um dever que o agente devia conhecer e observar”. (VENOSA, 2006, p. 21)

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A princípio, cumpre salientar que a presença ou não do elemento culpa é o que distingue a responsabilidade civil subjetiva da objetiva.

Na responsabilidade objetiva, não se exige a aferição de culpa do agente. Nesses casos, a obrigação de reparar o dano decorre exclusivamente da relação de causalidade entre a conduta e o prejuízo, seja por expressa previsão legal, seja por prescindir totalmente da demonstração de culpa.

Por sua vez, a responsabilidade subjetiva funda-se na culpa, sendo indispensável sua comprovação para que se configure a obrigação de indenizar. Assim, somente mediante a demonstração de conduta culposa ou dolosa do agente é possível imputar-lhe a responsabilidade pelo dano causado.

A ideia da culpa engloba o dolo e a culpa em sentido estrito. Dolo é “a violação deliberada, consciente, intencional, do dever jurídico”. (GONÇALVES, 2007, p. 35). O ato doloso é caracterizado pela intenção de violar um direito, pela vontade de se alcançar o resultado obtido.

A culpa em sentido estrito dá-se nos atos produzidos por negligência (falta de observância do dever de cuidado), imperícia (falta de habilidade ou aptidão específica para o exercício de determinada atividade) ou imprudência (ação contrária às regras de cautela).

Todavia, convém mencionar que tanto os atos dolosos quanto os culposos geram a obrigação de indenizar. O que interessa é “verificar se o agente agiu com culpa civil, em sentido lato, pois, como regra, a intensidade do dolo ou da culpa não deve graduar o montante da indenização”. (VENOSA, 2005, p. 22).

Presentes todos os pressupostos, surge o dever de indenizar, ou seja, a obrigação de reparar o dano suportado pela vítima em decorrência de uma conduta comissiva ou omissiva que viole um dever jurídico.

Além da natureza compensatória, a indenização imposta possui caráter de sanção que se constitui na repreensão pela violação da ordem jurídica e consequente desequilíbrio social produzido.

Em sendo assim, a responsabilização civil objetiva tanto compensar o dano sofrido pela vítima, retornando ao status quo ante, seja pela reposição do bem perdido ou pelo pagamento de certa quantia indenizatória, como também possui a função de punir o ofensor, induzindo-o a não mais praticar atos lesivos, assim como, persuadir, mesmo que de forma indireta, a própria sociedade, demonstrando que tais condutas não serão toleradas

No que se refere às formas de reparação de danos, Gagliano e Pamplona Filho (2011) afirmam que a forma mais adequada é a reposição natural do bem ao estado em que se encontrava antes do dano. Contudo, quando isso não for possível, admite-se a prestação pecuniária substitutiva. Ainda, é aceita a cumulação da reposição natural com a indenização pecuniária nos casos em que o conserto da coisa não satisfaça suficientemente o ofendido.

Quanto à reparabilidade do dano extrapatrimonial, cumpre destacar que, com o advento da Constituição Federal de 1988, passou a ser expressamente prevista a possibilidade de indenização por dano moral, o que gerou certa divergência doutrinária quanto à natureza jurídica dessa reparação (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011).

Uma corrente entende que, diante da impossibilidade de restaurar o status quo ante, o pagamento efetuado pelo agente causador do dano possui caráter estritamente sancionatório, configurando uma imposição de castigo e afastando-se, assim, do objetivo reparatório ou compensatório tradicional da responsabilidade civil.

Em contrapartida, há quem sustente que a reparação em tais hipóteses possui função compensatória, atenuando os prejuízos sofridos, de modo que o quantum indenizatório assume caráter satisfatório.

O fato é que, quando a vítima pleiteia reparação pecuniária em razão de dano moral, não se pode negar a existência de uma pretensão de punir o lesante, ainda que tal finalidade não seja manifestada de forma explícita

A responsabilidade civil no âmbito do Direito de Família tem despertado crescente atenção da doutrina e da jurisprudência, sobretudo quando se analisa o abandono afetivo nas relações paterno-filiais. Tal discussão ultrapassa o mero exame da obrigação legal de sustento ou cuidado material, envolvendo também deveres de natureza emocional e psicológica, cuja violação pode gerar repercussões danosas de ordem extrapatrimonial.

A discussão da reparabilidade do suposto dano moral decorrente do abandono afetivo é ainda é incipiente na jurisprudência pátria, embora esteja sendo frequentemente ventilada nos debates doutrinários em que se questiona o cabimento ou não da indenização.

