Resumo: Artigo elaborado para análise preliminar do PL 5.582/2025, denominado Marco Legal do Combate ao Crime Organizado, aprovado pela Câmara dos Deputados, em sessão plenária de 18 de novembro de 2025, e encaminhado ao Senado Federal para revisão e aprovação, trazendo uma discussão preliminar de seus principais aspectos ideológicos e políticos, criminológicos e tipológicos, além de questões polêmicas selecionadas.
Palavras-chave: violência, crime, pacote legislativo, constitucionalidade, marco legal, organizações criminosas ultraviolentas.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por finalidade fazer um esboço do projeto de lei que recebeu o nome de Marco Legal do Combate ao Crime Organizado, aprovado por maioria na Câmara dos Deputados em 18 de novembro de 2025 e encaminhado ao Senado Federal para revisão, aprovação, rejeição ou emendas.
O artigo é um esboço, uma vez que o projeto ainda está em fase de discussão nas casas legislativas, o que impede uma análise conclusiva. Por outro lado, essa discussão preliminar é necessária como forma de esclarecimento à sociedade e aos interessados nos possíveis impactos da lei, além de constituir contribuição relevante ao debate.
Assim, com base no projeto aprovado na Câmara dos Deputados, de relatoria do Deputado Guilherme Derrite, dividimos este trabalho nos seguintes tópicos:
a) análise do problema relacionado à violência praticada por entidades violentas, como facções e milícias, e da motivação para o envio do projeto ao Congresso Nacional pelo Ministério da Justiça, incluindo os debates e as principais divergências entre os atores envolvidos;
b) observações pontuais sobre os novos tipos penais aprovados, indicando possíveis dicotomias e impactos, especialmente quanto ao preenchimento de vácuos legislativos, bem como eventuais problemas, como duplicidade de imputações pelo mesmo fato e conflitos com normas anteriores;
c) verificação de questões processuais, especialmente referentes à dilação probatória e aos impactos na persecução penal e patrimonial; e
d) pontos polêmicos e objeto de divergências específicas, subdivididos em análise de impactos na execução penal, questões relacionadas à prisão preventiva e à audiência de custódia, modificação da competência do Tribunal do Júri e destinação dos recursos arrecadados de entidades criminosas, entre outros aspectos examinados ao longo do texto.
Nesse contexto, o processo legislativo deve ser conduzido com rigor técnico e abertura ao escrutínio democrático. A urgência em avançar na modernização da segurança pública não pode prescindir de análise criteriosa que envolva especialistas, operadores do direito e a população. A participação social não apenas legitima as iniciativas, como também fortalece a confiança nas instituições, assegurando que as soluções adotadas sejam viáveis, justas e alinhadas ao Estado Democrático de Direito.
1. ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS VIOLENTAS E A RELAÇÃO COM O PROJETO DE LEI 5.582/2025
Conforme pesquisas recentes, verifica-se que a população brasileira tem, entre suas principais preocupações, a segurança pública. Os índices de crimes violentos contra a vida, encarceramento, domínio territorial por parte de facções e milícias, bem como a sensação de insegurança, têm sido levados à discussão pela classe política. A recente operação realizada no Rio de Janeiro, com enfrentamento ao Comando Vermelho e a morte de dezenas de pessoas, ampliou o conflito entre oposição e governo no âmbito da segurança pública. Enquanto a oposição e setores independentes defenderam a operação, grupos ligados ao governo ou setores igualmente independentes passaram a qualificá-la como chacina, criticando a forma de combate e enfrentamento dessas entidades, conhecidas como facções.
Por outro lado, a pressão social levou o Congresso a acelerar projetos de lei na área da segurança pública, especialmente aqueles relacionados ao endurecimento de penas para integrantes de facções criminosas, tendo o Ministério da Justiça encaminhado o PL 5.582/2025 à Câmara dos Deputados, com caráter de urgência. O chamado Marco Legal do Combate ao Crime Organizado no Brasil surge em um contexto de forte pressão social e política por respostas mais duras ao avanço das facções e milícias, sobretudo após sucessivos episódios de violência extrema e ataques coordenados contra instituições e serviços públicos. O substitutivo apresentado na Câmara procura estruturar um novo regime jurídico de enfrentamento do fenômeno, criando tipos penais próprios, ampliando o catálogo de medidas assecuratórias e introduzindo uma arquitetura processual voltada à asfixia financeira das organizações criminosas, em patamar mais severo do que o já previsto para os crimes hediondos.
