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A reforma processual penal de 2008 e a ordem de inquirição das testemunhas após a novel redação do art. 212 do CPP

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VI. A contramão da história: As novas funções do Estado-Juiz dentro da moderna doutrina do direito processual civil

Além da absoluta ausência de previsão legal para que o Juiz deixe de exercer sua missão constitucional e legal de busca da verdade materialmente possível, para tornar-se um ser praticamente inanimado no curso da ação penal, bem como diante da falácia de que o exercício dos poderes instrutórios do Juiz no curso da ação penal violariam, de qualquer modo, sua imparcialidade ou mesmo causariam qualquer tipo de prejuízo à acusação e à defesa, percebe-se, ainda, que a idéia de se reduzir a atuação instrutória do Juiz encontra-se na contramão da história.

Nesse diapasão, não podemos olvidar a moderna doutrina processual civil que prega – com absoluta coerência e acerto a nosso ver – a necessidade de reforçar a atuação instrutória do Juiz como forma de proferir decisões comprometidas com a verdade e, com isso, implementar políticas públicas capazes de transformar a realidade de nosso país.

Tolher ou inibir os poderes instrutórios do Juiz seria o mesmo que afirmar que o Estado não tem nenhum interesse na solução das controvérsias dentro da verdade materialmente possível e que a função do magistrado nada mais seria do que a de um mero árbitro-espectador que se contentaria em, ficticiamente (ou formalmente), escolher entre a tese apresentada pela acusação e a tese apresentada pela defesa, as quais poderiam, efetivamente, não espelhar, nenhuma delas, a verdade dos fatos.

Desse modo, importante a lição do professor Alexandre Freitas Câmara [17], a qual, por sua percuciência e acerto, peço vênia para transcrever, in verbis:

"O primeiro sujeito da relação processual a ser analisado é o Estado, a que se costuma designar, in caso, Estado-juiz, pelo fato de estar o mesmo no exercício da função jurisdicional. O Estado ocupa, na relação jurídica processual, uma posição de supremacia e eqüidistância das partes.

A supremacia decorre do fato de o processo ser um instrumento de exercício do poder soberano do Estado, através de uma de suas manifestações, qual seja, a jurisdição. Já a eqüidistância, que nada mais é do que a demonstração gráfica da imparcialidade, é corolário da substitutividade, que, como se viu, é uma das características essenciais da jurisdição. Sendo certo que, no exercício da função jurisdicional, substitui o Estado a atividade dos titulares dos interesses que lhe são submetidos, não se poderia admitir que tal substituição se desse de modo parcial. A imparcialidade é requisito essencial para que se possa ter como legítima a atuação estatal no processo.

É óbvio que, para se assegurar imparcialidade do Estado, é preciso que haja imparcialidade do agente estatal que irá, no caso concreto, exercer a função jurisdicional. Assim, em primeiro lugar, cuida do ordenamento jurídico, através de norma jurídica hierarquicamente superior às demais, de estabelecer garantias para os magistrados, ou seja, a Constituição da República arrola uma série de garantias dos juízes, destinada a assegurar que a atuação do magistrado se dê, no processo, de forma imparcial.

(....)

A possibilidade de o juiz determinar a produção de provas de ofício está intimamente ligada à evolução do direito processual, que não mais admite um juiz passivo. Exige-se um julgador participante, que dirija realmente o processo, determinado a prática de todos os atos que se façam necessários para que a prestação jurisdicional possa se dar da melhor forma possível. Assim é que a determinação judicial para que se produza certa prova não deve ser considerada como meramente livre, desde o início do processo, e sejam as partes atuantes ou não neste sentido, para determinar a produção dos meios probatórios necessários à formação de seu convencimento.

Diverge, profundamente, a doutrina moderna acerca da possibilidade de o juiz, em um processo civil democrático, determinar ex officio a produção de provas. Não tenho, porém, qualquer dúvida em afirmar a legitimidade democrática da atribuição de tais poderes ao juiz. Como já tive oportunidade de sustentar em passagem anterior destas Lições, em um Estado que tenha a configuração do brasileiro, que busca a transformação da realidade social através da implementação de políticas públicas, o processo civil (microcosmo desse Estado) dever ser, também, ativo, cabendo ao juiz a implementação dessas políticas e a busca de decisões verdadeiras (isto é, comprometidas com a verdade). Assim, é preciso reconhecer o poder do juízo de determinar, de oficio, a produção das provas que sejam necessárias para que o juiz encontre a verdade e atue, corretamente, a vontade concreta do ordenamento jurídico." (Grifei)


VII. Dos Poderes Instrutórios do Juiz no Processo Penal – Juiz Espectador ou Juiz Protagonista? [18]

Com esse título o magistrado baiano e professor Marcos Antônio Santos Bandeira analisa, de forma irretocável, como parte da doutrina nacional vem – equivocadamente – entendendo as funções do Juiz no processo penal e como, realmente, deve ser essa atuação.

