4. A (IM)POSSIBILIDADE DA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS PAIS POR ABANDONO AFETIVO
A doutrina ainda não apresenta consenso quanto à viabilidade de responsabilizar civilmente os pais que deixam de exercer o dever de afeto em relação aos filhos. Como observa Fernando Roggia Gomes (2011, p. 304), trata-se de tema relativamente recente, cuja discussão sobre a (im)possibilidade de responsabilização civil dos genitores pelo abandono afetivo de filhos menores permanece controvertida e suscita diferentes entendimentos.
Nesse mesmo sentido, Gabriela Soares Linhares Machado (2012, p. 02) aponta a existência de duas correntes antagônicas acerca da aplicação da reparação civil nos casos de abandono afetivo:
A primeira entende que é possível a reparação civil, utilizando como argumentos o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o princípio implícito da afetividade, bem como o princípio da proteção integral da criança e do adolescente. Por outro lado, a segunda corrente entende não ser possível a reparação pecuniária nos casos de abandono afetivo, sob pena de se quantificar o amor, sem se esquecer do fato de que ninguém pode ser obrigado a amar.
Os defensores da responsabilização civil do pai pelo abandono afetivo sustentam que a presença paterna é essencial ao desenvolvimento psicológico e emocional equilibrado da criança. Argumentam que a ausência de convivência pode gerar sérios impactos na formação do menor, como dificuldades de relacionamento, maior vulnerabilidade ao uso de drogas, além de riscos de marginalização e envolvimento com a criminalidade.
Maria Berenice Dias (2010, p. 417) ressalta que, quando comprovado que a falta de convívio compromete o desenvolvimento saudável do filho, a omissão paterna caracteriza um dano afetivo passível de indenização.
Na mesma linha, Madaleno (2008, apud GOMES, 2011, p. 304) observa que a criança não dispõe de maturidade suficiente para compreender a ausência do genitor, o que justifica a responsabilização civil daquele que a priva do convívio e da necessária referência paterna.
O autor acrescenta, ainda, que o acolhimento afetivo é componente essencial do crescimento moral e psíquico do menor, cabendo ao pai garanti-lo. A recusa em prestar esse cuidado gera traumas e danos de ordem moral, configurando ilicitude civil passível de reparação.
Para Denise Menezes Braga (2011, p. 65):
Estabelecida exata correlação entre o afastamento paterno e o desenvolvimento de sintomas psicopatológicos no filho, comprovado o comprometimento da sua saúde física e psicológica em razão do eventual fracasso do laço paterno, é passível falar-se de indenização por abandono afetivo com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana, cuja previsão encontra guarida no art. 1º, III da Carta Magna.
Em contraposição a esses entendimentos, os que rejeitam a possibilidade de reparação civil pelo abandono afetivo argumentam que a indenização implicaria transformar o afeto em mercadoria.
Conforme ressalta Lizete Schuh (2006, p. 75, apud MACHADO, 2012, p. 02), a indenização teria caráter meramente punitivo, reforçando um processo de mercantilização das relações familiares.
Além disso, sustenta-se que a aplicação de sanção pecuniária poderia acabar por compelir o pai a manter vínculos afetivos com o filho de maneira artificial, motivado apenas pelo temor das consequências jurídicas de uma eventual demanda judicial.
Muitos pais, não por amor, mas por temer a Justiça, passarão a exigir o direito de participar ativamente da vida do filho. Ainda que seja um mau pai, fará questão da convivência, e a mãe, zelosa, será obrigada a partilhar a guarda com alguém que claramente não possui qualquer afeto pela criança. A condição de amor compulsório poderá ser ainda pior que a ausência. Teremos, então, a figura do abandono do pai presente, visto que não é preciso estar distante fisicamente para demonstrar a falta de interesse afetivo. (CASTRO, 2009, p. 01).
Defende-se ainda que a imposição de um relacionamento afetivo pode gerar efeitos extremamente negativos para a criança ou adolescente. Nesse sentido, sustenta-se que a convivência forçada pode ser ainda mais prejudicial do que a ausência paterna em si, pois cria um vínculo artificial, desprovido de genuíno afeto.
Outro ponto levantado refere-se ao impacto do processo judicial sobre a relação entre pai e filho. Para alguns autores, a judicialização tende a afastar ainda mais as partes, dificultando qualquer possibilidade de reaproximação futura. Leonardo Castro (2009, p. 01) destaca que, após o litígio, pode surgir uma barreira intransponível, capaz de inviabilizar definitivamente qualquer tentativa de reconciliação.
