Capa da publicação Reforma constitucional contra o mito dos três poderes
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Artigo Destaque dos editores

Poder moderador e poder educativo ou educador no Estado Democrático de Direito brasileiro.

O mito dos freios e contrapesos (checks and balances)

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6. A teoria antidemocrática dos três poderes dos Federalistas. Os freios e contrapesos contra a soberania popular. A ideologia antidemocrática da supremacia judicial

Como afirmado, os Federalistas (Madison, Hamilton e Jay), no processo de construção da Constituição americana de 1787, adotaram a teoria tripartite de Montesquieu e sem considerar o poder moderador do pensamento de Montesquieu, fazendo interpretação “criativa” e conveniente da ideia “só o poder limita o poder” do mesmo Montesquieu, inventaram o mecanismo antidemocrático dos freios e contrapesos. E foi inventado com, entre outros, o objetivo de reverter em favor da elite ou burguesia da época o processo fortemente democrático que existia nos estados confederados, processo alicerçado em constituições estaduais fundadas na soberania popular e na ampla participação popular no governo e em que, inclusive, nos estados em que havia senados, estes estavam abaixo das assembleias legislativas estaduais, abaixo do governo legislativo do povo. Conforme o historiador Bruno Leal Pastor de Carvalho:

[...] Havia entre os políticos pró-governo central... um consenso quanto ao fato de que a Revolução Americana provocara um desequilíbrio de poder em favor do povo, e isso, agora, precisava ser corrigido (...) Como os antigos colonos tinham repulsa a governantes, a vida política nos estados foi marcada por uma forte participação popular. A maior prova disso é que todas as constituições estaduais davam amplos poderes ao legislativo (...) Mesmo nos estados onde havia senados, eles estavam abaixo das assembleias legislativas (...) Segundo explica o historiador Isaac Krammick, “o pressuposto dominante era que um governo livre é aquele em que o legislativo do povo governa...

(CARVALHO, 2021) (negritos nossos)

Contra esse governo constitucional legislativo do povo e a ampla participação do povo no governo, os Federalistas adotaram a antidemocrática teoria tripartite de Montesquieu e criaram o mecanismo antidemocrático dos freios e contrapesos. Com a fala, Madison:

Federalist nº 51

The Structure of the Government Must Furnish the Proper Checks and Balances Between the Different Departments

[..] If men were angels, no government would be necessary. If angels were to govern men, neither external nor internal controls on government would be necessary. In framing a government which is to be administered by men over men, the great difficulty lies in this: you must first enable the government to control the governed; and in the next place oblige it to control itself…

(MADISON, F. nº 51) (negritado por nós)

Em livre tradução nossa:

Federalista nº 51

A Estrutura do Governo Deve Fornecer os Apropriados Freios e Contrapesos Entre os Diferentes Órgãos

[...] Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários controles externos nem internos sobre o governo. Na formação de um governo cuja administração será de homens sobre homens, a maior dificuldade radica nisto: primeiro deve-se permitir ao governo controlar os governados, e em seguida obrigá-lo a controlar-se...

(MADISON, F. nº 51, negritos nossos)

Interpretando. Primeiro, uma afirmação genérica, mais ou menos como fez Montesquieu: se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Os homens não são governados por anjos; logo, os controles externos e internos são necessários sobre o governo. Segundo: para formar um governo cuja administração será de homens sobre homens: 1) deve-se permitir ao governo (formado por uma quantidade pequena de homens) controlar os outros homens, os governados, ou seja, os cidadãos, o povo; e 2) o governo (legislativo, executivo e judiciário) deve ser obrigado a controlar-se.

Com mais precisão, tendo em vista o contexto histórico da época. Primeiro: o poder da elite, da burguesia, poder que controla externa e internamente o governo (os três poderes), afasta o povo do poder e do governo, permitindo-lhe que participe do governo burguês apenas e tão só escolhendo seus representantes, sem participar das decisões do governo. Segundo: permite ao governo controlar os governados, os cidadãos, o povo. Terceiro: obriga o governo (legislativo, executivo e judiciário) a controlar-se. Para tanto, é necessário, entre outras coisas: 1) inverter a posição do senado para controlar, dentro do legislativo, os representantes eleitos pelo povo; 2) empoderar e privilegiar o poder judiciário, para, com a figura da Suprema Corte, controlar, “constitucionalmente”, o poder executivo (o rei-presidente ou monarca-presidente, criando-se o presidencialismo em oposição ao parlamentarismo) e, fundamentalmente, com a colaboração do senado e do executivo, controlar o poder legislativo do povo, os legisladores eleitos pelo povo.

