Capa da publicação Desapropriação: bases, tipos, vícios e controles
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Panorama de desapropriação: fundamentos, modalidades, vícios e controle

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7. Desapropriação Indireta

A desapropriação indireta não é uma espécie de desapropriação nem tampouco uma modalidade. Na verdade, se situa no universo das anomalias jurídicas é fato administrativo ilícito. Essa forma de “desapropriação” ocorre quando o Poder Público realiza um apossamento administrativo, utilizando um bem particular para fins públicos (e.g., construção de uma rodovia ou implantação de um parque) sem observar o devido processo legal (fases declaratória e executória) ou, ainda pior, sem efetuar o pagamento da indenização prévia devida.

A caracterização da desapropriação indireta exige, ainda, que o bem tenha sido incorporado ao patrimônio público, tenha recebido uma destinação pública (afetação) e que a situação fática seja irreversível.

Este ato viola frontalmente ao menos dois preceitos de envergadura constitucional: o direito fundamental à propriedade privada – que é, na falta de melhor expressão subtraída do particular – e a obrigatoriedade da indenização prévia. Por consequência resulta numa terceira ofensa aos direitos constitucionalmente assegurados: ofende ao princípio da legalidade.

A ação judicial movida pelo particular, neste caso, é de natureza indenizatória, buscando o ressarcimento pelo ato ilícito, e não a restituição da posse, uma vez que o interesse público geralmente já se consolidou sobre o bem. Não há como – e.g. – desfazer o hospital construído, desmanchar a escola erigida ou desmontar o prédio público levantado sobre a propriedade do particular.

Nesse cenário seria interessante não apenas indenizar o particular considerando-se os seis elementos de apuração retromencionados, como apurar-se de possível dano moral decorrente do esbulho: naturalmente o proprietário que tem sua propriedade esbulhada por um ente público sofre toda sorte de constrangimentos e, discutivelmente, abalo psíquico. Nesse sentido, soa plausível que, com demonstração pormenorizada no caso concreto, fosse reconhecido também o dano moral: imagine-se um fazendeiro que tem pequena gleba destinada ao seu sustento e de sua família, de origem familiar, passada de geração em geração: desapropriar e, sobretudo, indiretamente essa propriedade equivale a desterrar essa família, arrancá-la de suas raízes e sua história. Não é difícil imaginar como em tal cenário ocorreria profundo abalo psíquico, apto a ferir direitos da personalidade.

7.1. Prescrição da ação de indenização contra a desapropriação indireta

A prescrição da ação de indenização é o instituto que torna a questão indiscutível em processo judicial por demora do proprietário original em promover a ação. Equivale a uma perda do direito de ação.

O prazo para a propositura da ação de indenização por desapropriação indireta passou por significativa evolução jurisprudencial. Anteriormente, sob a vigência do Código Civil de 1916, o Superior Tribunal de Justiça aplicava o prazo vintenário (20 anos), conforme a Súmula 119. Contudo, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o STJ, em sede de Recurso Repetitivo (REsp 1.757.352 e 1.757.385), consolidou o entendimento de que o prazo prescricional aplicável é de dez anos, baseando-se na analogia com o prazo previsto para a usucapião extraordinária por posse-trabalho (art. 1.238, parágrafo único, CC/02), observadas as regras de transição (art. 2.028. do CC/02). Isso constitui uma tese bastante favorável à Fazenda Pública.

7.2. Pagamento na ação de indenização por desapropriação indireta

Porque a sentença que condena a Fazenda a pagar a indenização por desapropriação indireta nada mais é que uma sentença condenatória a pagar quantia certa em dinheiro, a determinação constitucional é de que a indenização seja paga via regime de precatórios – teor do art. 100, CF/88 - e sujeita-se à ordem cronológica e às dotações orçamentárias.