Diante da absoluta relevância e acerto das lições advindas da terra de Rui Barbosa, recomendamos a leitura integral do artigo, o qual se encontra disponível no sítio eletrônico da Associação dos Magistrados da Bahia (AMAB).

Apenas a título ilustrativo, passamos à transcrição de algumas idéias centrais contidas no artigo do ilustre professor. Senão vejamos:

"O juiz, no âmbito do sistema acusatório, modelo adotado pelo Estado Democrático de Direito, vem sendo considerado pela maioria esmagadora da doutrina nacional, como "mero espectador" do processo penal, despontando assim como um sujeito inerte, acrítico, desinteressado, imparcial, que por essa razão não deve produzir prova de qualquer espécie, mesmo que seja de forma complementar às partes, ficando, na verdade, a mercê da iniciativa probatória das partes.

Nessa perspectiva exsurge um novo olhar, que não fere o sistema acusatório e desmistifica o "mito da verdade real", transformando o juiz num verdadeiro protagonista do processo penal, sem que leve a pecha de "juiz-inquisidor". Com efeito, quebra-se o paradigma da neutralidade, preserva-se a sua imparcialidade e o coloca numa situação de sujeito interessado numa decisão processualmente justa.

(…) a minha experiência profissional como juiz criminal garantista me implorava para refutar a pecha de "boneco", marionete e sujeito desinteressado. Que juiz é este que se conforma tão-somente com as provas trazidas aos autos pelas partes? Que juiz é este que é indiferente ao resultado justo do processo? Que juiz é este que diante da fragilidade das provas trazidas pelas partes, não se interessa em produzir outras para fortalecer ou construir o seu juízo de convencimento? Que juiz é este que se preocupa tão-somente com aplicação positivista do processo, no seu aspecto formal, sem se preocupar se a decisão se aproximou ou não do valor justiça? Na verdade, como se infere, a "justiça" da decisão estará nas mãos das partes, como na famigerada verdade formal do processo civil, ou seja, o sucesso da demanda por uma das partes estará na razão direta da destreza e competência no manuseio das armas (provas), ficando o juiz-marionete, na condição de Poncio Pilatos, lavando as mãos, mesmo sabendo que a decisão construída exclusivamente pelas partes e que ele exteriorizará através da sentença foi manifestamente injusta, condenando-se um provável inocente ou inocentando um possível culpado. Esta decisão certamente não interessa a sociedade nem tampouco ao Estado Democrático de Direito. Não se pode cometer injustiça em nome da segurança jurídica e da pureza do sistema acusatório. É necessário que a prestação jurisdicional convença aos jurisdicionados para que se possa falar em pacificação social, um dos escopos da jurisdição. É possível que a sombra do juiz-inquisidor da idade média e que perambulou em nosso país por um bom tempo nos regimes ditatoriais tenha atemorizado o nosso meio acadêmico, a ponto de querer afastá-lo definitivamente da gestão das provas e reduzi-lo a um boneco inerte e alienado, preocupado apenas em guiar o procedimento judicial para no final publicar a decisão construída exclusivamente pelas partes. Um juiz preso ao mundo dos conceitos e alheio completamente ao mundo dos fatos. Não! O interesse público de se obter uma decisão processualmente justa, no âmbito de um processo dialético, ético e garantístico, deve preponderar sobre os interesses das partes. Os valores "justiça", jus libertatis, honra e da consciência social de evitar sentença injustas, devem sobrepujar o interesse legalista da acusação ou da defesa.

(…)

Como infirmar a essência do sistema acusatório pela iniciativa probatória suplementar do juiz no processo penal, se ele tem interesse em construir a verdade processual possível e justa? A Jurista Grinover (2001) compartilha desse entendimento ao asseverar que o processo acusatório e o processo de partes nada têm a ver com a iniciativa probatória do juiz no processo penal, na medida em que não se pode admitir um juiz passivo e refém das partes, como um mero espectador de um duelo judicial de interesses dos litigantes.

