IV. Do espírito do atual CPP enquanto sistema de normas ainda em vigor e a função do Juiz Criminal, dentro do sistema acusatório adotado pelo direito brasileiro
Uma vez mais, importante a transcrição de excertos da Exposição de Motivos do atual CPP, em especial o trecho relativo às provas, onde o legislador determina, expressamente, que o Juiz "deixará de ser um expectador inerte da produção de provas" e que sua intervenção na atividade processual é permitida tanto para "dirigir a marcha da ação penal e julgar a final" quanto para, inclusive, "ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade". Senão vejamos:
"Item VII – AS PROVAS - O projeto abandonou radicalmente o sistema chamado da "certeza legal". Atribui ao juiz a faculdade de iniciativa de provas complementares ou supletivas, quer no curso da instrução criminal, quer a final, antes de proferir a sentença. Não serão atendíveis as restrições à prova estabelecidas pela lei civil, salvo quanto ao estado das pessoas; nem é prefixada uma "hierarquia"de provas: na livre apreciação destas, o juiz formará, honesta e lealmente, a sua convicção. A própria confissão do acusado não constitui, fatalmente, "prova plena" de sua culpabilidade. Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, "ex vi legis", valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. Se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material. O juiz criminal é, assim, restituído à sua própria consciência. Nunca é demais, porém, advertir que "livre convencimento" não que dizer puro capricho de opinião ou mero arbítrio na apreciação das provas. O juiz está livre de "preconceitos legais" na aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se ao seu conteúdo. Não estará ele dispensado de "motivar" a sua sentença. E precisamente nisto reside a suficiente garantia do direito das partes e do interesse social.
Por outro lado, o juiz deixará de ser um expectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não estará sujeito a "preclusões". Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o "in dubio pro reo" ou o "non liquet".
Como corolário do sistema de livre convicção do juiz, é rejeitado o velho brocardo "testis unus testis nullus". Não se compreende a prevenção legal contra a "voix d"um", quando, tal seja o seu mérito, pode bastar à elucidação da verdade e à certeza moral do juiz. Na atualidade, aliás, a exigência da lei, como se sabe, é contornada por uma simulação prejudicial ao próprio decoro ou gravidade da justiça, qual a consistente em suprir-se o "mínimo legal" de testemunhas com pessoas cuja insciência acerca do objeto do processo é previamente conhecida, e que somente vão a juízo para declarar que nada sabem.
Outra inovação, em matéria de prova, diz respeito ao interrogatório do acusado. Embora mantido o princípio de que "Nemo tenetur se detegere" (não estando o acusado na estrita obrigação de responder o que se lhe pergunta"), já não será esse termo do processo, como atualmente, uma série de perguntas predeterminadas, sacramentais, a que o acusado dá as respostas de antemão estudadas, para não comprometer-se, mas uma franca oportunidade de obtenção. É facultado ao juiz formular ao acusado quaisquer perguntas que julgue necessárias à pesquisa da verdade, e se é certo que o silêncio do réu não importará confissão, poderá, entretanto, servir, em face de outros indícios, à formação do convencimento do juiz."
Note-se que o código, em nenhum momento, afirma que a atividade do Juiz deve se confundir com a atividade do Órgão acusador ou da Defesa e, muito menos, que o Juiz deve se substituir à importante função acusatória do Ministério Público, reservando, sim, ao Julgador, o indelegável mister de, após a descoberta da verdade real – a qual, por óbvio, jamais poderia ser atribuída à Acusação nem à Defesa e muito menos poderia ser obtida com sua inércia no curso do processo – aplicar o direito ao caso concreto visando à pacificação social com Justiça.
Assim, aliás – e ao revés do que algumas vozes procuram sustentar – é que se estrutura o sistema acusatório brasileiro, lamentavelmente ainda pouco compreendido em sua verdadeira essência.
Tal sistema, verdadeiramente importante e fundamental para a consolidação do Estado Democrático de Direito, precisa ser corretamente entendido como aquele que atribui a Órgãos Estatais distintos, as funções de acusar, defender e julgar.
Assim é que a Carta Magna Republicana de 1988, em seu art. 129, inciso I, afirmou ser função institucional do Ministério Público a promoção, privativa, da ação penal pública, na forma da lei.
