Resumo: Este artigo examina a ausência de tratamento penal específico à receptação de artefatos bélicos no ordenamento jurídico brasileiro e propõe a criação de uma qualificadora para esse delito. Analisa a relevância criminológica da receptação armamentista, sua relação direta com o tráfico ilícito de materiais bélicos e o impacto dessa conduta na segurança pública. O estudo demonstra que, embora o Código Penal Militar tenha incorporado, pela Lei nº 14.688/2023, uma qualificadora fundada na natureza do objeto material, o Código Penal permanece silente, o que evidencia lacuna normativa relevante. A pesquisa aborda ainda a inaplicação do princípio da consunção entre o crime de receptação de artefato bélico e os tipos penais previstos no Estatuto do Desarmamento, à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que reconhece a autonomia e a gravidade da conduta. Por fim, sustenta que a previsão de uma qualificadora específica para a receptação armamentista representa medida necessária à efetividade do princípio da individualização da pena, à coerência do sistema repressivo e ao cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate ao tráfico de materiais bélicos.
Palavras-chave: Receptação de artefato bélico; tráfico ilícito de materiais bélicos; política criminal; lacuna legislativa; individualização da pena; segurança pública.
1. A CIRCULAÇÃO ILÍCITA DE ARTEFATOS BÉLICOS E A NECESSIDADE DE APRIMORAMENTO DAS POLÍTICAS CRIMINAIS NO BRASIL
Desde a gênese da convivência social, a vida em coletividade tem sido marcada por tentativas de controle da violência e de regulação dos instrumentos capazes de produzi-la. No entanto, o avanço da tecnologia e a facilidade de acesso a armamentos, tanto no mercado formal quanto no clandestino, têm alterado de modo significativo a dinâmica criminal contemporânea. A arma de fogo, enquanto instrumento de poder e letalidade, tornou-se elemento central de inúmeras práticas delitivas1.
Com efeito, a presença de armas de fogo gerou uma verdadeira metamorfose na criminalidade contemporânea, cujo emprego não se limita aos crimes contra a vida, alcança os delitos patrimoniais, sobretudo roubos, latrocínios e extorsões. Verifica-se, por consequência, a elevação do risco social e ampliação da gravidade das infrações, uma vez que o uso ou a simples posse de armas intensifica a capacidade lesiva e intimidatória do delinquente, além de comprometer a segurança da coletividade2.
No cenário internacional, o comércio ilícito de armas de fogo constitui uma das atividades criminosas mais lucrativas. Estima-se que entre 2022 e 2023 foram registradas mais de 11 mil apreensões de armas de fogo em 81 países, o que totaliza mais de 2,3 milhões de itens, além de munições e componentes3. Na mesma linha, relatórios recentes da United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), ressaltam que as rotas internacionais de tráfico de armamentos representam um dos principais fatores de fortalecimento do crime organizado, especialmente na América Latina, onde armas ilegais abastecem o narcotráfico, organizações paramilitares e facções urbanas4.
Consigne-se, inclusive, que o Protocolo contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, suas Peças, Componentes e Munições, suplementar à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, e incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 5.941/2006, estabelece parâmetros para o controle, marcação, rastreamento de armas de fogo e tipificação penal das condutas relacionadas ao seu comércio e circulação ilícitos5.
Nessa toada, o artigo 5, parágrafo 1, do Protocolo mencionado alhures, ao tratar da penalização das condutas, prescreve aos Estados Parte que adotem medidas legislativas e outras que sejam necessárias para tipificar como delitos criminais: a fabricação ilícita de armas de fogo, suas peças e componentes e munições; o tráfico ilícito de armas de fogo, suas peças e componentes e munições e; a falsificação ou obliteração, supressão ou alteração ilícitas de marcas em armas de fogo6. Acresça-se a isso o conteúdo normativo do parágrafo 2 do dispositivo citado, o qual orienta a tipificação da conduta daquele que tentar cometer, participar como cúmplice, ou organizar, dirigir, auxiliar, incitar, facilitar ou assessorar a prática de qualquer dos delitos nele tipificados7.