Contudo, este regime é reconhecidamente moroso, de modo que parece injusta a aplicação do precatório porque submete o particular, que já sofreu um ato ilícito e viu violado seu direito à indenização prévia, à lentidão do precatório. É incompatível com os mandamentos constitucionais de reparação justa, prévia e em dinheiro. Rafael Carvalho ainda denota dois aspectos que decorrem do emprego do regime de precatórios:

A regra dos juros moratórios: ele nota que a regra do precatório (art. 100, § 5º, da CF) afasta a caracterização da mora com o trânsito em julgado da sentença para pessoas jurídicas de direito público. Os juros de mora incidem apenas a partir de "1º de janeiro do exercício seguinte àquele em que o pagamento deveria ser feito”, nos termos do art. 100. da Constituição (2022, Cap. 21, itens 21.5.4.1 e 21.5.4.2.). Isso é passível de críticas, porque naturalmente isso desloca os juros para um momento muito posterior ao adequado (que seria antes mesmo da desapropriação). Seria de bom alvitre que fosse fixado pelo menos o momento da prática do ato ilícito – afinal, a desapropriação indireta é ato ilícito – ou o momento onde evidenciou-se que o proprietário originário tomou conhecimento da prática do ato ilícito (a distribuição da ação indenizatória, por exemplo). Isso encontraria ressonância no Código Civil, art. 398. e na Súmula 54 do STJ (CAVALCANTE, 2013). Na verdade, e conforme explicação do mesmo autor, pode-se concluir que a situação do expropriado, hoje, é ainda pior, porque não incide nem mesmo a Súmula 70, do STJ, quando o ente expropriante é pessoa jurídica de direito público. Diz essa súmula que “os juros moratórios, na desapropriação direta ou indireta, contam-se desde o trânsito em julgado da sentença”.

A regra dos juros compensatórios, como explicada pelo autor, é de fixação em 6% ao ano como previsto no art. 15-B do Decreto-lei 3.365/1941, declarado constitucional pelo STF. Se aplica aos casos de desapropriação direta com imissão na posse, mas também aos casos de desapropriação indireta. Conforme o entendimento do STF, esclarece que esse percentual incide sobre a diferença apurada entre oitenta porcento do valor ofertado em juízo e aquele apurado ao fim da ação. Com isso, afastou a interpretação literal do art. art. 15-A do Decreto-lei 3.365/1941 que estabelece que a base de cálculo seria menor: a diferença entre o valor (integral: cem porcento) depositado em juízo e o apurado ao final da ação. Essa interpretação do artigo seria prejudicial ao expropriado porque ele só pode levantar oitenta porcento do valor e não o valor por inteiro (CAVALCANTE, 2013). Isso gera um estímulo virtuoso para a Administração: como os juros compensatórios serão tanto maiores quanto maior for o erro de seu cálculo inicial – e a consideração dos oitenta porcento agrava isso – maior o incentivo para que a Administração apure diligentemente o valor real da propriedade expropriada.

7.3. Tredestinação e retrocessão

Como esclarecido alhures, o bem desapropriado deve ser utilizado para o fim público que justificou a declaração expropriatória – princípio da legalidade na sua vertente finalística. Como antecipou-se, também, o desvirtuamento desse fim tem impactos sobre a legalidade da desapropriação, que podem redundar na reaquisição da coisa pelo proprietário originário.

O primeiro conceito que decorre dessas observações é a TREDESTINAÇÃO: a alteração da destinação pública dada ao bem. Pode ser lícita (se o novo uso ainda atende ao interesse público) ou ilícita (desvio de finalidade), se o bem for desviado para uso particular ou para um fim não compatível com o interesse público. Neste segundo cenário, gera o direito de RETROCESSÃO.

RETROCESSÃO é o direito do ex-proprietário de reaver o bem caso o Poder Público não lhe dê o destino público previsto, diante de tredestinação ilícita. A doutrina majoritária trata a retrocessão como um direito real do expropriado que implica obrigação de fazer do Poder Público de oferecer o bem de volta ao expropriado, mediante a devolução do valor da indenização. Contudo, na prática judicial, ela frequentemente se resolve pela ação de perdas e danos, caso a Administração opte por indenizar o particular em vez de devolver o bem. O Estatuto da Cidade estabelece um prazo decadencial de cinco anos para que o Município proceda ao adequado aproveitamento do imóvel expropriado, contando a partir de sua incorporação. A previsão de retrocessão funciona como um mecanismo de controle da legalidade administrativa, assegurando que o Poder Público expropriante não abuse de seu poder discricionário ou desvie a finalidade pública declarada.


