4. Críticas ao princípio da separação de funções porque confundido com o mito dos três poderes de Montesquieu e dos Federalistas. Necessidade de desfazer a confusão
Por confundir o mito antidemocrático dos três poderes de Montesquieu e dos Federalistas com o princípio da separação de funções, muitos autores, querendo atacar o mito dos três poderes, atacam o princípio da separação de funções. Foi o caso de Bonavides que, no seu livro “Do Estado Liberal ao Estado Social”, quis, na verdade, atacar o mito dos três poderes de Montesquieu, mas, por confundi-lo com o princípio da separação de funções, atacou o princípio:
[...] Esteio sagrado do liberalismo foi, sem dúvida, o dogma da separação de poderes (...) Teve o princípio, incontestavelmente, na infância do constitucionalismo moderno seu momento de apogeu (...) Esse princípio... já não oferece, em nossos dias, o fascínio das primeira idades do constitucionalismo ocidental (...) foi, no combate aos déspotas do absolutismo, a arma mais eficaz. Quando cuidamos de abandoná-lo no museu da Teoria do Estado queremos, com isso, evitar apenas que seja ele, em nossos dias, a contradição dos direitos sociais, a cuja concretização se opõe, de certo modo, como técnica dificultosa e obstrucionista, autêntico tropeço, de que inteligentemente se poderiam socorrer os conservadores mais perspicazes e renitentes da burguesia, aqueles que ainda supõem possível tolher e retardar o progresso das instituições... Pretender conservá-lo, porém, como dogma, em justificações descabidas para a atualidade, é o que nos parece inaceitável (...) Os povos europeus pediam também a liberdade, tanto quanto o inglês. E no exemplo das bem-sucedidas reivindicações inglesas do século XVII, que instauraram definitivamente o sistema liberal, buscavam a base teórica de suas aspirações. Foram encontrá-la ao engendrarem a técnica da divisão dos poderes, pois a unidade do poder, se abertamente esposada, como na Inglaterra, por parte da aristocracia, implicaria, no Continente, sua remoção do monarca para o povo. Queriam assim evitar que o poder recaísse no povo. Estabelecida a antinomia soberano – povo, do seu seio destaca-se uma classe: a burguesia. Esta pretende escalar o poder, amparando-se constitucionalmente na técnica separatista. Sem a separação dos poderes, ter-se-ia a vitória do princípio democrático, como expôs mais tarde Rousseau. Montesquieu advogava o princípio liberal, abraçava a solução intermediária, relativista, que, de um lado, afastava o despotismo do rei e, de outro, não entregava o poder ao povo (...) Montesquieu interpretou preconcebidamente a Constituição inglesa, para servir aos fins da revolução...
(BONAVIDES, 2001, pp. 64 e 70) (negritos nossos).
Outros autores também caem na mesma confusão crítica. Por exemplo, Dallari nos comunica das críticas dele e de outros autores, que, na verdade, querem criticar o mito de Montesquieu e dos Federalistas, mas, por confundi-lo com o princípio da separação de funções criticam o princípio, e terminam aceitando a permanência do mito:
[...] O sistema de separação de poderes, consagrado nas Constituições de quase todo o mundo, foi associado à ideia de Estado Democrático e deu origem a uma engenhosa construção doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrapesos (...) Como se tem observado, a separação de poderes foi concebida num momento histórico em que se pretendia limitar o poder do Estado e reduzir ao mínimo sua atuação. Mas a evolução da sociedade criou exigências novas que atingiram profundamente o Estado. Este passou a ser cada vez mais solicitado a agir, ampliando sua esfera de ação e intensificando sua participação nas áreas tradicionais (...) Entretanto, apesar da patente inadequação da organização do Estado, a separação de poderes é um dogma aliado à ideia de democracia, daí decorrendo o temor de afrontá-la expressamente. Em consequência, buscam-se outras soluções que permitam aumentar a eficiência do Estado mantendo a aparência da separação de poderes (...) Na verdade, as próprias exigências de efetiva garantia de liberdade para todos e de atuação democrática do Estado requerem de maior dinamismo e a presença constante na vida social, o que é incompatível com a tradicional separação de poderes. É necessário que se reconheça que o dogma... está superado, reorganizando-se completamente o Estado, de modo a conciliar a necessidade de eficiência com os princípios democráticos
(DALLARI, 2012, pp. 218, 219 e 220) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).
É preciso, pois, desfazer essa confusão entre o mito dos três poderes de Montesquieu e dos Federalistas e o princípio da separação de funções, pois eles são muito diferentes, inconfundíveis e reciprocamente excludentes.