Com isso reservou ao Ministério Público a importante missão de – após estar convencido da existência de um crime e de indícios suficientes de sua autoria – submeter ao Poder Judiciário uma denúncia e requerer que, ao final do processo, o autor da conduta sofra as sanções previstas em lei.
Ao formular sua denúncia, deve o Órgão ministerial – por ser o encarregado privativo da promoção da ação penal pública – requerer ao Juiz a produção de todas as provas que entender necessárias ao convencimento do Órgão julgador o qual, caso estejam em harmonia com o sistema jurídico-penal, irá deferir sua produção.
À Defesa compete o mesmo ônus. Ou seja, o de apresentar ao Julgador todas as provas que deseja sejam conhecidas no curso da ação penal.
Ao Magistrado, ao revés, compete determinar a produção das eventuais provas requeridas, bem como delas conhecer para, após perquirir a verdade materialmente possível, proferir sua decisão de acordo com o sistema de livre apreciação de provas.
Ocorre que, uma vez apresentadas ao Juiz as provas que as partes desejam sejam conhecidas, impõe-se ao Magistrado que saia de sua inércia processual para que possa – inclusive como destinatário final da prova – perscrutar a verdade por intermédio do exercício de seus poderes instrutórios.
Quer dizer: o Ministério Público e a Defesa possuem a relevante e indelegável missão de apresentar ao Juiz as provas que desejam ver colhidas e valoradas, sendo que, uma vez apresentadas ao Julgador, a este compete buscar a verdade real por intermédio delas.
Desse modo é que, uma vez arroladas testemunhas pelas partes, compete ao Juiz buscar a verdade materialmente tangível – até para que possa condenar ou absolver o réu com a segurança necessária para tanto – colhendo os depoimentos do modo mais efetivo possível.
É equivocada a idéia de que ao iniciar a inquirição estaria o Juiz ferindo o sistema acusatório ou mesmo perdendo sua imparcialidade.
Muito pelo contrário.
Ao iniciar a formulação das perguntas endereçadas ao réu, ao ofendido e às testemunhas – como determina a lei (artigos 185, 188, 201, 212 e 473, dentre outros) – está o Juiz no exercício de sua absoluta imparcialidade, eis que procura a isenta narrativa dos fatos, diferentemente do MP, a quem a Constituição atribui o dever de acusar (podendo, obviamente, requerer a absolvição ao final, se o caso) e da Defesa, que procurará, sempre, a melhor situação jurídica para o denunciado.
A propósito, vejamos como o Supremo Tribunal Federal tem entendido os poderes instrutórios do Juiz no sistema processual penal brasileiro.
V. Os poderes instrutórios do Juiz dentro do sistema acusatório brasileiro e na visão do Excelso Supremo Tribunal Federal (STF)
Em nosso sentir, o sistema processual penal adotado no Brasil não pode ser designado como acusatório puro, pois não só na fase inquisitorial, como também na fase da ação penal propriamente dita – processo stricto sensu – o sistema acusatório temperado (ou inquisitivo-garantista) encontra-se presente em nossa realidade.
Ademais, e a toda evidência, o processo anglo-saxão, pelo só fato de ter sido adotado em alguns países da Europa, não significa que seja o mais adequado para a nossa realidade.
Inclusive, não é rara a sensação de que alguns estudiosos brasileiros limitam-se a repetir – sem qualquer reflexão – determinados conceitos que vêm sendo propagados como verdade absoluta, mesmo sem os indispensáveis questionamentos críticos acerca da viabilidade de sua aplicação na realidade sócio-política-jurídica-cultural brasileira.
A adoção de um sistema deve observar as idiossincrasias de cada povo. Nesse sentido, aderimos à doutrina do professor Guilherme de Souza Nucci, que, de forma bastante acertada, chamou nosso sistema de "inquisitivo garantista ou misto". Ele nos ensina, com bastante propriedade, o motivo pelo qual adotamos um "termo-médio", ou seja, um sistema considerado misto:
"O sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente, é o misto. Registremos desde logo que há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimento, recursos, provas etc.) é regido por Código específico, desde 1941, elaborado em nítida ótica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princípios regentes do sistema inquisitivo, como veremos a seguir).