(...)

Após debruçar sobre essas considerações, entendo, com todas as vênias de posições em contrário, que os mitos da neutralidade do julgador e da verdade real já sucumbiram e não resistem ao mais tênue exame no atual estágio do Estado Democrático de Direito. Com efeito, não há mais lugar no processo penal para juiz neutro e desinteressado, ou como já afirmado pela maioria da doutrina pátria, de juiz-espectador do processo. O papel ativo de co-gestor na produção da prova não atinge a imparcialidade do julgador no processo penal. É necessário que o juiz moderno seja juiz-julgador, ou juiz-protagonista, que conhecendo a sua realidade sócio-cultural, analise os fatos delituosos que lhe são submetidos, aprecie as provas carreadas para os autos, construa o seu juízo de certeza, com seu sentimento e com toda a sua carga de valores, buscando com a colaboração ética das partes a verdade processualmente possível, assegurando-se ao acusado, como sujeito de direito, o contraditório e a mais ampla defesa."


VIII. (a) A atuação criativa do Juiz; (b) A essência da independência e da legitimação democrática da atividade judicial; e (c) A nova postura político-social do Poder Judiciário

Com esses títulos, a ilustre magistrada do Distrito Federal e dos Territórios, mestra em direito público e doutoranda em ciências jurídicas e sociais, Dra. Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto, realizou profunda análise acerca da legitimação democrática da jurisdição; da estrutura do Poder Judiciário no contexto do Estado Moderno; do Movimento dos Juízes críticos bem como acerca da função criadora do Juiz e o novo papel do Poder Judiciário neste momento da história, o que contribuiu, sobremaneira, para lançar novas luzes acerca da necessidade de efetiva participação do magistrado, não apenas na condução dos processos, mas, e principalmente, na assunção de seu papel de partícipe no processo evolutivo das nações.

Os temas são absolutamente pertinentes, principalmente em épocas onde a função e atuação dos Juízes têm sido profundamente questionadas, sendo que a íntegra dos artigos – os quais recomendamos a leitura – encontra-se disponível na biblioteca virtual da Escola Nacional da Magistratura-ENM [19] sendo que, o primeiro texto, também está disponível na Revista da Escola da Magistratura do Distrito Federal, n. 10 – 2007, páginas 31 a 54.

Face à impossibilidade de sua transcrição integral, passo a registrar algumas das conclusões obtidas pela culta estudiosa em seus relevantes estudos. Senão vejamos:

(a) A atuação criativa do Juiz:

"A sociedade vem reclamando uma postura cada vez mais ativa do Judiciário, não podendo este ficar distanciado dos debates sociais, devendo assumir seu papel de partícipe no processo evolutivo das nações. Eis que é também responsável pelo bem comum, notadamente em temas como a dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais e a defesa dos direitos de cidadania. (...)

A missão do juiz não se esgota nos autos de um processo, mas está, também, compreendida na defesa do regime democrático, sem o qual a função judicial é reduzida à rasteira esterilidade. (...)

Nesse trilhar, observamos que pensar o Direito sob a ótica pragmatista implica compreendê-lo, como a atividade dos juízes, no sentido de que as decisões sejam tomadas observando-se suas conseqüências e efeitos práticos, desenvolvendo uma prudência (saber prático), visando harmonizar os valores da sociedade. (...). Ademais, a vida real não se amolda à forma do direito positivo não só em razão da complexidade com que se apresenta, mas também por ser dinâmica, sendo pouco plausível que o legislador consiga prever todas as hipóteses de conflitos surgidos na vida social, não existindo, em conseqüência, uma única solução para o problema apreciado. (...)

(...) O Juiz, no nosso sistema judicial, sem extrapolar o marco jurídico-constitucional, pode e deve desempenhar sua tarefa de dirimir litígios de modo socialmente mais justo cumprindo papel inteiramente distinto do juiz legalista-positivista, criado pela Revolução Francesa para ser la bouche de la loi. A prestação jurisdicional deve ser exercida como instrumento de pacificação social e afirmação da cidadania, o que é facilmente verificado quando da ocorrência de sua aplicação célere e justa, consubstanciando-se, dessa forma, como um poderoso instrumento a serviço da população, razão primordial da existência do Poder Judiciário. (...)

