4. Marco normativo norte-americano sobre liberdade de expressão dos militares em redes sociais
Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão dos militares está condicionada, como no Brasil, ao dever de manutenção da disciplina e da ordem nas Forças Armadas. A Constituição norte-americana garante esse direito pela First Amendment (Primeira Emenda), mas sua aplicação aos militares da ativa é significativamente restringida por regulamentos específicos, com destaque para o Uniform Code of Military Justice - UCMJ (Código Uniforme de Justiça Militar), o Department of Defense Directive 1344.10 (Diretiva do Departamento de Defesa 1344.10), e os Army Regulations 600-20 e 360-1 (Regulamentos do Exército 600-20 e 360-1).
Ao contrário do modelo brasileiro, o sistema jurídico-militar norte-americano adota uma abordagem mais casuística e orientada por princípios, em que a liberdade de expressão é mais ampla, mas delimitada de forma objetiva e constantemente reforçada por treinamento e supervisão.
4.1. Uniforme Code of Military Justice - UCMJ (Código Uniforme de Justiça Militar)
O UCMJ , previsto no Título 10, Capítulo 47, estabelece os delitos penais aplicáveis aos militares norte-americanos. Dois artigos são especialmente relevantes para o tema:
Art. 88. Contempt Toward Officials
Any commissioned officer who uses contemptuous words against the President, the Vice President, Congress, the Secretary of Defense, the Secretary of a military department, the Secretary of Homeland Security, or the Governor or legislature of any State, Commonwealth, or possession in which he is on duty or present shall be punished as a court-martial may direct.
(Tradução livre)
Art. 88. Desacato a Autoridades
Qualquer oficial comissionado que use palavras desdenhosas contra o Presidente, o Vice-Presidente, o Congresso, o Secretário da Defesa, o Secretário de um departamento militar, o Secretário de Segurança Interna, ou o Governador ou legislativo de qualquer Estado, Comunidade ou território no qual estiver em serviço ou presente, será punido conforme determinar o tribunal militar.
O artigo proíbe, portanto, oficiais de fazerem declarações desrespeitosas contra o Presidente, Vice-Presidente, Congresso, Secretário de Defesa e demais autoridades civis do governo. Por exemplo, um oficial que publique em redes sociais críticas diretas e ofensivas ao Presidente dos Estados Unidos da América poderá ser acusado de violar o art. 88, mesmo que se trate de opinião pessoal em perfil privado.
Já o artigo 92 trata da desobediência à ordem ou regulamento:
Art. 92. Failure to obey order or regulation
Any person subject to this chapter who
1) violates or fails to obey any lawful general order or regulation;
2) having knowledge of any other lawful order issued by a member of the armed forces, which it is his duty to obey, fails to obey the order; or
3) is derelict in the performance of his duties; shall be punished as a court-martial may direct.
(Tradução livre)
Art. 92. Desobediência a ordem ou regulamento
Qualquer pessoa sujeita a este capítulo que
1) viole ou deixe de obedecer a qualquer ordem geral ou regulamento legítimo;
2) tendo conhecimento de qualquer outra ordem legítima emitida por um membro das forças armadas, a qual é seu dever obedecer, deixar de obedecer à ordem; ou
3) seja negligente no desempenho de seus deveres;
será punida conforme decisão do tribunal militar.
O dispositivo tipifica a desobediência a ordens legais ou regulamentos emitidos por autoridade competente, o que abrange normas de conduta em redes sociais. A título de exemplo, um militar que, após orientação expressa do comando, continue a usar a farda em postagens de cunho político ou satírico pode ser punido por violar uma ordem legal.
O UCMJ, ao contrário do Código Penal Militar brasileiro, não criminaliza genericamente a crítica à instituição, mas o faz quando ela compromete a autoridade, a cadeia de comando ou a missão das Forças Armadas.
4.2. Department of Defense (DoD) Directive 1344.10 (Diretiva do Departamento de Defesa sobre atividades políticas de membros das Forças Armadas)
Este é o regulamento do Departamento de Defesa que rege a atividade político-partidária de militares da ativa, sendo uma das principais bases para as restrições aplicáveis em redes sociais.
Entre as proibições destacam-se: fazer declarações públicas ou postagens que impliquem endosso político-partidário; usar a farda, patente ou ambiente militar em vídeos, fotos ou publicações com conotação política; e participar de comícios, atos ou campanhas eleitorais na condição de militar da ativa.
Transcrevem-se alguns dispositivos do documento:
4.3.3. Any member on active duty who is permitted to be, or otherwise not prohibited from being, a nominee or candidate for office as described in subparagraph 4.2.1. may NOT participate in any campaign activities. This includes open and active campaigning and all behind-the-scene activities. For example, such members described in this paragraph who are candidates or nominees may not:
4.3.3.1. Direct, control, manage, or otherwise participate in their campaign, including behind-the-scene activities.
4.3.3.2. Make statements to or answer questions from the news media regarding political issues or regarding government policies or activities unless specifically authorized to do so by an appropriate supervisor or commander.