5. A teoria antidemocrática dos três poderes de Montesquieu. Poder moderador explícito. O judiciário não é poder. O terceiro poder é o poder moderador. Educação: função servil
Sendo, junto à teoria dos Federalistas, alvo da nossa crítica, por ser anterior, comecemos com a teoria mítica, fechada e antidemocrática dos três poderes de Montesquieu.
Pela sua condição nobre, embora contra o absolutismo, como Bonavides já apontava, Montesquieu, com a sua teoria, desejava:
[...] evitar que o poder recaísse no povo. Estabelecida a antinomia soberano – povo, do seu seio destaca-se uma classe: a burguesia. Esta pretende escalar o poder, amparando-se constitucionalmente na técnica separatista. Sem a separação dos poderes, ter-se-ia a vitória do princípio democrático, como expôs mais tarde Rousseau. Montesquieu advogava o princípio liberal, abraçava a solução intermediária, relativista, que, de um lado, afastava o despotismo do rei e, de outro, não entregava o poder ao povo (...) Montesquieu interpretou preconcebidamente a Constituição inglesa...
(BONAVIDES, 2001, p. 70) (negritos nossos).
Montesquieu, porém, não só queria que o povo não tivesse o poder. Ele também desejava que o povo ficasse afastado do governo. Ele desejava que o poder e o governo fossem conservados pelo monarca, junto à nobreza e à burguesia, e para que isso funcionasse de acordo com os interesses dos monarcas e nobres e burgueses, Montesquieu não queria que a educação fosse “poder”, nem função separada, autônoma e independente no governo. Nas próprias palavras de Montesquieu:
[...] Da constituição da Inglaterra (...) Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo... [e o] poder de julgar... Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes (...) O poder executivo deve estar entre as mãos de um monarca (...) o povo... não está capacitado para gerir... É preciso que os negócios funcionem com um movimento que não seja nem muito lento, nem muito rápido. Mas o povo tem ação demais ou de menos. Algumas vezes com cem mil braços ele derruba tudo; outras vezes, com cem mil pés, só caminha como os insetos (...) A grande vantagem dos representantes é que eles são capazes de discutir os assuntos. O povo não é nem um pouco capaz disto... Havia um grande vício na maioria das antigas repúblicas: é que o povo tinha o direito de tomar decisões ativas... coisa da qual ele é incapaz. Ele [o povo] só deve participar do governo para escolher seus representantes, o que está bem ao seu alcance (...) As leis da educação devem ser relativas aos princípios do governo (...) As leis da educação serão, portanto, diferentes em cada espécie de governo (...) A honra [ao príncipe] possui suas regras supremas, e a educação é obrigada a conformar-se a elas (...) Assim como a educação nas monarquias busca... a obediência às vontades do príncipe... nos Estados despóticos... ela deve ser servil. Será um bem, mesmo no comando, ter uma educação servil...
(MONTESQUIEU, 1996, pp. 21, 41, 43, 44, 167, 168, 171 e 172) (destaques e negritos nossos).
Assim, claramente, a teoria tripartite de Montesquieu é uma teoria mítica franca e abertamente antidemocrática. Montesquieu, “confundindo” poder do Estado com governo do Estado e fundado na premissa falsa de que o poder do Estado é divisível, e pior ainda, em apenas três poderes, concebeu, contra a soberania popular e o governo constitucional popular, sua teoria antidemocrática dos três poderes do Estado.
Para Montesquieu, então, o povo não deve ter o poder do Estado nem o governo do Estado, nem educação para saber e poder governar o Estado. Para ele, o povo não sabe governar, nem deve saber governar, nem deve ter o direito de tomar decisões de governo. Para Montesquieu, o povo não sabe, nem deve saber deliberar, discutir sobre os assuntos do Estado. Para ele, esses assuntos não são nem devem ser do conhecimento e alcance do povo. Para o filósofo, o povo só deve participar do governo “escolhendo o seu representante”. Para ele, a educação democrática ética, jurídica, política, econômica, de direção, de governo, de gestão não é, nem pode ser, nem deve ser para todos os cidadãos, para o povo. Para Montesquieu, a educação não é nem deve ser uma educação democrática e livre e para a democracia e a liberdade igual e real para todos. Para ele, a educação deve ser obediente e criar a obediência à lei da monarquia e dos monarcas, da nobreza e dos nobres, devendo estar, portanto, subordinada e dependente deles. Enfim, para o nobre filósofo, a educação é, deve ser e só pode ser “educação servil”, produtora e reprodutora da “escravidão funcional” do povo, dos cidadãos, dos educadores, em benefício dos interesses dos príncipes, reis, monarcas e nobres e burgueses.