O Poder Judiciário vem procurando oferecer à comunidade uma Justiça não só com vistas à resolução eficaz das questões jurídicas, mas também à prestação jurisdicional que ofereça uma solução para a problemática global do jurisdicionado. Concluímos que a atuação criativa dos juízes de Direito, pode ser constatada mediante a diuturna e efetiva prestação jurisdicional nos Juizados Especiais, ao darem solução adequada a cada caso, muitas vezes pela via multidisciplinar, revela um compromisso inequívoco com o Direito e a Justiça."

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(b) A essência da independência e da legitimação democrática da atividade judicial:

"O Poder Judiciário recolhe sua legitimação do povo, ao mesmo tempo fonte e destinatário único do poder do Estado. Dentre os poderes da República, é aquele que trabalha mais próximo do povo e da sociedade, pois não lida com o conflito descarnado, na abstrata universalidade do legislador. Os juízes tratam das questões concretas, da vida dos seres humanos e a realidade que bate à porta do Judiciário supera qualquer abstração. Recebe-se da sociedade o conflito humano mais doloroso e, com ele, homens e mulheres divididos pela disputa com seus semelhantes. (...)

É de se observar que inúmeras críticas têm sido feitas recentemente à atuação do Poder Judiciário no Brasil. Contudo, carece o Judiciário de melhores instrumentos de trabalho. A legislação nacional, além da técnica deficiente, é hoje de produção verdadeiramente caótica. Deficientes são os instrumentos disponíveis ao Judiciário, porque já não se aceita a verdadeira liturgia do processo, o amor desmedido pelos ritos, que quase passaram a ter fim em si mesmos, numa inversão de valores. (...)

O Poder Judiciário brasileiro depara-se, nos últimos tempos, com o desafio da concretização dos direitos de cidadania. Para tamanho desafio, não há fórmula pronta. É preciso estar sempre disposto para essa luta. É importante não esmorecer ante a adversidade do volume de serviço crescente, mas recusar-se a entregar uma jurisdição de papel, alienada, sem a necessária e profunda reflexão sobre os valores em litígio, em que as partes sejam vistas somente como números. É preciso que os juízes tenham o propósito de realizar uma jurisdição que proporcione pacificação social. É preciso reconhecer que a maior parte dos brasileiros ainda não tem acesso à Justiça e que é preciso reverter esse débito de cidadania. (...)

O Judiciário, nos tempos atuais não pode se propor a exercer função apenas jurídica, técnica, secundária, mas deve exercer papel ativo, inovador da ordem jurídica e social, visto que é chamado a contribuir para a efetivação dos direitos sociais, procurando dar-lhes sua real densidade e concretude."

(c) A nova postura político-social do Poder Judiciário:

"Na Constituição cidadã de 1988, o Poder Judiciário passou a ter uma participação ativa no processo democrático, especialmente com a sua presença mais efetiva na solução dos conflitos e ao ampliar a sua atuação com novas vias processuais, demonstrando preocupação voltada prioritariamente para a cidadania, através de instrumentos jurídicos, normas, preceitos e princípios que sinalizam a vontade popular de ter uma Justiça célere e distributiva. (...)

A temática do acesso à Justiça vem preocupando os juristas, especialmente os processualistas, ao longo dos tempos. Observa-se, atualmente, que o Direito passou a ser visto menos do ponto de vista de quem o produz e mais pelo ângulo do jurisdicionado. A ciência processual está evoluindo, devendo a estrutura judiciária também acompanhar esta evolução. Há necessidade de desformalização do processo, visto modernamente como instrumento para o exercício da cidadania. (...)

A prestação jurisdicional deve ser exercida como instrumento de pacificação social e afirmação da cidadania, o que é facilmente verificado quando da ocorrência de sua aplicação célere e justa, consubstanciando-se, dessa forma, como um poderoso instrumento a serviço da população. Como se observa, esta sim, é a razão primordial da existência do Poder Judiciário."

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Sobre o autor
Pedro de Araújo Yung-Tay Neto

Juiz de Direito titular da 2ª Vara Criminal de Ceilândia (DF). Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YUNG-TAY NETO, Pedro Araújo. A reforma processual penal de 2008 e a ordem de inquirição das testemunhas após a novel redação do art. 212 do CPP. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1902, 15 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11732. Acesso em: 23 dez. 2024.

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