Vale lembrar neste momento as palavras de Dallari falando sobre o mecanismo antidemocrático dos freios e contrapesos inventado pelos Federalistas:

[...] O sistema de separação de poderes [de Montesquieu e dos Federalistas], consagrado nas Constituições de quase todo o mundo... deu origem a uma engenhosa construção doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrapesos (...) Na verdade, as próprias exigências de efetiva garantia de liberdade para todos e de atuação democrática do Estado requerem de maior dinamismo e a presença constante na vida social (...) É necessário que se reconheça que o dogma... está superado, reorganizando-se completamente o Estado, de modo a conciliar a necessidade de eficiência com os princípios democráticos

(DALLARI, 2012, pp. 218, 219 e 220) ( os negritos, nossos).

Assim, esse “engenhoso” e antidemocrático sistema dos freios e contrapesos foi criado pelos Federalistas para, fundamentalmente, controlar externa e internamente o povo e o poder legislativo do povo, impedindo a afirmação da soberania popular e o desenvolvimento de um governo constitucional popular com ativa e ampla participação popular.

Mas não foi só isso. Como dito alhures, a Constituição americana de 1787 nasceu de um processo golpista constitucional, de um processo totalmente viciado, tanto no aspecto formal (jurídico, legal) quanto fático-político.

Quanto ao ponto de vista fático-político, leiamos um resumo do que o historiador Bruno Leal Pastor de Carvalho nos apresenta no seu artigo “Uma união não tão perfeita: o nascimento da Constituição dos Estados Unidos”:

[...] A desconfiança de Yates tinha como alvo a Constituição dos Estados Unidos da América... que agora aguardava a ratificação.... Para ele, a nova Constituição, ao fortalecer o governo central, abriria as portas para um poder tirânico e decretaria o fim das liberdades individuais nos estados (...) Depois de declararem independência, em 1776, as 13 colônias britânicas da América do Norte formaram uma confederação composta por 13 estados semi-independentes, a Confederação dos Estados Unidos. Esses estados viviam uma experiência política republicana singular (...) todos tinham suas próprias constituições, e algumas foram bem progressistas, defendendo os “direitos de seus cidadãos” (...) Como os antigos colonos tinham repulsa a governantes, a vida política nos estados foi marcada por uma forte participação popular. A maior prova disso é que todas as constituições estaduais davam amplos poderes ao legislativo (...) Mesmo nos estados onde havia senados, eles estavam abaixo das assembleias legislativas (...) Segundo explica o historiador Isaac Krammick, “o pressuposto dominante era que um governo livre é aquele em que o legislativo do povo governa” (...) A Confederação tinha ...uma carta constitucional chamada Artigos da Confederação, em vigor desde 1781 (...) Em maio de 1787, o Congresso da Confederação convocou uma assembleia a fim de repensar, revisar e reelaborar os Artigos da Confederação. Essa assembleia ficou conhecida como Convenção da Filadélfia, ou ainda, Convenção Constituinte (...) o resultado foi bem diferente do que se previra no momento da convocação da assembleia. Ao invés de revisar os Artigos da Confederação, os delegados elaboraram um novo documento, partindo do zero, e esse novo documento foi a Constituição dos Estados Unidos da América (...) Havia entre os políticos pró-governo central... um consenso quanto ao fato de que a Revolução Americana provocara um desequilíbrio de poder em favor do povo, e isso, agora, precisava ser corrigido, pois ameaçava a ordem, o cumprimento das leis e o direito à propriedade (...) Segundo o historiador Alfred Hinsey Kelly... uma estratégia que ajudou o grupo a obter êxito foi manter os debates às portas fechadas, sem a participação do povo e da imprensa (...) Para que entrasse em vigor, a Constituição precisava agora ser ratificada por pelo menos 9 estados da Confederação. Isso deveria ser feito em cada estado, nas chamadas “Convenções de Ratificação” (...) neste contexto a Nação foi tomada por um debate público entre dois grupos antagônicos: federalistas versus antifederalistas. Os antifederalistas eram contrários à ratificação da nova Constituição (...) Os federalistas, por seu turno, eram favoráveis à Constituição (...) Eram, em geral, de acordo com Izecksohn, mais ricos e influentes... Também tinham mais escolaridade, controlavam a imprensa e eram mais organizados (...) Federalistas e antifederalistas duelaram por meio de discursos em cafés, jornais, tabernas, panfletos, livros, artigos, cartazes e manifestos – era assim que apresentavam ao público seus argumentos contra ou a favor à Constituição. Do lado federalista, a publicação mais importante foram os Federalist Papers, de 1788. Escrito por Alexander Hamilton, John Jay e James Madison sob o pseudônimo Publius, os Artigos Federalistas eram uma série de 85 ensaios que apontavam a importância da Constituição e de um governo central forte. Já os antifederalistas publicaram de forma mais dispersa, sem que houvesse uma brochura como o mesmo peso dos Federalist Papers (...) Para os federalistas, o governo central regularia o “excessivo impulso de liberdade dos estados”, sendo capaz ainda de garantir a segurança e aplicar os recursos da União em áreas consideradas estratégicas (...) Os antifederalistas desconfiavam de todas essas prerrogativas reservadas ao novo governo central. Ao invés do judiciário nacional, desejavam continuar com as cortes estaduais de justiça; eram contra a ideia de Colégio Eleitoral porque este arranjo favoreceria as elites políticas e econômicas em detrimento do povo (...) Os federalistas tinham pressa na ratificação. Diziam que... todo atraso...era um risco ao futuro dos Estados Unidos. Mas para os antifederalistas, tudo isso não passava de um grande embuste. A posição antifederalista neste ponto é muito bem resumida pelos cientistas políticos Gabriel E. Vitullo e Clayton M. Cunha Filho: “… houve um deliberado esforço de parte dos federalistas destinado a inibir o debate e calar toda a oposição, fazendo um uso sistemático de burlas, agressões, censura, calúnias, ameaças e manipulação. Houve, também, uma clara decisão de insuflar o medo da população, exagerando a descrição das calamidades presentes e dos riscos futuros como única forma de atingir seus interesses...”. Outro elemento que incomodava muito os antifederalistas na Constituição de 1787 era a falta de garantias paras as liberdades individuais (...) um autor antifederalista sob o pseudônimo de “um velho liberal” era taxativo sobre isso: “sem uma Declaração de Direitos que firmemente assegure os privilégios da população, o governo estará em permanente risco de degenerar em uma tirania” (...) Em 1788, a Constituição Federal dos Estados Unidos foi ratificada, e em 1789 o documento entrou em vigor (...) O modelo federativo que organizaria os Estados Unidos dali em diante criou um país completamente diferente (...) Para voltar à metáfora de Krammick, a balança de poder fora revertida: o poder estava agora no centro [no governo central, agora chamado de federal], e não mais nas periferias [nos estados]. Com isso, explica o autor, as antigas elites coloniais retomavam o seu velho protagonismo, enquanto que o homem comum perdia parte da liberdade advinda da Revolução. Nas palavras da historiadora Jill Lepore, “a Constituição redigida na Filadélfia funcionou como um freio para a Revolução, como uma interrupção de seu radicalismo; se a Revolução havia feito a balança pender para o lado da liberdade, a Constituição a fazia pender para o lado do governo” (...) Com a passagem do tempo, a vitória dos federalistas se consolidou também no campo da memória política (...) Na década de 1960, o historiador Forrest McDonald já havia notado como isso estava presente desde a semântica: com a criação do governo federal, os federalistas inverteram os termos que nós usamos hoje para designar aquele debate político (...) Mas os antifederalistas não eram contra um governo central e nem contra constituições nacionais, mas apenas contra aquela Constituição de 1787 e aquele modelo de governo nacional. Os antifederalistas, na verdade, talvez tenham sido os mais empenhados federalistas, pois acreditavam fielmente na Confederação, e ao protestaram contra o documento redigido na Convenção da Filadélfia, acreditavam estar protegendo a Confederação dos verdadeiros antifederalistas, isto é, aqueles que desejavam tirar o poder dos estados confederados e concentrá-lo no governo central. Segundo ainda McDonald, esse processo de enquadramento do passado nacional nos Estados Unidos também envolveu a desqualificação dos antifederalistas, taxados pelos federalistas de ignorantes... desinformados e sem princípios. Mas os antifederalistas, sublinha McDonald, tinham argumentos tão inteligentes e sedutores quanto os dos federalistas, e seus argumentos, mesmo passados mais de 200 anos desde a redação da Constituição, ainda são atuais, apontando os limites da democracia estadunidense...