Trata-se, portanto, de um pacote normativo de feição emergencial, que pretende combinar elevação de penas, endurecimento dos regimes de cumprimento, instrumentos agressivos de confisco de bens e maior integração entre órgãos de investigação e persecução penal, inclusive por meio de forças-tarefa e bancos de dados nacionais sobre facções. Ao mesmo tempo, o texto projeta relevantes tensões constitucionais, como impactos sobre garantias processuais, repartição federativa de competências, regime do Tribunal do Júri e compatibilidade com o sistema já consolidado pela Lei 12.850/2013 e pela Lei Antiterrorismo.
Nesse cenário, é indispensável retomar a compreensão de facção criminosa, a partir de sua análise histórica, social e jurídico-penal. As facções surgem no interior dos presídios como formas de organização de presos em contextos de violência estrutural e precariedade estatal, mas rapidamente evoluem para organizações complexas, com estrutura hierárquica, divisão funcional de tarefas, busca sistemática de lucros ilícitos e uso instrumental da violência e da corrupção para dominar mercados ilícitos e territórios. Tal dinâmica transforma essas facções em atores centrais da insegurança pública no Brasil: elas articulam o tráfico de drogas, o controle de rotas e fronteiras, a prática massiva de homicídios e a infiltração em estruturas econômicas e estatais, produzindo um padrão de violência difusa que o modelo tradicional de repressão penal tem se mostrado incapaz de conter.
Em um primeiro momento, tanto governo quanto oposição compreenderam que há um vazio normativo e que é necessário avançar nessa seara. A disputa política em torno do PL 5.582/2025 refletiu visões antagônicas sobre como enquadrar juridicamente essas facções. De um lado, setores da oposição defenderam sua equiparação a organizações terroristas, sustentando que essa classificação reforçaria a cooperação internacional e sinalizaria maior gravidade político-criminal do fenômeno. De outro, o governo Lula e sua base resistiram à estratégia de “terrorismo por equiparação”, alertando para riscos de ingerência externa, impactos econômicos negativos e desvio conceitual, já que as facções atuam primordialmente movidas por fins lucrativos, e não segundo os critérios aplicáveis ao terrorismo.
Após sucessivas versões do relatório, o Deputado Guilherme Derrite recuou da ideia inicial de inserir as facções na Lei Antiterrorismo e optou por criar uma lei autônoma — o “Marco Legal do Combate ao Crime Organizado” — que preserva parte relevante do texto encaminhado pelo Executivo, incorpora dispositivos de projetos da oposição, endurece de modo significativo penas e instrumentos de confisco, mas abandona a classificação formal das facções como entidades terroristas.
Essa solução compromissória — penas e instrumentos próximos ao patamar do terrorismo, porém sem o rótulo jurídico de terrorismo — é precisamente o objeto da análise preliminar que se desenvolverá ao longo deste artigo, com especial atenção às suas virtudes no plano da política criminal e às suas fragilidades à luz da Constituição e da experiência brasileira de enfrentamento às facções criminosas.
2. ANÁLISE DO TEXTO: TIPOLOGIA SELECIONADA
O objeto deste artigo é apenas resumir e destacar os principais pontos e impactos do PL, sem a pretensão de realizar uma análise integral, a qual exigiria um trabalho de maior fôlego, com comparação artigo por artigo com a legislação em vigor.
Para tanto, procederemos à divisão dos tópicos, seguindo a estrutura do próprio projeto de lei, com os resumos apresentados a seguir.
2.1. Criação do “Marco Legal do Combate ao Crime Organizado” (Art. 1º)
O projeto de lei institui uma nova lei nacional, denominada “Marco Legal do Combate ao Crime Organizado no Brasil”, destinada a definir e punir condutas praticadas por organizações criminosas ultraviolentas, grupos paramilitares e milícias privadas.
Segundo o art. 1º, essas organizações, quando empregam violência ou grave ameaça para afetar a paz pública, a segurança coletiva ou o funcionamento de instituições públicas ou privadas, passam a ser submetidas a regime penal específico e mais severo.
