Resumo: A Lei nº 15.272, de 26 de novembro de 2025, oriunda do PL nº 226/2024, inaugura um novo paradigma no processo penal brasileiro, reformando o Código de Processo Penal (CPP) ao redefinir os critérios de conversão da prisão em flagrante em preventiva, regulamentar a coleta de material genético do custodiado e estabelecer parâmetros para aferição da periculosidade do agente. Tais inovações buscam alinhar a persecução penal aos valores da ordem pública, da dignidade humana e da segurança jurídica, em diálogo com as Regras de Mandela, Regras de Tóquio e Regras de Bangkok, que preconizam o equilíbrio entre punição e humanidade. O presente artigo promove uma análise crítica contextual da nova lei, investigando seus impactos práticos, éticos e constitucionais, e refletindo sobre o eterno dilema entre o direito de punir e o dever de respeitar os direitos humanos.
Palavras-chave: Prisão preventiva; Dignidade da pessoa humana; Periculosidade; Perfil genético; Processo penal; Garantismo.
INTRODUÇÃO
A novíssima Lei nº 15.272, de 26 de novembro de 2025, nasce em meio a um tempo de profundas inquietações sociais e institucionais. Fruto do PL nº 226/2024, o diploma visa alterar o Código de Processo Penal (CPP) para disciplinar com mais precisão as hipóteses de conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, além de regular a coleta e o armazenamento de material biológico destinado à formação de perfis genéticos e redefinir os critérios de aferição da periculosidade dos agentes submetidos à custódia.
Mais do que uma simples mudança legislativa, a nova lei traduz a busca por segurança jurídica em meio ao caos da criminalidade contemporânea e às críticas internacionais sobre o uso abusivo das prisões cautelares no Brasil. Em um país onde, segundo o CNJ, mais de 40% da população carcerária é formada por presos provisórios, torna-se imprescindível repensar o papel da prisão preventiva à luz dos princípios da proporcionalidade, da excepcionalidade e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal).
O §5º do artigo 310 do CPP passa, doravante, a elencar circunstâncias objetivas para conversão da prisão em flagrante em preventiva — desde a reiteração delitiva até o perigo concreto à instrução criminal —, enquanto o artigo 310-A introduz a possibilidade da coleta de material biológico nos crimes cometidos com violência, grave ameaça ou em contexto de organização criminosa.
Seguem os dois textos referidos:
§ 5º São circunstâncias que, sem prejuízo de outras, recomendam a conversão da prisão em flagrante em preventiva:
I – haver provas que indiquem a prática reiterada de infrações penais pelo agente;
II – ter a infração penal sido praticada com violência ou grave ameaça contra a pessoa;
III – ter o agente já sido liberado em prévia audiência de custódia por outra infração penal, salvo se por ela tiver sido absolvido posteriormente;
IV – ter o agente praticado a infração penal na pendência de inquérito ou ação penal;
V – ter havido fuga ou haver perigo de fuga; ou
VI – haver perigo de perturbação da tramitação e do decurso do inquérito ou da instrução criminal, bem como perigo para a coleta, a conservação ou a incolumidade da prova.
Art. 310-A. No caso de prisão em flagrante por crime praticado com violência ou grave ameaça contra a pessoa, por crime contra a dignidade sexual ou por crime praticado por agente em relação ao qual existam elementos probatórios que indiquem integrar organização criminosa que utilize ou tenha à sua disposição armas de fogo ou em relação ao qual seja imputada a prática de crime previsto no art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), o Ministério Público ou a autoridade policial deverá requerer ao juiz a coleta de material biológico para obtenção e armazenamento do perfil genético do custodiado, na forma da Lei nº 12.037, de 1º de outubro de 2009.
§ 1º A coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético deverá ser feita, preferencialmente, na própria audiência de custódia ou no prazo de 10 (dez) dias, contado de sua realização.
§ 2º A coleta de material biológico será realizada por agente público treinado e respeitará os procedimentos de cadeia de custódia definidos pela legislação em vigor e complementados pelo órgão de perícia oficial de natureza criminal.
O legislador, ao buscar racionalizar a decretação da prisão cautelar, pretendeu fortalecer o devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, CF) e harmonizar o poder punitivo estatal com os preceitos internacionais de direitos humanos, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela) e as Regras de Tóquio sobre medidas não privativas de liberdade.
A introdução do conceito de periculosidade concretamente aferida, em detrimento da gravidade abstrata, demonstra avanço civilizatório. Todavia, impõe ao intérprete o desafio de não transformar o conceito em instrumento de seletividade penal, reproduzindo estigmas sociais e desigualdades históricas. É nesse ponto que a reflexão jurídica deve transcender a letra fria da lei e penetrar o campo ético da Justiça.