Com algumas modificações, especialmente, empoderando o judiciário, dando-lhe poder e privilégios, essa mítica e antidemocrática teoria de Montesquieu foi adotada pelos Federalistas, incrementada do mecanismo, também mítico e antidemocrático, dos freios e contrapesos.
Mas cabe uma observação muito importante. Montesquieu, na mesma obra “O Espírito das Leis” defende a ideia de que é preciso um poder externo aos três poderes, legislativo, executivo e judiciário, que tenha a função de moderá-los. A esse poder externo e moderador Montesquieu o denominou de poder regulador. Vejamos. Montesquieu, antes de referir-se aos três poderes, diz:
[...] A liberdade política... só existe quando não se abusa do poder; mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites... Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder...
(MONTESQUIEU, 1996, p. 166) (negritos nossos)
Em seguida, ao falar dos três poderes:
[...] Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo... [e o] poder de julgar... Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes...
(MONTESQUIEU, 1996, pp. 167, 168) (negritado por nós)
Montesquieu conclui:
[...] Dos três poderes dos quais falamos, o de julgar é, de alguma forma, nulo. Só sobram dois; e como precisam de um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo que é composta por nobres é muito adequada para produzir este efeito... O corpo de nobres deve ser... um poder hereditário
(MONTESQUIEU, 1996, p. 172) (negritos nossos)
Interpretemos. Primeiro, uma afirmação genérica: para não se abusar do poder, é preciso que o poder limite o poder. Segundo: em cada Estado existem três poderes, legislativo, executivo e judiciário. Terceiro: o poder de julgar é, de alguma forma, nulo. Só ficam dois; e para que não possam abusar do poder, eles precisam de um poder regulador para moderá-los. Esse poder moderador deve ser o poder de uma parte do poder legislativo, o poder dos legisladores nobres.
Assim, Montesquieu não disse que devia haver um “controle recíproco” entre os três poderes. Ele afirmou, expressamente, que os poderes, legislativo, executivo e judiciário (quase nulo), para que não abusem do seu poder, precisam de um poder regulador para moderá-los, ou seja, precisam de um poder externo a eles que tenha a função de moderá-los, controlá-los, limitá-los: o poder moderador limita os outros poderes. Isso foi dito por Montesquieu em 1748.
Outra nota importante: Montesquieu, como se pode ler na citação acima, não se referia ao judiciário como um verdadeiro poder, pois ele considerava o poder de julgar um poder “de alguma forma, nulo”, isto é, “próximo a nada”, “sobrando apenas dois”, dois verdadeiros poderes, sendo eles o legislativo e o executivo. Para Montesquieu, então, o terceiro verdadeiro poder é o poder moderador, que ele o chamou de poder regulador.
Essa ideia de poder judiciário “de alguma forma, nulo”, “próximo a nada”, exposto por Montesquieu, na sua obra “O espírito das Leis” de 1748, harmoniza-se com a forma como o judiciário é tratado pela Constituição francesa de 1958. Essa constituição francesa, no seu Título VIII registra o judiciário como apenas uma “autoridade judiciária”, não como um verdadeiro poder. Luís Roberto Barroso comenta isso:
[...] O judiciário recebe pouco destaque na Constituição Francesa, que se refere a l’autorité judiciaire mais como um departamento especializado do que como um verdadeiro Poder
(BARROSO, 2011, p. 52) (destaque nosso)
Assim, tanto para Montesquieu quanto para a Constituição francesa de 1958, o judiciário não tem natureza de poder, muito menos de poder político, pois é apenas uma autoridade de natureza técnica especializada. Foi visto também que o judiciário nem sequer é referido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, nem nos seus artigos, nem no seu preâmbulo. Para essa Declaração de 1789, o judiciário não existe: é nada.
Outro aspecto que deve ser destacado é que o poder moderador, para Montesquieu, não deve estar nas mãos do poder judiciário, nem nas mãos do poder executivo. Para Montesquieu, o poder moderador deve estar nas mãos do poder legislativo, nas mãos “da parte do corpo legislativo que é composta por nobres”. Daí, o quadro de número de funções e órgãos (“poderes”) da teoria de Montesquieu é o seguinte:
I. Órgão moderador. Composição: a parte nobre do parlamento, do legislativo. Função: moderar (regular, controlar) os outros órgãos.
II. Órgão legislativo;
III. Órgão executivo; e
IV. Órgão judiciário. Não é um verdadeiro poder, não tem natureza política, mas apenas natureza técnica especializada. É “de alguma forma, nulo”, “quase nada.”
Tal poder moderador do pensamento de Montesquieu não foi considerado pelos Federalistas no processo da construção da Constituição americana de 1787.