8. Efeitos da Desapropriação

Dois efeitos concorrem simultaneamente na desapropriação: ocorre a perda, subtração de um bem do patrimônio do particular, e surge originariamente no patrimônio da Administração. Dizer que surge originariamente, significa que a aquisição pelo Poder Público não está vinculada à situação jurídica anterior do bem.

A transferência da propriedade é consumada na fase executória ou, na fase judicial, a sentença expropriatória constitui título capaz de viabilizar o registro da transferência de propriedade no cartório competente.

Mas a desapropriação não produz apenas efeitos inter partes. Não, como toca bem que estava enredado em potenciais diversas relações jurídicas, espalha seus efeitos, também, para todas as relações que tocam o bem desapropriado. Novamente, em decorrência de ser uma forma originária de aquisição da propriedade, o bem expropriado ingressa no domínio público livre de ônus, gravames ou relações jurídicas que o atinjam, sejam de natureza real ou pessoal.

Em outras palavras, a desapropriação gera a extinção de encargos reais: se um imóvel objeto de desapropriação estava, por exemplo, hipotecado, a hipoteca é automaticamente desconstituída no momento em que o bem é incorporado ao domínio público. O credor hipotecário, nesse caso, sub-roga-se no valor da indenização devida ao ex-proprietário. Se houver um contrato de locação sobre o bem, a desapropriação superveniente desfaz automaticamente o vínculo contratual. O locatário, contudo, poderá ter direito à indenização pela perda do fundo de comércio, a ser pleiteada em ação própria contra o ente expropriante, pois seus direitos pessoais não estão garantidos no bem desapropriado, e, portanto, não há sub-rogação na indenização paga ao proprietário (locador).

O ente desapropriante tampouco responde por tributos incidentes sobre o imóvel desapropriado se o período de ocorrência dos fatos geradores for anterior ao ato de aquisição originária da propriedade.

A depender da discricionariedade administrativa, a desapropriação pode recair sobre parcela da propriedade, gerando um efeito inutilizante do restante da coisa. Quando isso ocorre, surge outro direito para o expropriado: o DIREITO DE EXTENSÃO (MAZZA, 2023. Cap. 14, item 14.19). Nessa situação, o proprietário tem o direito de requerer a inclusão da área restante no total da indenização. Ao ser concedido, o direito de extensão transforma a desapropriação parcial em uma desapropriação da área total do bem.

O pedido de extensão deve ser apresentado durante a fase administrativa ou judicial, sendo vedada sua formulação após a consumação da desapropriação. A Lei Complementar n. 76/93, por exemplo, estabelece que o proprietário de imóvel rural pode requerer a desapropriação de todo o imóvel na contestação, se a área remanescente ficar reduzida a uma superfície inferior à da pequena propriedade rural ou se for substancialmente prejudicada em suas condições de exploração econômica. Ademais, ao proferir a sentença, o juiz deve considerar a valorização ou depreciação da área remanescente pertencente ao réu.

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9. Possibilidades de Controle

Como explicado mais cedo, o procedimento de desapropriação inicia-se com a fase declaratória, de natureza administrativa, na qual o Poder Público manifesta seu interesse na desapropriação de um bem por meio de Decreto do chefe do poder executivo de determinada esfera ou, até mesmo, uma lei de efeitos concretos. Embora o ato declaratório fixe o estado do bem para fins de futura indenização e confira ao Poder Público o direito de penetrar no bem, a sua LEGALIDADE e LEGITIMIDADE podem ser controladas judicialmente, ainda que de forma mais ou menos restrita.