Aqui se inicia o primeiro ponto de divergência: a natureza das entidades reconhecidas pelo PL. Conforme já mencionado, o relator abandonou a ideia de equiparar facções a entidades terroristas. Assim, o crime de terrorismo, previsto em lei própria e limitado por critérios que praticamente inviabilizam sua aplicação na persecução penal brasileira, permanece inalterado. Da mesma forma, manteve-se a Lei de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/2013), que define e tipifica o crime de organização criminosa no país e estabelece regras para investigação, meios de prova e procedimentos criminais.
O PL cria um novo tipo de organização criminosa — a organização criminosa ultraviolenta — delineada nos artigos subsequentes. Trata-se de entidade distinta daquela prevista na Lei nº 12.850/2013, que continua aplicável às organizações que não apresentam o elemento normativo da ultraviolência.
Assim, para fins didáticos, teríamos:
a) organizações terroristas;
b) organizações criminosas comuns; e
c) organizações criminosas ultraviolentas.
Cada uma possui elementos normativos distintos e, em tese, não haveria conflito de normas entre elas.
O PL define a organização criminosa ultraviolenta como o agrupamento de três ou mais pessoas que empregam violência, ameaça ou coação para impor controle territorial, intimidar autoridades ou praticar os crimes previstos no Marco Legal.
Dentro desse contexto, merece atenção o conceito de “domínio social estruturado”, introduzido pelo PL e diretamente relacionado à atuação das organizações criminosas ultraviolentas. O objeto jurídico protegido pela norma é a liberdade do cidadão nas áreas geográficas — territórios e comunidades que, uma vez dominados por esses grupos, passam a sofrer completo cerceamento. O preceito primário também protege a circulação de pessoas nessas áreas, exemplificando, por meio de artifícios como barricadas e bloqueios, o impedimento ao direito de ir e vir, configurando um verdadeiro domínio social estruturado.
2.2. Dos Crimes Praticados por Organização Criminosa Ultraviolenta, Milícia Privada ou Grupo Paramilitar
O Título I do PL estabelece o núcleo central repressivo do Marco Legal, criando um tipo penal autônomo, com pena elevada (20 a 40 anos), aplicável aos membros de organizações criminosas ultraviolentas, milícias ou grupos paramilitares que realizem atos destinados a:
a) intimidar violentamente a população ou agentes públicos;
b) exercer controle territorial;
c) empregar armas, explosivos, agentes tóxicos ou tecnologias avançadas para fins criminosos;
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d) realizar ataques contra instituições públicas, infraestrutura essencial, transporte, energia, hospitais e bancos de dados governamentais.
O título prevê, ainda, majorações de pena, insuscetibilidade de benefícios, conceito legal de facção ultraviolenta, regime prisional obrigatório em presídio federal para lideranças e competência das Varas Criminais Colegiadas para homicídios conexos.
O art. 2º do PL tipifica, com pena-base de 20 a 40 anos, diversas condutas praticadas por organizações criminosas ultraviolentas, milícias ou grupos paramilitares. Trata-se da parte mais relevante do PL, presente substancialmente no texto original encaminhado pelo Ministério da Justiça. Cria tipos penais inexistentes no ordenamento atual e essenciais para o enfrentamento às facções.
Como exemplo, cita-se o crime de intimidação violenta, praticado por quem faz uso de violência ou grave ameaça para coagir a população ou agentes públicos, com o objetivo de impor controle territorial ou social. Aqui, é possível afirmar que o PL cria o “tipo penal do salve”. O salve consiste em ordem coletiva repassada a membros de facções, podendo ser individual (por exemplo, a decretação da morte de alguém) ou coletiva (como a queima de ônibus, a paralisação compulsória de atividades ou o fechamento forçado de comércios). Trata-se, certamente, do tipo penal mais relevante criado pelo Marco Legal, pois permite a repressão tanto de quem expede a ordem quanto de quem a executa, aplicável inclusive antes do início dos atos executórios: a simples expedição e divulgação do salve — por constituir grave ameaça — já consuma o verbo nuclear do tipo.
Os incisos seguintes possuem natureza semelhante e visam preencher vácuos normativos. É comum a prisão de faccionados portando armas de fogo, explosivos ou instrumentos capazes de expor a perigo a paz e a segurança públicas. Pela legislação atual, tais agentes acabam, muitas vezes, beneficiados por institutos despenalizadores, como o ANPP. Pelo PL, entretanto, caso comprovada a finalidade de favorecer organização criminosa ultraviolenta, incidirá o crime previsto no Marco Legal, norma especial em relação ao Estatuto do Desarmamento, aplicando-se o princípio da consunção.