4.3.3.3. Publish or allow to be published partisan political articles, literature, or documents that they have signed, written, or approved that solicit votes for or against a partisan political party, candidate, issue, or cause.
(Tradução livre)
4.3.3. Qualquer militar da ativa que esteja autorizado a ser, ou que não esteja proibido de ser, candidato ou indicado para um cargo conforme descrito no subparágrafo 4.2.1, NÃO pode participar de qualquer atividade de campanha. Isso inclui campanhas abertas e ativas, bem como todas as atividades nos bastidores. Por exemplo, tais membros descritos neste parágrafo que são candidatos ou indicados não podem:
4.3.3.1. Dirigir, controlar, administrar ou de outro modo participar de sua campanha, incluindo atividades nos bastidores.
4.3.3.2. Fazer declarações ou responder perguntas da imprensa sobre questões políticas ou sobre políticas ou atividades governamentais, a menos que especificamente autorizado por um supervisor ou comandante adequado.
4.3.3.3. Publicar ou permitir a publicação de artigos, literaturas ou documentos políticos partidários que tenham assinado, escrito ou aprovado e que solicitem votos a favor ou contra um partido partidário, candidato, questão ou causa.
Entretanto, o regulamento autoriza manifestações não políticas e expressões pessoais desde que não interfiram na missão, na disciplina ou na neutralidade institucional.
Autoriza, também, a participação em clubes de cunho político, sejam partidários ou não partidários, desde que não fardado:
4.1.1. A member of the Armed Forces on active duty may:
[...]
4.1.1.3. Join a partisan or nonpartisan political club and attend its meetings when not
in uniform, subject to the restrictions of subparagraph 4.1.2.4.
(Tradução livre)
4.1.1. Um membro das Forças Armadas em serviço ativo pode:
[...]
4.1.1.3. Participar de um clube político partidário ou não partidário e assistir às suas reuniões quando não estiver fardado, sujeito às restrições do subparágrafo 4.1.2.4.
Portanto, há diversos limites bem estabelecidos para os militares norte-americanos.
4.3. Army Regulation 600-20 (Regulamento do Exército 600-20 - Política de Comando do Exército)
Este regulamento, voltado especificamente ao Exército, impõe diretrizes gerais sobre conduta, comando e disciplina, e inclui capítulo sobre o uso de redes sociais. Os principais pontos são: militares podem manter perfis e páginas pessoais, mas devem abster-se de linguagem ofensiva ou hostil; o uso da farda em redes sociais só é permitido em contexto institucional, com decoro e sob autorização; é vedado postar conteúdo que prejudique a coesão da unidade, a autoridade dos comandantes ou a segurança operacional.
Trecho interessante do documento exemplifica condutas relacionadas ao meio cibernético vedadas aos militares:
Examples of prohibited cyber-related activities include:
(a) Participating in the promotion of demonstrations or rallies through the use of cyber activities and social media.
(b) Promotion of a meeting or activity through the use of cyber activities and or social media with the knowledge that the meeting or activity involves an extremist cause.
(c) Fundraising activities using cyber activity or social media.
(d) Recruiting or training members (including encouraging other Soldiers to join) using cyber activity or social media.
(e) Creating, organizing, or taking a visible leadership role in such a cyber or social media activity.
(f) Promoting information through cyber activity, the primary purpose and content of which concerns advocacy or support of extremist causes, organizations, or activities; and it appears that the information presents a clear danger to the loyalty, discipline, or morale of military personnel or the distribution would materially interfere with the accomplishment of a military mission.
(g) Browsing or visiting internet Web sites or engaging in cyber activities when on duty, without official sanction, that promote or advocate violence directed against the U.S. or DoD, or that promote international terrorism or terrorist themes.
(Tradução livre)
Exemplos de atividades cibernéticas proibidas incluem:
(a) Participar da promoção de manifestações ou comícios por meio de atividades cibernéticas e redes sociais.
(b) Promover uma reunião ou atividade utilizando atividades cibernéticas e/ou redes sociais, sabendo que a reunião ou atividade envolve uma causa extremista.
(c) Atividades de arrecadação de fundos utilizando atividades cibernéticas ou redes sociais.
(d) Recrutar ou treinar membros (incluindo incentivar outros soldados a se juntarem) usando atividades cibernéticas ou redes sociais.
(e) Criar, organizar ou assumir um papel de liderança visível em tal atividade cibernética ou de redes sociais.