Logo, não há como negar que o encontro dos dois lados da moeda (Constitucional e CPP) resultou no hibridismo que temos hoje. Sem dúvida que se trata de um sistema complicado, pois é resultado de um Código de forte alma inquisitiva, iluminado por uma Constituição Federal imantada pelos princípios democráticos do sistema acusatório. Por tal razão, seria fugir à realidade pretender aplicar somente a Constituição à prática forense. Juízes, promotores, delegados e advogados militam contando com um Código de Processo Penal, que estabelece as regras de funcionamento do sistema e não pode ser ignorado como se inexistisse. Essa junção do ideal (CF) com o real (CPP) evidencia o sistema misto.
É certo que muitos processualistas sustentam que o nosso sistema é acusatório. Mas baseiam-se exclusivamente nos princípios constitucionais vigentes (contraditório, separação entre acusação e órgão julgador, publicidade, ampla defesa, presunção de inocência etc.). Entretanto, olvida-se, nessa análise, o disposto no Código de Processo Penal, que prevê a colheita inicial da prova através do inquérito policial, presidido por um bacharel em Direito, que é o delegado, com todos os requisitos do sistema inquisitivo (sigilo, ausência de contraditório e ampla defesa, procedimento eminentemente escrito, impossibilidade de recusa do condutor da investigação etc.). Somente após, ingressa-se com a ação penal e, em juízo, passam a vigorar as garantias constitucionais mencionadas, aproximando-se o procedimento do sistema acusatório.
(...) Nosso sistema é "inquisitivo garantista", enfim, misto.
Defender o contrário, classificando como acusatório é omitir que o juiz brasileiro produz prova de ofício, decreta a prisão do acusado de ofício, sem que nenhuma das partes tenha solicitado, bem como se vale, sem a menor preocupação, de elementos produzidos longe do contraditório, para formar sua convicção. Fosse o inquérito, como teoricamente se afirma, destinado unicamente para o órgão acusatório, visando à formação da sua "opinio delicti" e não haveria de ser parte integrante dos autos do processo, permitindo-se ao magistrado que possa valer-se dele para a condenação de alguém ..." [15]
De todo modo, e para não pairar quaisquer dúvidas a respeito da verdadeira natureza jurídica do sistema processual penal por nós adotado, importante transcrever parte dos votos proferidos pelos eminentes Ministros Carlos Mário da Silva Velloso e Sepúlveda Pertence quando do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.570-2, a qual questionava a constitucionalidade do art. 3º da Lei 9.034/1995, que instituía poderes instrutórios ao Juiz, permitindo que ele, pessoalmente, realizasse diligências.
O Excelso Pretório, julgando constitucional a possibilidade de o Juiz realizar, pessoalmente, inúmeras diligências previstas na Lei de combate e prevenção de ações praticadas por organizações criminosas, limitou-se a declarar a inconstitucionalidade de parte do artigo, exclusivamente no que se referia aos dados fiscais e eleitorais, mantendo, na íntegra, todas as demais disposições.
No desenrolar do julgamento, Sua Excelência, o Ministro Sepúlveda Pertence – registre-se, ex-membro do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios – destaca que o Juiz, no processo penal, não é passivo ou neutro, possuindo, efetivamente, poderes instrutórios.
Do mesmo modo, Sua Excelência, o Ministro Carlos Velloso, afirma que a figura do Juiz estático, espectador, está absolutamente superada, devendo o magistrado participar ativamente da busca da verdade real. Vejamos parte dos votos proferidos:
"O SENHOR MINISTRO CARLOS VELLOSO: - Senhor Presidente, peço licença para divergir de Vossa Excelência.
A figura do juiz estático, espectador, do tempo em que o processo nada tinha de público, está superada. O processo hoje tem natureza pública e nele o juiz tem participação ativa na busca da verdade.
Li o artigo de notável cronista de um jornal do Rio de Janeiro, em que ele dizia justamente o seguinte: sempre que um juiz fiscaliza de perto um processo, o resultado sai mais favorável à verdade.