Há tipos penais voltados à repressão de atos praticados por facções e milícias em territórios ocupados, especialmente no Rio de Janeiro, como o uso de barricadas e outras formas de bloqueio destinadas a impedir a circulação de pessoas, bens ou serviços sem motivo legítimo, além da obstrução de forças de segurança.
O PL também prevê tipos destinados a reprimir condutas que impõem, mediante ameaça ou violência, controle sobre atividades econômicas, comerciais, serviços públicos ou comunitários — atos comuns na expansão das facções para atividades lícitas em comunidades dominadas pelo crime.
Em complemento, há tipos que criminalizam ataques com explosivos a instituições financeiras, ataques a instituições prisionais, danos e sabotagens a meios de transporte, sabotagem de aeronaves e ataques a infraestrutura crítica, incluindo ataques cibernéticos.
Algumas críticas foram dirigidas ao PL quanto à possível interpretação ampliada de determinados tipos penais, com potencial de atingir movimentos sociais — como os movimentos sem-teto e sem-terra — ou atos individuais ou coletivos de greve que, momentaneamente, possam prejudicar vias de transporte, serviços públicos ou mesmo infraestrutura crítica. Entendemos, contudo, que tal crítica não se sustenta. O intérprete deve buscar na norma sua finalidade: o PL não visa reprimir movimentos sociais, que não possuem natureza de organizações criminosas ultraviolentas.
O PL prevê causas de aumento de pena (de 1/2 a 2/3) para quem exerce liderança ou comando da organização, para quem financia as condutas, para quem emprega violência contra membros do Judiciário, Ministério Público, forças policiais ou pessoas vulneráveis, bem como nos casos de conexão transnacional, entre outras hipóteses.
O texto cria, ainda, situação peculiar que merece análise específica: a possibilidade de imputação de atos praticados por indivíduos que não integram organização criminosa ultraviolenta, com pena menor (12 a 30 anos). Tal previsão endereça um problema prático atual: a dificuldade de comprovar que o agente integra organização criminosa, nos moldes da Lei nº 12.850/2013. Mesmo agentes que se apresentam como faccionados ou milicianos em áreas dominadas negam tal vinculação em audiência, e, diante das limitações legais (ônus da prova), é extremamente difícil comprovar a participação. É comum, assim, que o agente identificado como faccionado responda apenas por delitos de menor potencial repressivo — como porte de arma de fogo — que permitem sua permanência em liberdade.
A nova legislação fecha essa brecha: caso fique comprovado, durante a persecução penal, que o agente é membro de organização criminosa ultraviolenta e praticou algum dos atos previstos no art. 2º, poderá ser condenado a pena de 20 a 40 anos, com as respectivas causas de aumento. Caso se comprove apenas a prática dos atos, mas não a vinculação, aplicam-se as penas menores (12 a 30 anos).
A crítica que se faz reside na necessidade de comprovação de alguma finalidade dos atos praticados. O ideal seria inserir elemento normativo complementar, como “praticar em benefício da organização ultraviolenta” os atos previstos no art. 2º, ainda que o agente não integre formalmente a entidade. Tal elemento evitaria a punição indevida de quem pratica ato isolado sem qualquer impacto no domínio territorial da organização — por exemplo, alguém preso pichando um muro com o nome da facção, sem qualquer vínculo com ela.
2.3. Aspectos complementares
2.3.1. Atos preparatórios puníveis
Atos preparatórios são puníveis com a pena do crime consumado, reduzida de 1/3 à metade. Trata-se de norma essencial para o enfrentamento de facções e milícias, pois preenche um vazio normativo. Na legislação atual, por exemplo, a apreensão de “salve” — ordem para matar autoridades ou atacar instituições — antes do início da execução dos atos é impunível, apesar de seus evidentes impactos à paz social e à tranquilidade pública.
É evidente, contudo, que a aplicação da norma deve ocorrer com cautela, mediante critérios objetivos destinados a comprovar que os atos preparatórios (como a posse de armas ou explosivos) estavam voltados à prática de algum dos tipos penais previstos nos incisos do art. 2º do Marco Legal.