(f) Promover informações por meio de atividades cibernéticas cujo objetivo principal e conteúdo dizem respeito à defesa ou apoio a causas, organizações ou atividades extremistas; e que, aparentemente, a informação representa um perigo claro para a lealdade, disciplina ou moral do pessoal militar ou cuja divulgação interferiria materialmente na realização de uma missão militar.
(g) Navegar ou visitar sites da internet ou se envolver em atividades cibernéticas durante o serviço, sem autorização oficial, que promovam ou defendam a violência contra os Estados Unidos ou o Departamento de Defesa, ou que promovam terrorismo internacional ou temas terroristas.
O AR 600-20 também reforça que os comandantes são responsáveis por instruir seus subordinados quanto aos riscos e limites do uso das redes, e podem determinar sanções disciplinares internas ou remeter os casos ao sistema de justiça militar, quando necessário:
3 Command authority. Commanders have the authority to prohibit military personnel from engaging in or participating in any cyber or social media activities that the commander determines will adversely affect good order and discipline or morale within the command. This includes, but is not limited to, the authority to order the removal of images, symbols, flags, language, or other displays from social media and internet domains, or to order Soldiers not to participate in cyber and social media activities that are contrary to good order and discipline or morale of the unit or pose a threat to health, safety, and operational security of military personnel or a military installation.
(Tradução livre)
3 Autoridade do comando. Os comandantes têm autoridade para proibir o pessoal militar de se envolver ou participar de quaisquer atividades cibernéticas ou em redes sociais que o comandante determinar que possam afetar negativamente a boa ordem, a disciplina ou o moral dentro do comando. Isso inclui, mas não se limita à autoridade para ordenar a remoção de imagens, símbolos, bandeiras, linguagem ou outras exibições nas redes sociais e domínios da internet, ou para ordenar que os soldados não participem de atividades cibernéticas e em redes sociais que sejam contrárias à boa ordem, à disciplina ou ao moral da unidade, ou que representem uma ameaça à saúde, segurança e segurança operacional do pessoal militar ou de uma instalação militar.
Percebe-se, assim, a necessidade de uma efetiva ação da comando também no Exército dos Estados Unidos da América.
4.4. Army Regulation 360-1 (Regulamento do Exército 360-1 - Programa de Assuntos Públicos do Exército)
Este regulamento detalha como o Exército se comunica com o público e orienta diretamente o uso institucional das mídias sociais. Dentre as orientações, destacam-se: os militares devem sempre deixar claro, em postagens pessoais, que suas opiniões não representam as das Forças Armadas; são proibidas postagens que envolvam conteúdo sensível, informações confidenciais ou que exponham negativamente a missão militar; o uso de perfis falsos ou anônimos para driblar restrições institucionais também é vedado e pode acarretar sanções administrativas.
Destaque-se o capítulo denominado “8–6. Personal use of social media and appropriate online conduct”, do qual se extrai o seguinte dispositivo:
b. Soldiers should use their best judgment, remembering that there are always consequences to what is written or photographed. If they are about to post something that is questionable and may reflect negatively on the Army, they should review this and other relevant guidance thoroughly.
(Tradução livre)
b. Os soldados devem fazer seu melhor julgamento, lembrando que sempre existem consequências para o que é escrito ou fotografado. Se estiverem prestes a postar algo que possa ser questionável e que possa refletir negativamente sobre o Exército, devem revisar cuidadosamente esta e outras orientações relevantes.
O regulamento enfatiza o “melhor julgamento” a ser feito pelo militar, demonstrando a típica visão americana, com uma abordagem mais casuística e orientada por princípios.
4.5. Casos práticos e aplicação disciplinar
A jurisprudência administrativa nas Forças Armadas dos Estados Unidos revela uma tolerância moderada com o uso de redes sociais para fins pessoais, mas aplica sanções firmes nos seguintes casos: críticas públicas a superiores hierárquicos, especialmente com linguagem imprópria ou provocativa (SINGER, 2008); postagens de militares fardados em atos políticos, mesmo sem manifestação verbal (DVIDS, 2021; DVIDS, 2014); divulgação de conteúdos sensíveis, operações em andamento ou estratégias militares (HARGIS, 2014; SECK, 2025; GOLDMAN, 2005; LEE, 2013); e expressões de ódio, incitação à violência ou conteúdo racista, ainda que em perfis pessoais (FIELDS, 2010).
Em 2021, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos reiterou as proibições em memorando interno após militares participarem ou comentarem favoravelmente atos políticos extremos, como a invasão do Capitólio (MILITARY.COM, 2025). Vários militares foram punidos com base no artigo 92 do Código Uniforme de Justiça Militar (Uniform Code of Military Justice - UCMJ) e removidos de suas funções.
Esse modelo normativo evidencia que, embora os militares norte-americanos tenham maior liberdade aparente de expressão, essa liberdade está balizada por limites institucionais claros e constantemente reforçados por comandos, regulamentos e cultura organizacional.