Nota-se que as disposições não se restringem aos atos principais, alcançam as condutas acessórias e de menor gravidade, desde que vinculadas ao tráfico ilícito de armas, o que consolida uma abordagem ampla e preventiva no enfrentamento desse fenômeno delituoso8. Simonetta Grassi, Chefe do Global Firearms Programme do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), salienta que o Protocolo foi concebido como um compromisso à repreensão do crescente problema do tráfico internacional de armas de fogo. Obtempera que o tráfico ilícito de armas não apenas potencializa outras formas de criminalidade transnacional — como o tráfico de drogas, o terrorismo e a corrupção —, contribui para o aumento da criminalidade interna, ao alimentar a violência e fortalecer organizações criminosas dentro dos próprios Estados9.
No contexto brasileiro, a crescente apreensão de armas de fogo evidencia a dimensão e a complexidade do mercado ilícito de armamentos. Apenas em 2023, foram apreendidas 10.935 armas de fogo pelas forças de segurança federais, número 28% superior ao registrado no ano anterior, total que alcançou 13.340 apreensões entre janeiro de 2023 e abril de 202410. Estima-se que, entre os anos de 2015 e 2020, 92% das armas apreendidas em crimes no Estado de São Paulo eram ilegais e não possuíam registro. Ademais, aproximadamente metade dessas armas apresentava numeração suprimida, o que, por conseguinte, compromete a rastreabilidade e evidencia indícios de adulteração ou remoção de identificação11.
É imperioso destacar que, para cada arma apreendida, há um fluxo anterior de aquisição e circulação que raramente é investigado de maneira eficaz12. Uma parcela expressiva das armas apreendidas no Brasil teve origem no próprio mercado legal. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou que mais de 55% das armas apreendidas no país possuíam registro anterior, isto é, foram em algum momento legalmente adquiridas antes de ingressarem no circuito criminoso. Tal constatação revela que o tráfico e o uso ilícito de armamentos no território nacional abrange, em grande medida, desvios de arsenais civis, policiais e militares, furtos e receptações internas13.
A literatura empírica indica que os desvios e a receptação de armas do mercado legal para circuitos clandestinos contribuem de modo direto para a expansão da violência armada: o aumento da difusão de armamentos eleva a letalidade de conflitos e facilita o acesso de criminosos a meios mais letais14. O cenário expõe a vulnerabilidade das políticas criminais voltadas à contenção da circulação ilegal de armas de fogo, cuja consequência natural é o fomento da criminalidade e a exposição da coletividade a maiores riscos15.
Por sua vez, Robin Geiss, diretor do United Nations Institute for Disarmament Research (UNIDIR), destaca que o comércio ilícito de armas “mina a paz, alimenta conflitos e destrói comunidades inteiras”, o que o torna um dos principais entraves à efetivação da segurança humana e da estabilidade internacional16. Nada obstante a receptação de armamentos represente conduta de menor gravidade em comparação ao tráfico ilícito, trata-se, ainda assim, de prática grave e merecedora de reprimenda, por contribuir diretamente para a manutenção e o fomento do mercado ilegal de armamentos17.
Sob tal enfoque, a receptação de artefatos bélicos possui grau de gravidade que transcende a mera aquisição de bem de origem ilícita. Diferente da receptação simples, essa modalidade envolve objeto que, por sua própria natureza, potencializa a exposição da coletividade a riscos18, pois funciona como elo essencial na engrenagem do comércio clandestino de armas e produz impacto social pernicioso, na medida em que fragiliza as políticas de segurança pública19.
Diante desse quadro, torna-se evidente a necessidade de se analisar as políticas criminais voltadas à repreensão da conduta de receptação de artefatos bélicos à luz da gravidade intrínseca dessa conduta e sua repercussão na segurança coletiva.
2. DA RECEPTAÇÃO DE ARTEFATOS BÉLICOS
O crime de nomen iuris receptação encontra guarida no art. 180, caput, do Código Penal, o qual pune aquele que adquire, recebe, transporta, conduz ou oculta, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influi para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. A pena do tipo simples é de reclusão de um a quatro anos e multa20.
