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Processo legal devido no âmbito disciplinar.

(Des)necessidade de defesa técnica?

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11/01/2009 às 00:00
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5. DA INTERVENÇÃO OBRIGATÓRIA DO ADVOGADO

Corroborando tudo quanto se estudou até o presente momento, resta evidenciada que a garantia do devido processo legal se estende aos processos administrativos disciplinares, sobretudo pela dicção de dispositivo constitucional expresso (art. 5º LIV CF). Contudo, o que não se vislumbra adequadamente delineada é a obrigatoriedade da participação de advogado na seara disciplinar para que tal garantia seja efetivamente assegurada.

Com efeito, a Constituição Federal de 1988 [46] ressaltou a participação do advogado como função essencial à Administração da Justiça [47], e esta não se encontra adstrita exclusivamente às vias do Poder Judiciário [48]. Pela exegese da norma constitucional, compreende-se, portanto, a auto-executoriedade do seu comando, prescindindo de maiores regulamentações legais.

A imprescindibilidade da participação do advogado, contudo, não é prerrogativa iniciada com a Carta de 1988. Ao revés, já na Bíblia se percebem indícios da necessidade de patrocínio na defesa dos interesses dos homens, sendo em Jesus Cristo que se vê a figura do advogado entre Deus e os homens. Assim também, na Grécia Antiga e em Roma, a figura do jurista era dotada de uma série de privilégios, havendo registros de que em Athenas, nomeavam-se dez defensores por ano para o patrocínio das causas nas quais os envolvidos não possuíam recursos para arcar com tal despesa.

Com Ulpiano, a necessidade da intervenção do causídico fixou-se na jurisprudência romana e, a partir daí, influenciando os ordenamentos jurídicos de origem romana, podendo-se trazer, exemplificativamente, a expressão: Ait praetor: Sin non habebunt advocatum, ego dabo".

Ora, observe-se que a advocacia não se mostra somente como uma profissão regulamentada, mas um múnus público, ou uma função essencial à Administração da Justiça, como consignado na Carta Magna, exercendo papel fundamental na edificação do Estado Democrático de Direito, há tanto tempo buscado e ainda em fase de implantação.

Neste passo, é que se retorna ao ponto crucial deste trabalho. Tratando-se de um processo administrativo tendente à imposição de sanção disciplinar ao servidor público, será admissível a condenação do acusado sem que lhe seja assegurado o direito de patrocínio de defensor habilitado, conhecedor das disposições normativas?

Não se pode, jamais, olvidar do tecnicismo e formalismo das normas jurídicas e, em razão disso, da grande dificuldade de sua intelecção pelos leigos. Bastará, portanto, as alegações apresentadas pelo próprio acusado, ou o patrocínio de um servidor como defensor dativo para se cumprir a imposição constitucional do processo legal devido? [49]


6. TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DO TEMA

O cerne da questão apresentada neste trabalho se concentra na disparidade existente entre os entendimentos jurisprudenciais encontrados nos Tribunais Superiores Brasileiros, de modo a se questionar acerca da invalidação, ou não, do processo administrativo disciplinar, quando verificada a ausência de intervenção de advogado na defesa do servidor acusado.

Neste passo, é de se ressaltar que, malgrado não possua efetividade legislativa, a inserção das súmulas vinculantes no ordenamento jurídico pátrio reforçou a ideologia da observância obrigatória dos entendimentos sumulares dos Tribunais Superiores, mormente porque, consoante determinado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, as súmulas vinculantes tem caráter impeditivo de recursos. Vale dizer, não se admitirá a interposição de recursos quando manifestamente contrários ao entendimento esposado nas súmulas vinculantes.

Passemos, por conseguinte, à análise dos precedentes jurisprudenciais e das súmulas que ensejaram a discussão:

Genericamente, pode-se afirmar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem delineando uma postura mais garantista quanto aos direitos do cidadão, sendo consectário lógico a extensão deste entendimento para as vias do processo administrativo.

De fato, antes mesmo que se editasse a súmula 343, no ano de 2008, o STJ já havia consolidado seu entendimento no sentido de se assegurar ao acusado, no âmbito administrativo, o patrocínio da causa por um advogado, com vistas a não se minorar ou suprimir quaisquer das facetas do devido processo legal e ocasionar, conseqüentemente, a anulação do feito administrativo pelo Poder Judiciário.

Assim é que, condensando tal entendimento, editou-se a súmula 343, in verbis:

Súmula 343 STJ: é obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar.

Deste modo, nesta específica modalidade de processo administrativo, se o acusado não constituísse advogado, deveria ser-lhe nomeado um defensor dativo, legalmente habilitado, sob pena de invalidação.

