Capa da publicação Tarifa zero no transporte público é sustentável?
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Tarifa zero nacional.

Estrutura jurídico-econômica, reforma tributária e sustentabilidade urbana

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13/10/2025 às 16:30

Resumo:


  • A tarifa zero nacional no transporte público brasileiro é debatida sob perspectivas jurídico-econômicas e ambientais, como forma de inclusão social e democratização do acesso à cidade.

  • A implementação da tarifa zero requer uma reconfiguração do modelo de financiamento público e da governança do transporte coletivo, com destaque para a necessidade de fontes de custeio estáveis e sustentáveis.

  • A transição para um sistema de gratuidade integral implica desafios contratuais, fiscais e ambientais, demandando uma engenharia institucional que concilie eficiência, equilíbrio contratual e sustentabilidade orçamentária.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. Sustentabilidade urbana e ambiental

A política de tarifa zero nacional não se resume a uma questão de custeio ou de eficiência administrativa: ela insere-se em uma agenda mais ampla de sustentabilidade urbana e transição ambiental justa, na qual o transporte público coletivo é reconhecido como instrumento de mitigação das emissões de gases de efeito estufa, inclusão social e ordenamento racional do espaço urbano.

O transporte, como dimensão da política urbana, transcende a função logística e passa a ser elemento de efetivação do direito ao meio ambiente equilibrado (art. 225, CF) e da função social da cidade (art. 182, CF).

A Lei nº 12.587/2012 (Política Nacional de Mobilidade Urbana) estabelece, entre seus princípios, a integração entre mobilidade, meio ambiente e ordenamento territorial, determinando prioridade ao transporte público coletivo sobre o individual motorizado e incentivando os modos não motorizados.

O art. 7º da referida lei impõe aos entes federativos o dever de formular políticas que reduzam custos ambientais e sociais da mobilidade, promovendo a acessibilidade universal e a eficiência energética.

Assim, a tarifa zero pode ser interpretada como instrumento de incentivo ambiental indireto, pois estimula o uso do transporte coletivo, reduz a circulação de veículos particulares e, por consequência, contribui para a descarbonização das cidades.

Ainda que concebida como política social, sua implementação repercute positivamente na qualidade ambiental urbana, reforçando compromissos internacionais de mitigação climática.

Nesse mesmo contexto de mitigação e eficiência, a transição tecnológica das frotas, com a introdução progressiva de ônibus elétricos, representa a materialização prática da política de mobilidade de baixo carbono delineada pela Lei nº 12.187/2009 (Política Nacional sobre Mudança do Clima) e pelo Decreto nº 11.624/2023, que institui o Programa Nacional de Mobilidade Urbana de Baixo Carbono.

O referido decreto orienta a substituição gradual de frotas movidas a combustíveis fósseis por veículos elétricos ou híbridos, prevendo incentivos financeiros, metas de redução de emissões e estímulo à inovação tecnológica.

Em termos jurídicos, a eletrificação não é mero ato discricionário, mas uma obrigação progressiva de política pública, integrando o dever estatal de proteção ambiental e de promoção da eficiência energética.

A relação entre a eletrificação da frota e a tarifa zero é direta e estrutural. Ambas as políticas partilham o mesmo fundamento jurídico — o dever de garantir um transporte público acessível, eficiente e ambientalmente sustentável — e dependem de fontes de custeio estáveis.

Se, por um lado, a gratuidade transfere ao Estado o papel de financiador integral do sistema, conferindo-lhe poder regulatório para exigir padrões de sustentabilidade, por outro, a adoção de ônibus elétricos reduz custos operacionais no médio prazo, ao diminuir o consumo de combustível e a manutenção mecânica, tornando a tarifa zero mais fiscalmente viável.

Essa relação de reciprocidade cria um ciclo virtuoso: quanto mais limpa e eficiente a frota, menor o custo estrutural do sistema e maior a possibilidade de manutenção da gratuidade de forma responsável.

A execução dessa transição tecnológica requer planejamento financeiro e contratual adequado.

Os ônibus elétricos possuem custo inicial superior aos veículos convencionais — diferença que pode chegar a 80% —, o que exige modelos de financiamento híbridos, com participação pública e privada.

O BNDES, a Finep e o Fundo Clima (Lei nº 12.114/2009) têm desempenhado papel relevante nesse processo, oferecendo crédito direcionado à renovação de frota e à instalação de infraestrutura de recarga.

A reforma tributária (EC nº 132/2023) reforça esse quadro, ao permitir que o imposto seletivo sobre combustíveis fósseis e a Cide-Combustíveis reformulada sejam utilizados como instrumentos de tributação ambiental e fonte de financiamento da mobilidade sustentável, viabilizando simultaneamente a tarifa zero e a eletrificação das frotas urbanas.

Sob o prisma da regulação, a introdução de ônibus elétricos redefine a estrutura de incentivos e riscos nos contratos de concessão.

O investimento inicial elevado demanda garantias públicas de amortização e pode justificar remuneração por disponibilidade ou por indicadores de desempenho ambiental, nos termos da Lei nº 14.133/2021.