(CARVALHO, 2021) (negritos nossos)

Relativamente ao aspecto formal, em sintonia com o historiador Bruno Leal Pastor de Carvalho, acima citado, Luís Roberto Barroso afirma:

Do ponto de vista formal, a Convenção de Filadélfia incidiu em um conjunto notável de ilegalidades: afastou-se do objetivo que justificou a sua convocação; previu para a ratificação da Constituição... processo de ratificação diverso do que era estabelecido nos Artigos; modificou-se até mesmo o próprio órgão ao qual caberia a ratificação, substituindo as assembleias legislativas estaduais por convenções constitucionais especiais; deixou de exigir a unanimidade dos Estados para aprovação das modificações introduzidas, estabelecendo que bastariam nove votos favoráveis. Sobre o tema, v. Bruce Ackerman, We the people: Foundations, 1995, p. 41

(BARROSO, 2011, pp. 38, 39, nota de rodapé, n° 51) (destaque nosso)

Continua Carvalho:

Alguns historiadores, por isso, chegam a dizer que o que aconteceu na Filadélfia pode ser caracterizado como um golpe de estado, e que a declaração [constituição] de 1787 pode ser vista como um documento ilegal

(CARVALHO, 2021, nota nº 2) (negritos nossos)

Assim, os Federalistas, mediante um “golpe de Estado”, impuseram, em favor da burguesia americana, a Constituição antidemocrática com freios e contrapesos antidemocráticos de 1787.

Já os Antifederalistas lutavam por uma Constituição democrática e um “governo legislativo do povo”. Como fruto dessa luta, eles conseguiram uma importante vitória. Carvalho:

Mas nem tudo foi derrota para os antifederalistas. Em 1791, o movimento conseguiu uma vitória importante ao aprovar 10 emendas constitucionais que salvaguardavam os direitos dos cidadãos frente a este novo e forte governo central. Essas emendas ficaram conhecidas como Bill of Rights (Carta de Direitos). Segundo Izecksohn, “elas afiançavam, entre outras garantias: as liberdades de manifestação, de imprensa, de religião, o direito de ser julgado por um júri popular, o direito a portar armas, o direito a processo legal”. Para o historiador, trata-se do maior legado político dos antifederalistas

(CARVALHO, 2021).

De tudo isso, vemos que foi pela luta dos Antifederalistas que em 1791, dois anos após da sua entrada em vigor, foi inserida na Constituição americana, via emenda, entre outros, os princípios democráticos da liberdade de expressão (manifestação), de imprensa, de religião, do direito ao devido processo legal. Somente a partir da inserção dessas liberdades e direitos, via emenda, na Constituição, é que podemos afirmar que os Estados Unidos se constituíram numa democracia, no caso, democracia liberal.

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Assim, coforme o exposto, o quadro de número de “poderes” do governo constitucional burguês e antidemocrático defendido pelos Federalistas, é o seguinte:

I. Órgão (“poder”) da elite, da burguesia. Órgão que não faz parte formal do governo, mas o governa e controla externa e internamente segundo seus interesses;

II. Órgão legislativo do povo: controlado externa e internamente pela elite, pela burguesia da época e através da Suprema Corte, do senado e do poder executivo;

III. Órgão executivo: em oposição ao parlamentarismo popular, foi criado o presidencialismo, que produz o ressurgimento da ideologia da supremacia do rei, agora na figura do rei-presidente ou monarca-presidente, do poder executivo;

IV. Órgão judiciário (Suprema Corte): empoderado e privilegiado com a finalidade bárbara (antidemocrática) de controlar “constitucionalmente” o poder executivo e, fundamentalmente, com o auxílio do senado e do poder executivo, controlar o poder legislativo do povo, expressão da dimensão legislativa da vontade geral do povo dentro do governo constitucional burguês americano da época.

No Brasil, via importação, essa antidemocrática teoria dos três poderes de Montesquieu e dos Federalistas inserida na Constituição americana de 1787, portadora da ideologia da supremacia judicial e do mecanismo de freios e contrapesos, bem como da ideologia de educação servil, foi adotada na Constituição brasileira de 1891, primeira Constituição da República, bem como nas posteriores, inclusive, contraditoriamente, na Constituição democrática de 1988.