Ressalte-se que o tipo penal em exame conta com duas qualificadoras. A primeira traz uma mudança na baliza das penas para três a oito anos de reclusão e multa, quando o agente, no exercício de atividade comercial ou industrial, além dos verbos da forma simples do tipo, mantém em depósito, remonta, monta, desmonta, vende, expõe à venda ou utiliza coisa que deve saber ser produto de crime21. A segunda eleva as penas do tipo simples ao dobro caso o objeto material do crime integre o patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos22.
Ao analisar a segunda hipótese, Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini obtemperam que diante da natureza do bem jurídico ofendido, o qual interessa a toda coletividade, o tratamento legal é exasperado23.
Mutatis mutandis, poder-se-ia vislumbrar a pertinência de recrudescer o tratamento penal conferido à receptação de artefatos bélicos. Isso porque, se na qualificadora em comento o legislador entendeu por bem agravar a pena em razão do bem jurídico lesado pertencer à coletividade, com muito mais razão caberia o acirramento da sanção frente à maior exposição da coletividade a riscos, dada a natureza do objeto material.
Na mesma linha, é salutar destacar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que é possível o aumento da pena-base pela receptação de arma de fogo, uma vez que esse comportamento evidencia um elevado grau de reprovabilidade que extrapola a própria conduta tipificada24.
Cumpre salientar que, ao elaborar a Lei nº 14.688, de 2023, o legislador reconheceu a gravidade da conduta do agente que recepta material armamentista, razão pela qual incluiu no Código Penal Militar uma qualificadora, aplicável em função da natureza do objeto material, quando se tratar de arma, munição, explosivo ou qualquer outro material militar de uso restrito ou que contenham sinais indicativos de pertencer a instituição militar25. Referida previsão não encontra correspondência no Código Penal comum26.
Consigne-se, ademais, que a Lei nº 10.826, de 2003 (Estatuto do Desarmamento), em nenhum momento promoveu o recrudescimento do tratamento penal conferido àquele que recepta instrumentos bélicos, na verdade, nem mesmo tipificou essa conduta. O diploma legal em questão limitou-se a disciplinar condutas autônomas relativas à posse, ao porte e ao comércio de armas, sem prever qualquer agravamento específico para a receptação cujo objeto material seja o artefato armamentista.
Calha mencionar, a propósito, que, a Corte Cidadã rechaçou a tese da aplicação do princípio da consunção entre os crimes de receptação e porte ilegal de arma de fogo, em razão da autonomia das condutas e da diversidade dos bens jurídicos tutelados (grifos meus):
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. DESCABIMENTO. DOSIMETRIA DA PENA. RECEPTAÇÃO E PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. CONDUTAS DISTINTAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. WRIT NÃO CONHECIDO. 1. Em consonância com a orientação jurisprudencial da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal - STF, esta Corte não admite habeas corpus substitutivo de recurso próprio, sem prejuízo da concessão da ordem, de ofício, se existir flagrante ilegalidade na liberdade de locomoção do paciente. 2. Incabível a absorção do crime do art. 180, caput, do Código Penal, pelo de porte ilegal de arma de fogo (art. 14. da Lei n. 10.826/2003), mediante aplicação do princípio da consunção, notadamente pela ocorrência de condutas distintas. Precedente. Habeas corpus não conhecido.
(HC n. 434.521/RS, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 5/4/2018, DJe de 18/4/2018.)27.
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RECEPTAÇÃO (ART. 180. DO CÓDIGO PENAL) E PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO (ART. 14. DA LEI N. 10.826/2003). PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. AFASTAMENTO. CONHECIMENTO DA PROVENIÊNCIA ILÍCITA DO BEM ADQUIRIDO. ÔNUS DA DEFESA. 1. É inaplicável o princípio da consunção entre os delitos de receptação e porte ilegal de arma de fogo, por serem diversas a natureza jurídica dos tipos penais. 2. Flagrado o sentenciado na posse da coisa produto de crime, a ele compete a demonstração da sua aquisição lícita, nos termos do art. 156. do Código de Processo Penal, ônus do qual não se desincumbiu a defesa. 3. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no REsp n. 1.633.479/RS, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 6/11/2018, DJe de 16/11/2018.)28.