Por outro lado, o custo operacional mais baixo permite cláusulas de repasse de eficiência ao poder público, garantindo redução gradual de subsídios.

Esse arranjo reflete a aplicação concreta do princípio da eficiência (art. 37, caput, CF), entendido não apenas sob a ótica financeira, mas também ecológica, orientando a administração a adotar tecnologias menos poluentes e mais racionais do ponto de vista energético.

Cidades como São Paulo, Curitiba e Salvador já incorporaram tais diretrizes em seus editais de concessão, estabelecendo metas anuais de eletrificação da frota, monitoramento de emissões e indicadores auditáveis de consumo energético.

Esses parâmetros se alinham à experiência internacional de cidades como Shenzhen (China), Paris (França) e Tallinn (Estônia), que associaram gratuidade parcial ou total a programas de eletrificação integral do transporte público, obtendo resultados expressivos na redução de poluentes e na melhoria da qualidade do ar.

O exemplo demonstra que a sustentabilidade fiscal e ambiental não são excludentes, mas mutuamente dependentes, quando inseridas em marcos regulatórios transparentes e planejamentos de longo prazo.

Todavia, a implantação simultânea da tarifa zero e da eletrificação deve observar planejamento integrado e capacidade operacional.

O aumento da demanda sem expansão proporcional da oferta pode gerar sobrecarga do sistema e comprometimento da qualidade do serviço.

Por isso, o êxito da política requer planos diretores de mobilidade sustentável (PDMU), previstos na Lei nº 12.587/2012, com metas de eficiência energética, redução de emissões, integração modal e articulação com políticas de uso do solo.

A gratuidade, nesse contexto, deve ser compreendida como parte de uma política pública composta, e não como medida isolada.

A dimensão ambiental da tarifa zero insere-se, ainda, em um cenário internacional de transição energética e governança climática, reforçado pelos compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris (2015) e nas Conferências das Partes, incluindo a COP-30, a ser realizada em Belém em 2025.

O transporte responde por cerca de 20% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa, segundo o Ministério do Meio Ambiente, o que torna o setor alvo prioritário das metas de redução de 50% das emissões até 2030 e neutralidade de carbono até 2050.

A tarifa zero associada à eletrificação da frota pode contribuir de modo decisivo para esses objetivos, traduzindo compromissos climáticos em políticas públicas concretas.

Sob o ponto de vista constitucional, a integração entre mobilidade, meio ambiente e desenvolvimento urbano reflete o modelo de federalismo cooperativo delineado nos arts. 23, VI e IX, e 241 da Constituição Federal.

A criação de um Fundo Nacional de Mobilidade Sustentável, com receitas oriundas de tributos seletivos, pedágios urbanos, IPTU progressivo e contribuições ambientais, representaria um mecanismo jurídico eficaz de articulação federativa, permitindo que a tarifa zero e a eletrificação das frotas sejam implementadas de modo coordenado e financeiramente equilibrado.

Tal arranjo harmoniza os princípios da responsabilidade fiscal, da proteção ambiental e da função social da cidade, promovendo uma governança intersetorial voltada ao desenvolvimento urbano sustentável.

Em síntese, a tarifa zero e a eletrificação dos transportes urbanos constituem faces complementares de uma mesma política pública: ambas materializam a integração entre os direitos fundamentais à cidade, ao meio ambiente equilibrado e à mobilidade eficiente.

Sua implementação exige planejamento jurídico, financeiro e ambiental unificado, capaz de assegurar que a busca por inclusão social e sustentabilidade não resulte em desequilíbrio fiscal nem em degradação operacional.

Quando articuladas sob um marco de responsabilidade e eficiência, essas políticas podem representar um avanço concreto na consolidação do Estado Ambiental e Social de Direito, no qual o transporte público se converte em verdadeiro vetor de justiça climática, equidade territorial e desenvolvimento urbano sustentável.


6. Considerações finais

A discussão em torno da tarifa zero nacional transcende o mero debate econômico sobre custeio e subsídio.

Ela traduz uma reformulação estrutural do papel do Estado na garantia do direito ao transporte público, projetando-se como uma política pública multifacetada, na qual se entrecruzam dimensões constitucionais, fiscais, contratuais, federativas e ambientais.

Mais do que a gratuidade em si, o que está em análise é a capacidade do Estado brasileiro de estruturar mecanismos de financiamento estáveis, juridicamente legítimos e ambientalmente responsáveis, aptos a sustentar um modelo de mobilidade urbana coerente com os princípios do Estado Social e Ambiental de Direito.

Sob o prisma constitucional, a tarifa zero representa o desdobramento lógico do direito social ao transporte, inserido no art. 6º da Constituição Federal, e deve ser interpretada em sintonia com o princípio da dignidade da pessoa humana e com os valores da solidariedade federativa.