Nos tempos atuais, o judiciário, mais precisamente o Supremo Tribunal Federal e ou os juízes dessa Corte: 1) copiando ou “inspirando-se na experiência americana”; 2) manifestando seu “amor ao poder político”; e 3) expressando sua antidemocrática ideologia da supremacia judicial e a sua também antidemocrática ideologia do neoconstitucionalismo, ambos assentados na “criativa” “nova hermenêutica constitucional”, “assaltaram a Constituição” (expressão de Bruce Ackerman), ou seja, deram golpe de Estado constitucional (similar ao golpe federalista-burguês nos Artigos (Constituição) dos confederados americanos de 1787) e desde já um bom tempo estão praticando ativismo judicial. Tal ativismo judicial dos juízes da Corte levou e está levando ao “autoprotagonismo político” da Corte e dos juízes da Corte, que, inclusive, sem fundamento constitucional, concederam-se (na prática) o poder moderador dos outros poderes, o que lhes permite usurpar funções do legislativo e do executivo. Tudo isso sem que os ministros da Corte tenham nem sequer um voto popular.

É o que se extrai da fala dos próprios Ministros da Corte e das falas de especialistas de direito constitucional e de juscomunicadores ou jusjornalistas, isto é, de comunicadores ou jornalistas com notáveis conhecimentos ou saberes ético-jurídico-políticos. Vejamos isso começando com o Ministro Dias Toffoli, que admite:

[...] Eu entendo, sinceramente, que na prática nós já temos um semipresidencialismo com um controle de poder moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal.

(MINISTRO TOFFOLI. Disponível em YouTube. Canal O Antagonista. Acessado em 05.06.2024.) (destaque nosso)

Observe-se: “na prática”, isto é, fora da Constituição e contra a Constituição. E ofendendo a Constituição vigente, o sentimento e a inteligência do povo, dos eleitores brasileiros, e de todos os eleitores do mundo democrático, o mesmo Ministro Toffoli, fundado na “criativa” e antidemocrática “nova hermenêutica constitucional”, incrementa:

[...] Aqui nos temos pessoas indicadas por Presidentes da República de direita, de esquerda, de centro, de centro direita, de centro esquerda, aprovados todos pelo Senado da República, todos... passando por crivos; se somar os votos dos Presidentes da República que receberam e foram eleitos aos votos dos senadores que nos aprovaram, todos aqui estamos legitimados em cerca de 100 milhões de votos. Não há que se falar que aqui não há legitimidade popular.

(MINISTRO TOFFOLI. Disponível em YouTube - Canal Poder 360. Acessado em 23.06.2024)

Por seu turno, o Ministro Luís Roberto Barroso, Presidente do STF, expressando seu “amor ao poder político”, confessando sua participação política nas eleições de 2022, também fundado na antidemocrática e “criativa” “nova hermenêutica constitucional”, argumenta:

[...] O poder judiciário no Brasil, após a Constituição de 1988... deixou de ser, e já de algum tempo, um departamento técnico especializado e passou a ser um poder político na vida brasileira... Houve uma mudança na natureza [?!] do papel, na visibilidade e nas expectativas que existem em relação ao poder judiciário (...) Em Roraima, eleição não se vence, se toma... (...) Nós derrotamos o bolsonarismo (...) Perdeu, Mané. Não amola!

(MINISTRO BARROSO. Disponível em YouTube. Canal Revista Oeste; Canal Poder 360; Canal CNN Brasil. Acessado em 25.08.2024) (ressaltado por nós)

Do seu lado, o Ministro Flavio Dino, da mesma forma que o Ministro Barroso, mostrando seu “amor ao poder político”, defendendo abertamente o ativismo judicial e o autoprotagonismo político dele mesmo e do judiciário (STF), contra a Constituição democrática brasileira de 1988, “criativamente”, argumenta:

[...] O ativismo judicial, entre aspas, não é uma opção, mas uma imposição (...) Por quê? Porque é necessário ir conformando a política pública... E qual é a objeção que é feita a isto? A objeção é feita no seguinte sentido: o judiciário quer ser um superpoder e isso é invasão nos outros poderes... Mas, globalmente, o que se passa é que o judiciário nesses casos está apenas atuando de acordo com a demanda que vem dos outros poderes (...) A minha hipótese... é que o judiciário não só pode como deve decidir essas questões (...) Esse autoprotagonismo do poder judiciário no Brasil é algo que veio para ficar... porque nós estamos vendo as dificuldades próprias do mundo da política. Se a política não consegue resolver os problemas, isso vai para algum lugar no mundo. E isto também se refere ao Brasil. O Supremo, portanto... está... condenado a arbitrar temas políticos, econômicos e sociais (...) O erro maior seria... dizer que isso não é um problema jurídico: é um problema político... de fato, não é tema que interesse ou que seja de competência do Supremo Tribunal Federal (...) O Supremo pode deixar de se debruçar sobre isso? Pode dizer: não, isso é com a política, é com a economia? (...) No caso brasileiro... pós 88, isso foi se tornando uma tendência. Eu mesmo sou relator de três ou quatro ações em que se debate política pública...

(MINISTRO DINO. Disponível em YouTube – Canal Mídia Ninja. Acessado em 27.02.2025) (negritado por nós)

Posicionando-se no mesmo lado dos Ministros Toffoli, Barroso e Dino, também defendendo o ativismo judicial, o governo dos juízes e do judiciário (STF) como poder político, o Ministro Luíz Fux “cria” argumentos contra a Constituição:

[...] A verdade é que a Constituição Brasileira, ela impõe que o Judiciário, uma vez provocado, ele tem que dar uma palavra final (...) Entretanto, o que ocorre na prática? O que ocorre na prática é o seguinte. Primeiro, a nossa obrigação constitucional de dar uma palavra sobre aquilo que o Judiciário foi provocado. Segundo lugar, há várias questões em relação aos quais o Judiciário não tem capacidade institucional para solucionar uma questão completamente fora do âmbito jurídico. Mesmo assim, nós temos que decidir. E por que temos que decidir? Porque a população exige uma solução. E aí há um problema jurídico que é muito interessante. Essas questões todas deveriam realmente, como você afirmou, ser resolvidas pelo Parlamento. Mas acontece uma questão muito singular. O Parlamento não quer pagar o preço social de decidir sobre o aborto, sobre a união afetiva ou sobre outras questões que nos faltam capacidade institucional. Então, como eles não querem pagar o preço social e como nós não somos eleitos, nós temos talvez um grau de independência maior, porque não devemos satisfação depois da investidura a, absolutamente, mais ninguém (...) Então, digamos assim, uma colocação de um porquê há essa judicialização da política e há esse suposto ativismo judicial, que é uma expressão equivocada, porque o Judiciário só age provocado, ele não toma iniciativa. Então hoje vivemos essa crise... político-jurídica. O Judiciário decide porque há omissão do Parlamento...

(MINISTRO FUX. Disponível em YouTube – Canal Padre Paulo Ricardo. Acessado em 24.02.2025) (negritado por nós)

Em outra ocasião, porém, o Ministro Fux, num “exame de consciência”, e agora alicerçado na “hermenêutica democrática constitucional” aplicada à Constituição democrática brasileira de 1988, retratou-se:

[...] Também não se podem desconsiderar as críticas em vozes mais ou menos nítidas e intensas de que o poder judiciário estaria se ocupando de atribuições próprias dos canais de legítima expressão da vontade popular, reservada apenas aos poderes integrados por mandatários eleitos. Nós não somos juízes eleitos. O Brasil não tem governo de juízes; e é por isso que se afirma e se critica com vozes intensas o denominado ativismo judicial (...) Nós assistimos cotidianamente o poder judiciário ser instado a decidir questões para os quais não dispõe de capacidade institucional (...) As instâncias próprias não resolvem os problemas e o preço social é pago por nós. Por quê? Porque nós não somos juízes eleitos. Nós não devemos satisfação a eleitor (...) Essa prática... tem exposto o poder judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, a um protagonismo deletério, corroendo a credibilidade dos tribunais quando decidem questões permeadas por desacordos morais [e políticos, econômico e sociais] que deveriam ser decididas na arena política (..) Nós temos que ter deferência, porque num Estado democrático, a instância maior é o Parlamento (...) Aos nossos olhos, o judiciário deve atuar movido pela virtude passiva, devolvendo à arena política e administrativa os temas que não lhe competem à luz da Constituição (...) Eu estou também dizendo isso para mim. Estou fazendo o exame da minha consciência...