ANÁLISE CRÍTICA CONTEXTUAL
A reforma processual penal promovida pela Lei nº 15.272, de 26 de novembro de 2025 precisa ser compreendida à luz da função contramajoritária do Direito Penal e das garantias fundamentais. A prisão preventiva, por essência, deve ser excepcional, proporcional e necessária, jamais utilizada como antecipação de pena ou mecanismo de controle social de populações vulneráveis.
Sob a ótica constitucional, o artigo 5º, LXI, LXV e LXVI da Constituição Federal estabelece que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, garantindo o direito de relaxamento da prisão ilegal e a substituição por medidas cautelares diversas. Assim, toda prisão preventiva deve ser um ato de última ratio, condicionado à análise rigorosa da periculosidade concreta do agente.
A nova lei acerta ao definir parâmetros objetivos de periculosidade (art. 312, §3º, CPP), como o modus operandi, a participação em organização criminosa e o fundado receio de reiteração delitiva, afastando a famigerada “gravidade abstrata” que, por décadas, serviu como justificativa vazia para encarceramentos desnecessários. Essa inovação encontra eco nas Regras de Tóquio (ONU, 1990), que orientam os Estados a priorizarem medidas não privativas de liberdade, sempre que possível, em respeito à dignidade humana e à reintegração social do indivíduo.
§ 3º Devem ser considerados na aferição da periculosidade do agente, geradora de riscos à ordem pública:
I – o modus operandi, inclusive quanto ao uso reiterado de violência ou grave ameaça à pessoa ou quanto à premeditação do agente para a prática delituosa;
II – a participação em organização criminosa;
III – a natureza, a quantidade e a variedade de drogas, armas ou munições apreendidas; ou
IV – o fundado receio de reiteração delitiva, inclusive à vista da existência de outros inquéritos e ações penais em curso.
§4 º É incabível a decretação da prisão preventiva com base em alegações de gravidade abstrata do delito, devendo ser concretamente demonstrados a periculosidade do agente e seu risco à ordem pública, à ordem econômica, à regularidade da instrução criminal e à aplicação da lei penal, conforme o caso.
Contudo, há um risco latente: o de que a busca por eficiência criminal transforme a análise da “periculosidade” em critério subjetivo e moralizante, em oposição ao princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF). Se não houver controle jurisdicional efetivo e formação adequada de magistrados e delegados, o avanço pode se converter em novo instrumento de discriminação estrutural.
Quanto à coleta de material genético, o artigo 310-A amplia o espectro de atuação do Estado investigativo, vinculando-o à Lei nº 12.037/2009 e à Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Essa previsão, embora útil à elucidação de crimes, demanda estrita observância das garantias de privacidade e do princípio da legalidade (art. 5º, II, CF). O manuseio e o armazenamento de dados genéticos devem seguir protocolos de cadeia de custódia (art. 158-A a 158-F, CPP), de modo a evitar abusos e contaminações probatórias.
A reforma também dialoga com as Regras de Mandela, que destacam a necessidade de o cárcere ser ambiente de respeito, educação e dignidade, e com as Regras de Bangkok, que ampliam essa visão às necessidades específicas das mulheres custodiadas, reforçando a ideia de que a prisão deve ser um espaço de última alternativa, jamais a regra do sistema penal.
O cerne filosófico da nova lei reside, portanto, no equilíbrio entre segurança pública e garantismo penal. É preciso compreender que a Justiça criminal não se constrói apenas com prisões, mas com políticas públicas de inclusão, reeducação e igualdade. O processo penal é, antes de tudo, instrumento de civilização — e não de vingança.
REFLEXÕES FINAIS
As transformações trazidas pela Lei nº 15.272, de 26 de novembro de 2025 representam um passo relevante na busca por segurança jurídica e humanização da persecução penal. Ao fixar critérios claros para a prisão preventiva, o legislador fortalece o controle judicial e limita o arbítrio. Ao mesmo tempo, a coleta de material genético, quando realizada dentro dos parâmetros legais e éticos, pode auxiliar na eficiência investigativa, promovendo justiça mais célere e precisa.
Entretanto, o maior desafio está em converter o texto legal em prática garantista. A lei pode ser instrumento de justiça ou de opressão — depende de quem a aplica. Que o novo diploma não seja apenas mais um marco normativo, mas um ato de evolução moral do Estado, onde a liberdade não seja exceção e a dignidade não seja retórica.
A verdadeira justiça é aquela que pune com sabedoria, investiga com ética e protege com humanidade. Como ensinavam os filósofos do direito natural, a lei só é justa quando nasce do equilíbrio entre a razão e a compaixão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. O Novo Constitucionalismo Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
Código de Processo Penal Brasileiro – Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, com alterações da Lei nº 15.272, de 26 de novembro de 2025.
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Relatório sobre a População Carcerária Provisória, 2024.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Lei nº 12.037, de 1º de outubro de 2009 – Dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado.
Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 – “Pacote Anticrime”.
Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela) – ONU, 2015.
Regras Mínimas das Nações Unidas para Medidas Não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio) – ONU, 1990.
Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras (Regras de Bangkok) – ONU, 2010.