Na mesma linha é o pensamento de Murilo Sechieri Costa Neves (2012, p. 01):
Se já havia uma relação deteriorada – ou até mesmo falta de relação – entre os sujeitos, após o pleito indenizatório, acolhido ou rejeitado o pedido, é praticamente impossível que sejam estabelecidos laços que gerem uma convivência saudável entre as pessoas. A simples existência de litígio judicial a esse respeito, na qual são verbalizadas mágoas tão intensas e profundas, é suficiente para sepultar, em definitivo, qualquer esperança de que a relação entre tais pessoas pudesse vir a ser transformada positivamente.
A tese contrária à reparação civil também se ampara na inexistência de previsão legal específica sobre o abandono afetivo, sustentando-se que tal conduta não corresponde à violação de norma jurídica.
Renan Kfuri Lopes (2006, p. 54, apud MACHADO, 2012, p. 02) enfatiza que o descumprimento dos deveres familiares acarreta apenas consequências no âmbito do direito de família, refletindo no plano emocional e psicológico da relação, sem gerar, contudo, responsabilidade civil indenizatória.
Sob essa perspectiva, os adeptos dessa corrente defendem que não cabe ao ordenamento obrigar alguém a amar, tampouco compete ao Poder Judiciário impor a manutenção de um vínculo afetivo entre pai e filho. Danielle Alheiros Diniz (2009, p. 02), embora reconheça o avanço da responsabilidade civil e do direito de família no Brasil, adverte que certas questões jamais poderão ser tuteladas judicialmente, sendo o amor uma delas, pois o afeto não pode constituir objeto de ação.
Apesar dessas resistências, a discussão chegou aos tribunais brasileiros, com diversos filhos pleiteando indenização por danos morais em razão da ausência de convivência afetiva com seus genitores.
O primeiro julgamento registrado sobre o tema ocorreu em setembro de 2003, no processo nº 141/1.03.0012032-0, perante a 2ª Vara Cível da Comarca de Capão da Canoa/RS. Na ocasião, embora o Ministério Público tenha opinado pela improcedência do pedido sob o fundamento de que não se pode condenar alguém pela ausência de amor, o magistrado condenou o pai revel ao pagamento de R$ 48 mil a título de indenização, decisão que transitou em julgado (DINIZ, 2009).
Posteriormente, em julgamento de grande repercussão, a 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao analisar a Apelação Cível nº 2.0000.00.408550-5/000, reformou sentença que havia rejeitado o pedido por ausência de nexo causal entre os transtornos psicológicos do menor e o afastamento paterno. Nessa oportunidade, o tribunal reconheceu o dano e condenou o réu ao pagamento de R$ 44 mil, decisão que suscitou amplos debates jurídicos e midiáticos
Inconformado com a condenação, o pai impetrou Recurso Especial nº 757.411 que foi conhecido e provido, por maioria dos votos. Trata-se da primeira ação envolvendo o tema a chegar ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa ficou assim redigida:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.
1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159. do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária.
2. Recurso especial conhecido e provido.
No voto do Ministro Relator Fernando Gonçalves, ressaltou-se que a legislação já prevê a perda do poder familiar como sanção nos casos de abandono do filho. O magistrado também destacou que a via judicial não seria capaz de suprir a carência afetiva da criança e, ao contrário, poderia agravar ainda mais a relação entre pai e filho.
A jurisprudência, por sua vez, não apresenta uniformidade sobre o tema. Exemplo disso é o julgamento da Apelação Cível nº 1.0194.09.099785-0/001, proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 07 de fevereiro de 2013, no qual foi confirmada a sentença que rejeitava a indenização, sob o fundamento de que ninguém pode ser compelido a amar outra pessoa, pois o afeto pressupõe reciprocidade. Cita-se:
“APELAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ABANDONO AFETIVO. AUSÊNCIA DE CONDUTA ILÍTICA. INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. O abandono afetivo do pai em relação aos filhos, ainda que moralmente reprovável, não gera dever de indenizar, por não caracterizar conduta antijurídica e ilícita.”
Por outro lado, em decisão mais recente sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.159.242, em 24 de abril de 2012, reconheceu a possibilidade de compensação por danos morais em razão do abandono afetivo.
Constata-se, assim, que a indenização decorrente da ruptura do vínculo afetivo entre pai e filho é tema marcado por intensa divergência, tanto no campo doutrinário quanto na esfera jurisprudencial. Trata-se de questão altamente controvertida, cujo exame deve considerar as regras gerais da responsabilidade civil.
Para a configuração do dever de indenizar, é necessário que estejam presentes todos os requisitos: a conduta culposa do genitor, o dano efetivamente sofrido pelo filho e o nexo causal entre o comportamento omissivo e o prejuízo experimentado.