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECEPTAÇÃO E POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. CONSUNÇÃO. NÃO CABIMENTO. NATUREZA JURÍDICA DISTINTA. CRIMES AUTÔNOMOS. SÚMULA N. 83. DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. O STJ entende não ser cabível a absorção do crime de receptação pela posse de arma de fogo, em razão das naturezas jurídicas diversas de ambos, conforme a hipótese dos autos. Por esse motivo, o recurso especial é inadmissível pelo disposto na Súmula n. 83. do STJ. 2. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp n. 2.229.424/MG, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 14/3/2023.)29.
Com efeito, a heterogeneidade existente entre as condutas tipificadas no Estatuto do Desarmamento e a receptação de armamentos — que, embora igualmente grave e socialmente danosa, não recebeu tratamento penal diferenciado —, traz à baila uma lacuna de especificidade normativa na legislação penal comum.
Neste diapasão, o que se evidencia é que, embora o Superior Tribunal de Justiça reconheça a gravidade da receptação de artefato bélico e se valha dessa circunstância para exasperar a pena-base, não há tanto no Código Penal como na legislação extravagante qualquer previsão específica que agrave a sanção em virtude da natureza do objeto material armamentista, salvo o que dispõe o Código Penal Militar.
Diante do exposto, impõe-se avaliar a necessidade de recrudescimento das sanções penais relativas à receptação de armamentos, de modo a adequar a resposta estatal à gravidade e ao potencial lesivo da conduta, à luz do princípio constitucional da individualização da pena.
3. DA NECESSIDADE DE INSERÇÃO DE QUALIFICADORA PARA A RECEPTAÇÃO DE ARTEFATO BÉLICO
O princípio da individualização da pena, plasmado no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal, estabelece critérios para a aplicação personalizada da punição. Esse princípio transcende a esfera dos direitos fundamentais do condenado, apresenta relevância para a coletividade ao garantir que a punição seja adequada à gravidade do crime cometido. Cuida-se, ao mesmo tempo, de um mandamento vinculante e de uma diretriz de política criminal30.
Ao considerar as circunstâncias pessoais do agente e as especificidades do delito, busca-se evitar a imposição de penas desproporcionais ou inadequadas. Outrossim, a individualização da reprimenda penal contribui para a efetividade social da punição, sobretudo quanto à prevenção especial negativa, a qual tem por escopo central a contenção da delinquência futura31.
A conduta de receptação de material armamentista possui elevada reprovabilidade, o que, por conseguinte, exige uma reprimenda estatal mais rigorosa e que releve essa peculiar circunstância32. Ressalte-se, ainda, que, embora a gravidade da conduta seja inferior à do tráfico de armas, a receptação de armamentos contribui diretamente para a perpetuação dessa atividade, o que reforça a necessidade de adequada resposta penal.
Para além do Código Penal Militar, com as alterações introduzidas pela Lei nº 14.688, de 2023, que recrudesce a pena da receptação pelo objeto material armamentista33, o Código Penal Uruguaio prevê, de forma análoga, um qualificadora aplicável à espécie.
No ordenamento uruguaio, o Código Penal, por meio do artigo 350-TER, dispõe que, quando o objeto do delito de receptação for uma arma de fogo, um colete à prova de balas ou outro implemento de uso policial, a pena mínima será de dois anos de prisão. Caso tais objetos proviessem da Polícia, das Forças Armadas ou de empresas de segurança privada, o mínimo será de três anos34.
Ao se considerar a gravidade específica desse delito, sua potencialidade ofensiva ao bem jurídico tutelado e a maior exposição da coletividade a riscos, a exasperação das penas mostra-se, a priori, medida apta a corrigir uma lacuna de especificidade normativa, visto que, no ordenamento pátrio, a natureza do material bélico na receptação é considerada apenas na primeira etapa da dosimetria da pena, o que resulta em tratamento demasiadamente brando a um delito de elevada reprovabilidade.
As experiências evidenciam a necessidade de previsão normativa específica para a receptação de artefato bélico, seja para alinhamento ao tratamento previsto pelo Código Penal Militar, seja para incorporar a experiência internacional, como demonstrado pelo ordenamento uruguaio, que reconhece a importância de qualificar penalmente a conduta em razão da natureza do objeto material, com o reforço à proteção adequada proteção do bem jurídico e a adequação da reprimenda.