2.3.2. Vedação ao auxílio-reclusão.
O PL proíbe a concessão, aos dependentes do preso condenado por esses crimes, do auxílio-reclusão. Tal proibição certamente será objeto de ADI, caso mantida pelo Senado Federal. O benefício possui natureza previdenciária, com regras próprias, destinado aos dependentes do segurado que se encontra preso. Na prática, é raro que integrantes de organizações criminosas violentas estejam habilitados como segurados do regime geral, mas o tema tem sido discutido muito mais sob um viés ideológico do que jurídico, em grande medida por falta de conhecimento técnico.
2.3.3. Regime obrigatório em presídio federal
A redação do dispositivo, ao criar uma obrigatoriedade, estabelece uma presunção absoluta de que os presídios estaduais não têm condições de manter o encarceramento de lideranças das organizações ultraviolentas, o que não é recomendável, seja por técnica legislativa, seja por conveniência política. O ideal é que o artigo seja reformado, substituindo-se o verbo nuclear de modo a criar a possibilidade — e não a obrigatoriedade — de cumprimento de pena por parte das lideranças em presídios federais.
2.3.4. Competência das Varas Colegiadas para julgamento de homicídios praticados em conexão com ações das organizações ultraviolentas.
O art. 2º do PL nº 5.582/2025, em seu § 8º, contém ponto de grande controvérsia, que expõe ao menos duas visões diametralmente opostas, ambas com coerência interna, quanto à competência para o julgamento de homicídios praticados por facções criminosas no contexto de organização criminosa ultraviolenta. O texto, ainda em fase de revisão no Senado Federal, permite que as denominadas varas criminais colegiadas julguem os crimes de homicídio praticados por facções e milícias, exigindo-se apenas a conexão entre o homicídio e a organização criminosa ultraviolenta. Tal modificação da competência do foro natural para delitos dolosos contra a vida — isto é, do Tribunal do Júri para juízo togado, ainda que colegiado —, a nosso ver, fere de imediato a previsão constitucional do art. 5º, XXXVIII, que reconhece a instituição do júri, assegurando-lhe a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Da leitura direta do dispositivo constitucional, evidencia-se a competência do júri para esses delitos, sendo o homicídio o caso típico. Pontue-se: seja qual for o contexto do crime doloso contra a vida, a norma constitucional não estabelece exceções, devendo, por se tratar de garantia individual, ser interpretada restritivamente.
Convém esclarecer, a fim de afastar dúvidas, que o homicídio no contexto das facções expressa o dolo de matar, não constituindo meio para a prática de delito-fim, como ocorre no latrocínio, crime patrimonial qualificado pela morte. No âmbito das facções, o homicídio pode decorrer de múltiplas motivações: vingança contra faccionado rival “decretado”; represália contra cidadão comum; execução de usuário devedor; cumprimento de “salve” que determina a morte de autoridade; ou execução de integrante condenado pelo chamado “tribunal do crime”, em razão de falta grave prevista no estatuto da facção. Em todos esses casos, o homicídio é o crime-fim; o animus necandi é manifesto.
Portanto, aplicar aos homicídios cometidos por facções a mesma lógica elaborada para o roubo seguido de morte — o latrocínio — é, a nosso ver, desnaturar o dolo nuclear do tipo. Nestes casos, a morte não é meio para atingir objetivo final diverso, mas o próprio fim, legitimado pelas diversas motivações mencionadas.
Nesse sentido, o art. 60, § 4º, IV, da Constituição assegura que não será objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias individuais. O Tribunal do Júri, enquanto garantia individual do acusado de crime doloso contra a vida, insere-se nesse rol de cláusulas pétreas.
Não se pode, porém, ignorar as razões que levaram os legisladores a propor o deslocamento da competência para juízo togado colegiado. Muitos sustentam que casos dessa natureza, em razão da extrema periculosidade, influenciariam negativamente o ânimo dos jurados, já que esses grupos criminosos demonstram disposição para a violência, sobretudo contra aqueles que desafiam suas regras. Assim, a inovação buscaria resguardar a integridade e a imparcialidade dos jurados, evitando absolvições motivadas pelo medo. Não obstante a preocupação seja legítima, a prática revela cenário distinto.