A ausência de legislação específica impulsiona a existência de inúmeros argumentos favoráveis e contrários a tal indenização que, para alguns, possuiria função reparatória e pedagógica, enquanto, para outros, significaria a monetarização do afeto.

Fato é que a ausência e a omissão de afeto não caracterizam nenhum tipo de ato ilícito que possa dar ensejo ao dever de indenizar, até mesmo por falta de previsão legal.


3. O ABANDONO AFETIVO E AS RELAÇÕES FAMILIARES

A família constitui a base da vida em sociedade, motivo pelo qual o Estado demonstra especial preocupação em assegurar sua proteção como instrumento de promoção da paz e da harmonia social. Ao longo do tempo, o organismo familiar passou por transformações significativas, rompendo com os padrões tradicionais de famílias formadas exclusivamente pelo casamento matrimonial e com aquelas estruturadas sob o modelo patriarcal, em que o pai detinha posição central. A ênfase contemporânea recai, cada vez mais, sobre a valorização dos vínculos afetivos presentes nas relações familiares.

Todavia, nem sempre foi assim. Por longo período, a legislação permaneceu omissa quanto à regulação das relações familiares informais, sem, contudo, impedir o surgimento de uniões desprovidas de respaldo legal. Diante de demandas judiciais envolvendo os participantes desses vínculos, os magistrados se viram compelidos a criar alternativas capazes de evitar injustiças evidentes e contornar restrições legais para o reconhecimento de direitos (DIAS, 2010).

O fenômeno contemporâneo da multiparentalidade, caracterizado pela pluralidade de modelos familiares, reforça a necessidade de reconhecimento de diferentes tipos de relacionamentos estruturados pelo elo afetivo (BRAGA, 2011). Tal cenário impôs uma renovação legislativa capaz de acompanhar as profundas transformações econômicas, sociais, políticas e culturais decorrentes do progresso humano. Como observa Sílvio de Salvo Venosa (2005, p. 33), “o país sentia necessidade de reconhecimento da célula familiar independentemente da existência de matrimônio”.

Nesse sentido, assevera Maria Berenice Dias (2010, p. 41):

O pluralismo das relações familiares ocasionou mudanças na própria estrutura da sociedade. Rompeu-se o aprisionamento da família nos modelos restritos do casamento, mudando profundamente o conceito de família. A consagração da igualdade, o reconhecimento da existência de outras estruturas de convívio, a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação na família.

Como reflexo dessas transformações sociais, a promulgação da Constituição Federal de 1988 representou marco na proteção das relações familiares, ao estabelecer, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, que o vínculo afetivo constitui elemento essencial para a caracterização da família, prescindindo-se da formalidade do casamento para seu reconhecimento.

A nova ordem constitucional não apenas reconheceu a existência de diferentes configurações familiares, mas também conferiu especial atenção à união estável e aos arranjos familiares formados por apenas um dos genitores e seus descendentes, ampliando a tutela jurídica às múltiplas formas de convivência afetiva e materialmente dependente

E assim prossegue a festejada doutrinadora:

Nos dias de hoje, o que identifica a família não é nem a celebração do casamento nem a diferença de sexo do par ou o envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo. (DIAS, 2010, p. 42).

O direito de família contemporâneo valoriza, sobretudo, os vínculos afetivos entre os membros da família, em detrimento do mero vínculo jurídico. A legislação brasileira procura afastar interesses puramente sanguíneos ou patrimoniais, ressaltando a importância do afeto e da convivência espontânea. Embora não expressamente previsto, a afetividade passou a ser reconhecida pela doutrina como princípio jurídico fundamental.

Nesse contexto, discute-se a possibilidade de reparação de danos decorrentes do abandono afetivo paterno-filial, que ocorre quando um dos pais deixa de prover atenção emocional ao filho, ainda que cumpra suas obrigações materiais.

Contribuição relevante nesse tema é apresentada por Gabriela Soares Linhares Machado (2012), ao definir o abandono afetivo paterno-filial:

O abandono afetivo nada mais é do que a atitude omissiva do pai no cumprimento dos deveres de ordem moral decorrentes do poder familiar, dentre os quais se destacam os deveres de prestar assistência moral, educação, atenção, carinho, afeto e orientação à prole.

Nessa mesma linha é o conceito apresentado por Ulbano e Angeluci (2008, p. 176) ao mencionarem que o abandono afetivo “é configurado pela indiferença, ausência de assistência afetiva e amorosa”.

A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente asseguram à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar e comunitária, atribuindo seu cumprimento à família, à sociedade e ao Estado.