Quero dizer que o processo, hoje, não tem sentido privatístico, em que o juiz era mero expectador. O juiz conduz o processo, conduz a instrução e deve buscar a verdade material, em que vai se fundar o pronunciamento do Estado-juiz.
O art. 2º da Lei nº 9.034/95, inciso III, diz no seu caput:
"Art. 2º. Em qualquer fase de persecução criminal" – neste ponto houve uma alteração – "são permitidos sem prejuízo, dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: III- o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais."
E o que faz o dispositivo, aqui acoimado de inconstitucional? Simplesmente diz que, na hipótese do inciso III do art. 2º, se ocorrer – veja a excepcionalidade – "possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça". Como isso pode tirar a imparcialidade do julgador?
É uma lei que, ao contrário, assegura garantias ao jurisdicionado, a fim de impedir que "o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais", seja divulgado. Coisa que assistimos quase todos os dias na imprensa.
Outro dia, um notável advogado me dizia que certas investigações ocorridas em Estados da Federação não são conhecidas pela defesa em razão do sigilo, mas pela imprensa sim.
Então penso que essa norma, ao contrário de tratar mal a Constituição, presta obséquio – com licença do eminente Ministro Sepúlveda Pertence – à justiça, às garantias constitucionais das pessoas.
Vossa Excelência citou parte de um voto meu em que digo ser da polícia a competência para instaurar inquéritos e, assim, realizar investigações. Continuo fiel a esse ponto de vista. Todavia, não encaro de forma ortodoxa essa posição. Nesta Casa, recentemente, citei exemplo, formulado comumente pelo eminente Ministro Sepúlveda Pertence: se amanhã o Ministério Público receber uma carta com documentos, contendo uma acusação que possibilite a instauração de ação penal, ele o faz, dispensando o inquérito. Mais: se é procurado em seu gabinete por um cidadão com uma denúncia, ele não pode tomar o seu depoimento? É claro que pode. Seria desarrazoado o entendimento sustentando o contrário.
O que o Ministério público não pode fazer é baixar portaria e instaurar inquérito policial, que isto é da competência da polícia, está na Constituição.
Quero dizer mais: o fato de ser da polícia a atividade principal da investigação não significa que não poderia o juiz, em caráter excepcional, realizar uma diligência. Como juiz de primeiro grau, fiz muitas inspeções, que foram relevantes na busca da verdade material.
Desse modo, com essas breves considerações, peço licença a Vossa Excelência, cujos votos tenho costume de acompanhar, para, divergindo, julgar improcedente a ação".
(...)
"O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (...)
Digo apenas que, ao me referir à evolução histórica, não no sentido de aumentar os poderes instrutórios do juiz, mas, ao contrário, de diminuí-los, a meu ver, de modo absoluto na fase investigatória, na fase pré-processual, não pretendi elidir, no processo stricto sensu, eventuais iniciativas do juiz na instrução. Não estamos perante um juiz absolutamente neutro, pelo menos, na nossa versão de processo acusatório, que não é a do puro processo acusatório anglo-saxão, em que se tem, idealmente, o juiz totalmente passivo. De forma que não se afasta a constitucionalidade de iniciativas do juiz de aprofundamento ou complementação da prova no curso do processo, como foram os exemplos aqui citados da inspeção pessoal de pessoas ou coisas.
Com essas observações, não tenho a menor dúvida em acompanhar o voto de Vossa Excelência, Sr. Presidente, e saudar a sua vinda para nossa banda".
Desse modo, diante das lúcidas ponderações de dois dos mais representativos ministros que o Excelso Pretório já teve, não há como negar que o Juiz possui poderes instrutórios e que deve, sim, usar dessas prerrogativas para buscar a verdade real e formar o seu convencimento.
Quando a busca pelo ideal de Justiça é o objetivo visado, o magistrado não pode se limitar ao positivismo exacerbado em detrimento da verdade material.
A vocação dos magistrados e a consciência da indelegável função perante a sociedade devem sempre nortear a atividade jurisdicional. Valendo-nos das palavras de Lord Radcliffe, citado por Inocêncio Coelho: "Jamais houve controvérsia mais estéril do que a concernente à questão de se o juiz é criador do direito. É óbvio que é. Como poderia não sê-lo?" [16]