Não há, nesse contexto, incompatibilidade entre a gratuidade e a disciplina fiscal: o desafio consiste em articular os instrumentos de planejamento e responsabilidade financeira — especialmente os previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000) — com a efetivação progressiva dos direitos sociais, de modo a harmonizar a prudência orçamentária com a justiça distributiva.

A tarifa zero, quando amparada por fontes de custeio permanentes e transparência administrativa, converte-se em expressão legítima da função social do gasto público, não em seu desvio.

No plano jurídico-administrativo, a transição do modelo tarifário para o modelo de financiamento público implica a reconfiguração da relação contratual entre poder concedente e concessionário.

O equilíbrio econômico-financeiro, núcleo de estabilidade dos contratos de concessão, deixa de se apoiar exclusivamente na tarifa paga pelo usuário e passa a depender da contraprestação pública orçamentária, o que exige revisões contratuais criteriosas, compatíveis com os arts. 65. da Lei nº 8.666/1993 e 124 da Lei nº 14.133/2021.

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Esse novo paradigma impõe à Administração o dever de racionalizar subsídios, incorporar indicadores de desempenho e vincular parte da remuneração à eficiência operacional e ambiental, de modo a evitar a captura regulatória e a assegurar o uso adequado dos recursos públicos.

Do ponto de vista fiscal e tributário, a reforma tributária (EC nº 132/2023) inaugura um terreno institucional propício à consolidação de políticas nacionais de mobilidade. Ao substituir tributos fragmentados por sistemas integrados — o IBS e a CBS — e admitir vinculações temáticas de receitas, a reforma cria as condições para a formação de um Fundo Nacional de Mobilidade Sustentável, com fontes derivadas de tributos ambientais, pedágios urbanos, IPTU progressivo e contribuições empresariais setoriais.

A introdução do imposto seletivo sobre combustíveis fósseis, por sua vez, abre espaço jurídico para financiar políticas de transporte de baixo carbono, compatibilizando a arrecadação tributária com o dever de proteção ambiental (art. 225, CF) e com os compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris.

A dimensão ambiental e urbana é o ponto de convergência entre essas políticas. O transporte coletivo gratuito, associado à eletrificação da frota e à redução de emissões, não é mera inovação administrativa, mas expressão concreta da política nacional de mitigação climática (Lei nº 12.187/2009).

O modelo de ônibus elétricos, quando integrado à tarifa zero, reforça a eficiência energética e reduz o custo operacional de longo prazo, legitimando o investimento público sob os princípios da eficiência, da sustentabilidade intergeracional e da prevenção ambiental. Nesse cenário, a mobilidade urbana deixa de ser vista apenas como serviço público essencial e passa a ser compreendida como infraestrutura ecológica, dotada de valor social e climático.

A partir dessa ótica, a tarifa zero não deve ser romantizada como utopia orçamentária nem reduzida a expediente populista, mas analisada como instrumento sofisticado de redistribuição social e ambiental, cujo êxito depende de engenharia jurídica rigorosa e coordenação federativa eficiente.

O sucesso da política exige planejamento plurianual, métricas de desempenho, auditoria contábil, integração modal e controle social, garantindo que o subsídio público produza benefícios mensuráveis em termos de inclusão, eficiência e sustentabilidade.

Trata-se de concretizar, em termos jurídicos, a tríade que sustenta o Estado contemporâneo: racionalidade fiscal, eficácia administrativa e responsabilidade ambiental.

No plano internacional, a proposta de tarifa zero posiciona o Brasil em sintonia com tendências globais de governança urbana sustentável. Experiências europeias e asiáticas demonstram que o transporte gratuito, quando associado à transição energética e ao planejamento metropolitano, resulta em aumento de produtividade, coesão territorial e redução de emissões.

A inserção da temática na agenda da COP-30, a realizar-se em Belém, reforça o papel do país como laboratório normativo de políticas públicas de baixo carbono aplicadas a economias emergentes — campo em que o direito público brasileiro pode desempenhar papel paradigmático, unindo inclusão social e regulação climática.

Em conclusão, a tarifa zero nacional representa um projeto jurídico-institucional de nova geração, capaz de integrar políticas de mobilidade, fiscalidade e sustentabilidade sob a égide dos princípios constitucionais da eficiência, da solidariedade e da responsabilidade ambiental.

Sua viabilidade não reside apenas na disponibilidade de recursos, mas na construção de um modelo de governança cooperativa que alinhe União, estados e municípios em torno de um mesmo objetivo: garantir o direito fundamental à mobilidade como extensão do direito à cidade e à dignidade humana.

Assim, a gratuidade no transporte público — quando inserida em um sistema juridicamente equilibrado, fiscalmente prudente e ambientalmente consciente — deixa de ser promessa retórica e se afirma como expressão contemporânea da justiça social e climática, símbolo de um Estado que busca, com racionalidade e coragem, compatibilizar desenvolvimento, equidade e sustentabilidade.

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Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAGROTTA, Luiz Carlos Nacif. Tarifa zero nacional.: Estrutura jurídico-econômica, reforma tributária e sustentabilidade urbana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8139, 13 out. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115942. Acesso em: 5 dez. 2025.

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