(MINISTRO FUX. Disponível em YouTube - Portal UAI. Acessado em 24.02.2025) (negritos nossos)

Harmonizado com o “exame de consciência” do Ministro Fux, o jusjornalista Willian Waak, juscomunica:

[...] O ideal seria que o STF não tivesse que se preocupar com a própria imagem, mas o Tribunal é visto por largas parcelas da sociedade brasileira, e não apenas por aquilo que se pode chamar de extrema-direita, como uma instância política, que toma decisões políticas... e torna inexistentes crimes de corrupção delatados por réus confessos (...) Os esforços do STF para conter privilégios da magistratura são vistos como insuficientes, se é que são vistos (...) Os ministros do Supremo batem o peito declarando-se os salvadores da democracia, sem perceberem que amplos setores da sociedade brasileira, repito, não se trata de extrema-direita, têm visão contrária a essa e se sentem, eles sim, tratados como “manés”.

(JORNALISTA WILLIAM WAACK. In. YouTube – Canal Deltan Dallagnol. Acessado em: 27/03/2025) (negritado por nós)

No mesmo sentido do Ministro Fux e do jornalista William Waack, o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, também professor emérito de Direito Constitucional da USP, enfrentando o antidemocrático neoconstitucionalismo e a também antidemocrática e “criativa” “nova hermenêutica constitucional”, bem como a ideologia também antidemocrática da supremacia judicial, ele, fundado também na “hermenêutica democrática constitucional” aplicada à Constituição democrática brasileira de 1988, escreve:

[...] Juristocracia não é democracia (...) Todo mundo sabe que democracia é o governo “do povo, pelo povo, para o povo”, na fórmula célebre de Abraham Lincoln. A fórmula é tão clara que não precisa explicar. Ela importa, portanto, que a governança seja feita pelo povo, ou seja, pelos representantes do povo eleitos por esse povo e somente por estes (...) Importante dentre os regimes políticos... está também... a juristocracia.... A juristocracia... não se inclui na forma de governo democracia (...) É um regime em que não é o povo quem decide em última instância sobre a política a ser executada, mas uma corte de juristas, daí o nome (...) A separação dos poderes atribui ao Judiciário e seu supremo tribunal a função de assegurar o respeito à Constituição, não a de governar, que cabe numa democracia, aos eleitos pelo povo (...) os... membros [do supremo tribunal] sentem a necessidade de serem os guias que levarão o povo ao paraíso, e não os eleitos. Pretendem instituir um governo de sábios oniscientes – uma sofocracia, diria Platão... E essa pretensão ganha efetividade como regime juristocrático de elite do saber (jurídico). Esse quadro deriva de uma... deformação do controle de constitucionalidade – mesmo que bem delineada na Constituição. É apoiada numa doutrina – um neoconstitucionalismo – que vê nos juristas a elite suprema da nação... como se possuíssem um poder constituinte permanente (...) A corte constitucional, então, se erige em supremo Poder (...) Ela pode não só anular os atos dos demais Poderes, em face da Constituição como entende, até invocando princípios de larga abrangência. Pode fazer-lhes determinações de políticas públicas, sem lhes considerar conveniência, oportunidade e meios, além de criar direitos e obrigações nas suas interpretações das leis e da Constituição, ou suprimi-los quando assim entende. Pode até legislar, criando novos direitos e obrigações (...) Pode, por um simples despacho de seu presidente, pôr de parte a Constituição e apurar não só eventuais calúnias contra seus membros, mas atuar contra discursos de ódio, milícias digitais e o mais que se conceber – ou seja plenos poderes não delimitados pela Constituição e pela lei, designando o seu Savonarola ou Torquemada que vê armas subversivas até em batons femininos (...) Pode criar o que o vulgo chama de “penduricalhos para os seus servidores” E, por sua vez, nesse mesmo plano, admite que os membros do Judiciário de esfera inferior â suprema podem fixar a própria remuneração, mesmo acima do limite constitucional (...) E isto é vantajoso porque essas verbas são excluídas do imposto sobre a renda e mesmo do imposto sobre os muitos ricos. E contam sempre com a tolerância do tribunal supremo numa juristocracia (...) Enfim, a Corte Suprema pode tudo, sem qualquer exceção, como ocorre num regime ditatorial... E pretendem fazê-lo... para o bem da democracia!

(FERREIRA FILHO, 2025) (destaque nosso)

Essa juristocracia apontada por Ferreira Filho também manifestou-se no julgamento da constitucionalidade do artigo 19 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet).