Nesse contexto, Neves (2012) ressalta que a responsabilidade civil somente se caracterizaria mediante a violação de um dever jurídico, o qual, no caso, seria identificado como a obrigação de dedicar afeto ao filho.
Todavia, o art. 5º, inciso II, da Constituição Federal dispõe que ninguém pode ser compelido a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Como não existe no ordenamento jurídico brasileiro norma que imponha expressamente o dever de amar, não se pode considerar juridicamente relevante a conduta de não ofertar afeto, afastando-se, por conseguinte, a responsabilização civil
Em segundo lugar, somente será indenizável o dano certo e efetivo, o que não ocorre quando o dano é psicológico, como afirma Danielle Alheiros Diniz (2009, p. 01):
Quanto ao dano, para ser indenizável ele precisaria ser certo e injusto. No caso do abandono afetivo o dano seria o psicológico, não podendo ser dado como certo e injusto. Injusto é o dano causado voluntariamente, que podia ser evitado pelo agente. Nas relações familiares há condutas naturais dotadas de sentimento que não dependem da vontade da pessoa. Não é questão de ser justo ou não os pais amarem o filho, mas sim uma questão natural para a qual ninguém pode ser compelido. Outrossim, o dano causado pelo abandono afetivo jamais poderá ser configurado como certo, pois nada fará cessá-lo, nem mesmo o fim de uma ação judicial que indenize o filho em pecúnia. Quiçá, com o trâmite processual, o dano até aumente devido aos desgastes que uma ação traz para os seus litigantes.
Por fim, não se identifica um nexo de causalidade claro entre a ausência de afeto do pai e eventuais danos psicológicos sofridos pelo filho, considerando que tais efeitos podem decorrer de múltiplos fatores presentes na sociedade moderna, como pressões sociais, injustiças, descaso estatal ou até mesmo os impactos da separação dos pais.
Isso significa que os sintomas atribuídos ao abandono afetivo podem ter origens diversas, não se limitando à ausência do convívio paterno. O desenvolvimento emocional e psicológico do menor é influenciado pelo ambiente em que vive, pelas pessoas ao seu redor, pelos relacionamentos que mantém e até por características individuais.
Não é razoável presumir que toda criança ou adolescente que apresente alterações psicológicas e tenha crescido sem a presença do pai terá sua personalidade negativamente impactada apenas pela falta de referência paterna.
Da mesma forma, não se pode afirmar que o abandono afetivo configure ilícito por violação do dever de garantir ao filho o direito à convivência familiar, uma vez que o convívio familiar é dever da família como um todo, entendida como grupo de pessoas unidas por vínculos afetivos, não se tratando de obrigação legal exclusiva dos pais.
Diante disso, embora os argumentos favoráveis à reparação civil do abandono afetivo sejam respeitáveis, eles não são suficientes para fundamentar a tese da indenização, especialmente porque não estão presentes os pressupostos essenciais da responsabilidade civil, sem os quais não se pode falar em dever de indenizar.
O voto do Ministro Massami Uyeda, no já mencionado Recurso Especial nº 1.159.242, salientou que o Tribunal não poderia reconhecer o direito à indenização pela ausência do afeto paterno, sob pena de se potencializar e quantificar as mágoas íntimas.
Dessa forma, percebe-se que nem a legislação nem a jurisprudência podem impor um modelo ideal de convivência afetiva. Caso assim fosse, o Judiciário correria o risco de se tornar um instrumento para que as pessoas resolvessem frustrações, decepções e perdas próprias da experiência humana.
Nesse contexto, cabe destacar as reflexões de Murilo Sechieri Costa Neves (2012, p. 01), que adverte que, sob o aspecto psicológico, o eventual reconhecimento judicial da ausência de afeto — ao reforçar sentimentos de abandono, rejeição e desamparo — poderia, na verdade, dificultar ainda mais que a criança ou adolescente superasse os danos experimentados.
Ademais, a legislação já prevê a perda do poder familiar como medida punitiva e preventiva, adequada para responsabilizar o genitor que abandona o filho. Por outro lado, a imposição de uma indenização financeira em razão da falta ou insuficiência de vínculo afetivo equivaleria a atribuir valor monetário ao amor, o que se mostra incompatível com a natureza do afeto.
Nas palavras de Leonardo Castro (2009, p. 01), “se a solução para o problema fosse o dinheiro, a própria pensão alimentícia atenderia o objeto da reparação”.
Todavia, mesmo que a legislação brasileira venha a ser alterada, é fundamental destacar que, para que seja cabível a indenização pelo suposto dano sofrido pelo filho, é necessário que estejam presentes todos os pressupostos da responsabilidade civil, conforme previsto no ordenamento jurídico vigente. Além disso, não há qualquer dúvida de que não existe dever jurídico de amar.