Trata-se de um direito indisponível, cuja proteção se estende a todas as formas de família, incluindo aquelas compostas por apenas um dos pais e seus filhos ou por irmãos entre si. A legislação não impõe tal dever apenas aos genitores, mas a todos os integrantes dos diferentes arranjos familiares, reconhecendo que a família moderna se caracteriza principalmente pelos vínculos afetivos

Por outro lado, observa-se que inexiste previsão legal que atribua aos pais o dever de prestar afeto aos filhos, notadamente pelo fato de que “o afeto não é um sentimento imposto que pode ser convencionado pelas pessoas, e sim um sentimento que decorre naturalmente, não podendo ser cobrado de ninguém”. (DINIZ, 2009, p. 01).

Nesse sentido, a convivência assegurada à criança e ao adolescente é aquela espontânea, baseada no afeto existente entre os membros do grupo familiar. Não se pode relacionar essa obrigação ao vínculo biológico, pois, se assim fosse, estaria construído um convívio compulsório, sem qualquer relação de amor, o que seria ineficaz ou até mesmo prejudicial para o desenvolvimento da criança e do adolescente.

No que se refere à relação entre pais e filhos, a ausência de afeto não pode ser considerada ato ilícito, uma vez que não é possível obrigar a existência de vínculo afetivo apenas pelo fato de haver parentesco biológico. O afeto, nas relações parentais, não possui natureza de obrigação jurídica, e sua inexistência não configura violação de dever legal.

Segundo Samir Nicolau Nassralla (2010, p. 17), ao analisar o abandono afetivo, tal conduta caracteriza-se como uma falha de ordem moral, mas não jurídica, já que não há descumprimento de dever legal.

Assim, a postura do pai que não oferece carinho ou atenção ao filho afronta apenas valores éticos, devendo ser reprovada pela própria consciência do agente. O Estado não pode intervir nesse campo, pois normas morais carecem de coercibilidade e dizem respeito a uma escolha subjetiva do indivíduo.

Não cabe ao direito impor o dever de amar, nem responsabilizar juridicamente o pai pela ausência de afeto, visto que sentimentos não podem ser tratados como obrigação legal. Ademais, a falta de carinho pode decorrer de fatores íntimos ou até de circunstâncias externas, como situações provocadas pelo genitor responsável pela guarda da criança.

A família, na concepção atual, é reconhecida como núcleo essencial de proteção, apoio e estabilidade emocional da criança. Todavia, esse ambiente nem sempre conta com a presença ativa do pai.

É dever de ambos os pais prover o sustento e a educação dos filhos. Contudo, afeto, atenção e carinho são atitudes que devem surgir de forma espontânea, e não por imposição. O contato entre pai e filho, portanto, assume caráter estritamente moral.

Não há comprovação científica de que a ausência de afeto paterno cause, de maneira direta, prejuízos psicológicos à criança ou ao adolescente. Embora alguns autores sustentem que a falta de carinho pode gerar sentimentos de rejeição e dificuldades de relacionamento futuro, tais consequências são apenas hipóteses, sem certeza científica.

O ser humano, ao longo da vida, vivencia inúmeras situações capazes de provocar distúrbios psicológicos, o que impossibilita atribuir de forma absoluta problemas da fase adulta ao abandono afetivo sofrido na infância ou adolescência.

Por fim, ressalta-se que existem meios coercitivos adequados para garantir o cumprimento das obrigações parentais de caráter legal.

O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, em seu art. 213, § 2º, a possibilidade de fixação de multa diária ao genitor que descumprir obrigação de fazer relacionada ao filho. Tal previsão legal poderia, em tese, ser aplicada caso se entendesse que o dever de prestar afeto e atenção ao filho constitui obrigação jurídica.

Assim, se o afeto fosse considerado um dever legalmente exigível, seria cabível a utilização da ação de cumprimento de obrigação de fazer, inclusive com a imposição de multa cominatória (astreinte) para assegurar seu cumprimento.

Além disso, cogita-se ainda a aplicação de medidas mais severas, como a suspensão ou mesmo a destituição do poder familiar, entendendo-se que “um pai ou uma mãe que não convive com o filho não merece ter sobre ele qualquer tipo de direito” (NASSRALLA, 2010, p. 24). Nesse sentido, o art. 1.637, inciso II, do Código Civil prevê a perda do poder familiar quando caracterizado o abandono da criança por parte de qualquer dos genitores.

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Sobre o autor
Felix Fernando Junio Vieira

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Felix Fernando Junio. Dano moral por abandono afetivo na relação paterno-filial.: É possível obrigar a amar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8182, 25 nov. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115585. Acesso em: 5 dez. 2025.

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