É importante destacar que não existe técnica infalível: a falibilidade é inerente à condição humana. Seja no tribunal popular, seja perante juízes togados, nenhum julgamento é imune a erros. Contudo, afirmar que juízes togados teriam mais independência, capacidade ou coragem para julgar tais casos é desconhecer, com o devido respeito, a realidade do Tribunal do Júri. A justiça não é atributo exclusivo de magistrados, promotores ou advogados. Aliás, o erro judiciário mais emblemático da história do país — o caso dos “Irmãos Naves” — foi cometido por uma corte de juízes togados, pois o júri popular havia proferido o julgamento correto, posteriormente reformado pelo tribunal.
A experiência cotidiana no júri revela o oposto do senso comum segundo o qual jurados absolveriam por medo ou incapacidade de compreender os debates em plenário. Em regra, o jurado assimila com grande clareza o sentimento de justiça do caso e profere julgamento imparcial e sóbrio, especialmente por viver, como diria Nelson Rodrigues, “a vida como ela é”, imerso na realidade da criminalidade violenta e do funcionamento concreto das facções nas periferias brasileiras. O jurado, em regra, é o homem comum, que não vive isolado da realidade, e que se beneficia do sigilo das votações, do julgamento por maioria e da convicção íntima como fundamento de sua decisão.
Essa última característica é particularmente relevante nesse tipo de julgamento de faccionados. Na maioria dos casos, a prova é indireta ou indiciária: raramente há testemunhas oculares ou vítimas dispostas a depor — muitas vezes, paradoxalmente, a própria vítima, em plenário, atua em defesa do agressor, por motivos que não são objeto deste trabalho. Assim, o olhar experiente do jurado, sua vivência e percepção sensorial são capazes de apreender a dinâmica dos fatos em sua totalidade e realizar a justiça que, em determinadas hipóteses, o juiz togado, vinculado ao livre convencimento motivado, não alcançaria. O deslocamento da competência do Tribunal do Júri para juízo comum, ainda que colegiado, nos chamados casos de “traficídio” (neologismo), não produziria, a nosso ver, avanços significativos na responsabilização penal; ao contrário, poderia representar retrocesso. Além disso, a proposta é materialmente inconstitucional, por violar cláusula pétrea.
Por fim, se a preocupação é com eventual impunidade em julgamentos pelo júri envolvendo facções criminosas, importa recordar que as decisões do conselho de sentença são soberanas e possuem executividade imediata. Como decidiu o STF no RE 1.235.340 (Tema 1.068), a decisão do Tribunal do Júri deve ser imediatamente executada, independentemente de recurso ou do quantum da pena aplicada — fator que reforça, ainda mais, a necessidade de manutenção da competência do júri nesses casos.
2.3.5. Prisão preventiva obrigatória
Prevê o PL que a prática dos crimes descritos constitui causa suficiente para a decretação da prisão preventiva. A redação, contudo, não é clara quanto à eventual obrigatoriedade da prisão preventiva, sendo recomendável sua modificação, a fim de evitar qualquer limitação ao poder decisório do juiz. O magistrado, de forma fundamentada, deve poder decretar a prisão preventiva ou aplicar medidas cautelares diversas, cabendo ao cometimento de um dos crimes previstos no PL funcionar como fundamento adicional — e não obrigatório — para a medida extrema.
2.3.6. Gravação das audiências nos parlatórios
Interessante pontuar que o PL procurou enfrentar alguns dos maiores problemas vivenciados hodiernamente no contexto das facções criminosas. A título de exemplo, o art. 41-A, que altera a Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal), estabelece medida voltada a combater a atuação da vulgarmente denominada “sintonia dos gravatas”, isto é, advogados que funcionam como “pombos correios” de organizações criminosas, transmitindo informações e, inclusive, comunicando “salves” de chefes de facções para as ruas.
A autorização para gravação das conversas no parlatório será concedida pelo juízo da execução, mediante provocação do Ministério Público, da polícia ou da administração penitenciária, e o conteúdo poderá ser analisado quando houver indícios de conluio criminoso entre advogado e preso.
Importante rejeitar, desde logo, a alegação de que o dispositivo viola o direito do preso à entrevista com seu advogado e ao sigilo do conteúdo da comunicação, desde que o exercício desse direito não seja transmutado em meio para a prática de crimes — realidade, infelizmente, observada com frequência nas penitenciárias brasileiras.