Nesse julgamento, oito ministros, com argumentos “criativos” neoconstitucionalistas, assentados na “criativa” “nova hermenêutica constitucional”, votaram pela responsabilização das redes sociais pelos conteúdos ilegais postados pelos usuários. Por ser altamente representativo desses oito votos, leiamos o voto juristocrático da Ministra Carmen Lúcia:

[...] Censura é proibida constitucionalmente. É proibida moralmente. É proibida, eu diria, até espiritualmente, MAS não pode também permitir que nós estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos TIRANOS soberanos. Soberano é o Brasil. Soberano é o direito brasileiro [?!].

(MINISTRA CARMEN LUCIA. Disponível in Youtube. Canal Deltan Dallagnol – Acessado em 30/06/2025 – destaques nossos)

Diante disso, houve respostas da sociedade civil contra os oito votos censuradores. Uma delas foi a juscomunicação da jusjornalista ou juscomunicadora da Folha de São Paulo, Mestre em Jornalismo e Doutora em Comunicação e Semiótica, Ligia Maria:

[...] Tal perspectiva tende a valorizar entidades abstratas coletivas em detrimento do indivíduo. O ser humano passa a ser visto como instrumento da realização de um ideal universal e, por óbvio, fica sujeito a coerções violentas (...) Para Mussolini, nada era superior ao Estado. Já para Hitler, soberana era a raça ariana. Os revolucionários jacobinos, inspirados por Rousseau, submetiam tudo à “Vontade geral”, que mandou milhares para a Guilhotina. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” foi o slogan da campanha de Jair Bolsonaro (...) No voto da Carmen Lúcia, lá estão o Brasil e o direito superiores à população. Tal onipotência não é novidade. O Ministro Dias Toffoli já disse que o STF atua como poder moderador. Segundo o atual presidente do Tribunal, Luís Roberto Barroso, a missão do Supremo é recivilizar o país (...) Não é a toa, a corte extrapolou seu papel, o de avaliar a constitucionalidade do art. 19, e invadiu a seara do Congresso ao estipular uma lista de regras - ainda por cima vagas e abertas à subjetividade (como a remoção imediata pelas plataformas de conteúdos “antidemocráticos” propagados de forma massiva)... Três ministros votaram contra. No fim das contras, saem 213 milhões e sobram oito tiranos.

(LIGIA MARIA. In YouTube – Canal Deltan Dallagnol – Acessado em 30/06/2025) (negritos nossos)

Por seu lado, o Parlamento brasileiro, desmoralizado, “acovardado” e ou “chantageado”, com grande parcela de parlamentares “amantes do dinheiro público” e com processos no STF, está a discutir medidas para enfrentar o ativismo judicial do judiciário, especialmente dos juízes do STF. Mas o Ministro Gilmar Mendes já advertiu que o STF derrubará essas medidas, caso avancem, e recentemente informou que há um projeto de semipresidencialismo que já está na agenda para 2025:

[...] Michel [Temer], eu e outros discutimos no Brasil um pouco lá atrás e chegamos a formular um projeto de semipresidencialismo [...] É um tema que certamente já está na agenda de 2025...

(MINISTRO GILMAR MENDES. Disponível em YouTube. Canal CNN Brasil. Acessado em 26.01.2025)

Resta saber se esse projeto é ou não apenas uma formalização de um “semipresidencialismo controlado pelo poder moderador do Supremo Tribunal Federal”.

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Sobre o autor
Misael Alberto Cossio Orihuela

Advogado concursado do Município de Canoas, RS, Brasil; Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica-PUCRS, Brasil; Licenciado em Letras pela UNILASSALE, Canoas, RS, Brasil; Licenciado em Ciencias Administrativas pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Lima-Perú; Mestre em filosofia, área ética e política, pela Pontifícia Universidade Católica-PUCRS, Brasil, com a dissertação: A justiça como equidade de John Rawls: um jusnaturalismo de gênese na educação para a autonomia jurídico-política da cidadania. Nessa dissertação já se defende a ideia da autonomia e independência da educação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ORIHUELA, Misael Alberto Cossio. Poder moderador e poder educativo ou educador no Estado Democrático de Direito brasileiro.: O mito dos freios e contrapesos (checks and balances). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8110, 14 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115606. Acesso em: 5 dez. 2025.

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