Um dos momentos onde esse controle pode ser realizado é na contestação apresentada na ação judicial de desapropriação – ou seja, na segunda fase do procedimento, a executória, o réu – proprietário expropriado – está <<legalmente limitado a discutir apenas vício do processo judicial (ilegitimidade da parte, ausência de interesse de agir, inépcia da inicial, etc.) ou a impugnação do preço da indenização>>. O Poder Judiciário, por força de lei (art. 9.º do Decreto-lei 3.365/1941), não pode se manifestar sobre a presença ou ausência da utilidade pública ou interesse social que fundamenta a desapropriação. Restrição essa que protege o MÉRITO ADMINISTRATIVO do ato expropriatório.

Apesar disso, é possível reconhecer a invalidade do decreto que reconhece a utilidade pública ou interesse social do bem:

  • (a) por ser GENÉRICO, são inválidas as declarações expropriatórias genéricas, o decreto expropriatório não é lei, não pode revestir-se de generalidade. Ao contrário, seja o decreto, seja a lei de efeitos concretos, ambos devem ser – como o nome dessa segunda esclarece – concretos: devem identificar com precisão o bem a ser desapropriado e a destinação que lhe será dada,

  • (b) por sofrer de CADUCIDADE, isto é, a perda dos efeitos jurídicos do decreto por ter o Poder Público iniciado a fase executória fora dos prazos legais ou sequer tê-la iniciado. Estes prazos são de 5 anos, para a desapropriação por necessidade ou utilidade pública e 2 anos para a desapropriação por interesse social (ALEXANDRE, 2018. Cap. 16, item 16.10.5).

Pois então isso significa que outras questões pertinentes, mas que fujam daquele par (vício processual e preço da indenização) não poderão ser discutidas de qualquer forma? Digamos, por exemplo, que o proprietário possua provas cabais do desvio de finalidade da desapropriação: sabe e poderia demonstrar que a desapropriação de suas terras está sendo empregada por motivações persecutória. Não poderia esse proprietário discutir isso? Não no âmbito da ação de desapropriação, mas poderia levar isso ao conhecimento do Poder Judiciário por meio de outra ação (referida pela lei como "ação direta").

AÇÃO DIRETA é o instrumento autônomo, desvinculado da ação de desapropriação, para discutir a legitimidade e realizar o controle da desapropriação que exceda impugnação ao valor e aos vícios processuais. Algumas das teses que podem ser levantadas na ação direta são justamente o desvio de finalidade e a ausência de motivação. Lembrando que nos atos administrativos onde demanda-se motivação – como é o caso da desapropriação – sua ausência é causa de nulidade do ato.

Outra ação cabível para remediar desapropriação viciada é a AÇÃO DE RETROCESSÃO, mas esta é posterior à desapropriação, e tem aplicação mais restrita: somente quando ocorre desapropriação ilícita é que essa ação será julgada procedente. Mesmo que a destinação dada a coisa divirja daquela inicialmente pretendida, não há procedência automática da ação de retrocessão. Esta se impõe apenas se a destinação diversa desatender ao interesse público – como explicado alhures. A retrocessão é cabível quando houver tredestinação ilícita. Embora a jurisprudência majoritária considere a retrocessão um direito real (possibilitando ao ex-proprietário reaver o bem), se o bem já tiver sido incorporado ao patrimônio público e alienado a terceiros, a situação se resolve em perdas e danos.

Por fim, quando há um vício tal na desapropriação que ela sequer observa o procedimento formal, se assemelhando muito com um esbulho, tem-se o, já citado, caso de desapropriação indireta. Esta se combate mediante AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA, o particular não pode conseguir a retrocessão do bem, daí pleiteia perdas e danos. O abuso do poder expropriatório se manifesta em duas situações principais, ambas gerando responsabilidade estatal por perdas e danos ou reversão do bem: desapropriação indireta e tredestinação ilícita.

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Sobre o autor
Nícolas Alonso Tenório Wengrat

Graduado (2022) pelo Centro Universitário Toledo, pós-graduando pela ESA, ex-advogado, servidor público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WENGRAT, Nícolas Alonso Tenório. Panorama de desapropriação: fundamentos, modalidades, vícios e controle. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8187, 30 nov. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/116098. Acesso em: 5 dez. 2025.

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