Fernão Borba Franco, em tese de doutoramento específica sobre o processo administrativo, compreende haver cuidado excessivo nesse entendimento,

"uma vez que, como todo ato administrativo, também a imposição da sanção administrativa está submetida a controle judicial e, como a aplicação dessa pena está submetida a controle judicial e, como a aplicação dessa pena está submetida ao parâmetro constitucional da proporcionalidade, esse controle é suficientemente amplo para dispensar a necessária intervenção de advogado. Finalmente, para reforçar a aparência de excesso, deve ser considerado que a aplicação de penalidade administrativa, embora grave, é bem menos danosa que a imposição de pena criminal, que serve como parâmetro de comparação" [50].

A interpretação procedida pelo mencionado autor parece ter sido a adotada pela Corte Suprema do País, o STF.

De fato, pouco tempo após a edição da supramencionada súmula, o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, utilizou-se do instrumento de uniformização introduzido pela EC 45/2004 – súmula vinculante 05 para estabelecer, em caráter vinculante, que a "falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo não ofende a Constituição".

É de se reconhecer que a súmula vinculante não proíbe a participação do advogado nos feitos administrativo-disciplinares, mas lhe faculta a intervenção, de modo que a sua ausência não poderá importar em nulidade do feito, tal como vinha sendo entendido pelo STJ.

Neste sentido, argumenta-se pela possibilidade de acesso ao Poder Judiciário, caso decorram danos ao acusado, diante do princípio da inafastabilidade do controle judicial (art. 5º, XXXV da Constituição Federal) e também, não menos importante, pela ponderação de que a defesa técnica do acusado em processo administrativo disciplinar ocorrerá às suas expensas, inexistindo viabilidade de assistência pela Defensoria Pública ou de qualquer outra forma de patrocínio gratuito ao servidor.

Assim também, expõe Borba Franco que:

"De qualquer modo, o contraditório, e a possibilidade de defesa do réu, seja técnica ou não, é uma opção que deve a ele ser facultada, e não uma obrigação. Assim sendo, correta a lei federal ao estatuir a possibilidade de representação por advogado, mas não a sua obrigatoriedade. Entretanto, as considerações acima são úteis porque demonstram que o modo pelo qual se chega ao ato administrativo é de extrema importância, tendo, inclusive, eventualmente reflexos no plano do direito material." [51]

Interessante é observar que o entendimento esposado por Borba Franco se assenta na facultatividade do contraditório e defesa do réu, concepção que não se coaduna com a ideologia da Constituição Federal de 1988, uma vez que somente com o contraditório e a ampla defesa se vislumbra a observância do processo legal devido.

Registre-se que, como já dito alhures, a Constituição Federal não restringiu a cláusula do due processo of Law ao âmbito do processo judicial, mas, ao revés, reconheceu-lhe aplicação expressa na seara administrativa, razão pela qual há que se divergir absolutamente da concepção de facultatividade da defesa no processo administrativo disciplinar.

Contudo, em que pese a interpretação conforme à Constituição no sentido da imprescindibilidade da defesa no PAD, o Supremo Tribunal Federal compreendeu que o exercício do direito à defesa não exige a intervenção de advogado, ou melhor, da defesa técnica, circunstância que, salvo melhor juízo, poderá importar em prejuízos ao servidor processado quando lhe sejam desconhecidas as expressões e a técnica das regras jurídicas.

6.1. O caráter obrigatório da súmula vinculante

A expressão "súmula" advém de summula, significando a menor parte de summa (ou soma). Neste sentido, a summa equivale à jurisprudência, assim compreendida como o conjunto de decisões emanadas dos Tribunais.

Deste modo, a inserção da expressão "súmula vinculante" no ordenamento jurídico brasileiro [52] passou a significar a sintetização, em caráter diminuto, da jurisprudência dominante na Corte Suprema (o STF) intencionando a uniformização jurisprudencial nos juízes e Tribunais de todo o País.

A aprovação da súmula vinculante, composta por enunciado curto e direto, impassível de interpretação extensiva, depende da aprovação de dois terços dos membros do STF (oito dos dez ministros).

O parágrafo terceiro do artigo 103-A da Constituição Federal de 1988 disciplina que, em caso de descumprimento da súmula vinculante, impõe-se a provocação por reclamação ao STF, que anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial e, além disso, determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula conforme o caso.

Nesse diapasão, surge a problemática acerca do livre convencimento do magistrado frente à imposição de observância dos enunciados dispostos nas súmulas vinculantes.

No que tange especificamente à súmula vinculante nº 05, não se poderia compreender pela supressão ou minoração dos direitos fundamentais provenientes do devido processo legal? Poderia o magistrado, em ação mandamental de reintegração no cargo proposta pelo servidor entender prejuízo para a defesa do acusado pelo desconhecimento técnico das normas legais?

Desde a inserção das súmulas vinculantes, grande discussão doutrinária vem sendo levantada quanto à inconstitucionalidade de sua edição, uma vez que limitam a compreensão do magistrado na interpretação da lei ao caso concreto, violando, deste modo, o princípio constitucional do livre convencimento motivado.

De fato, se o diminuto enunciado prolatado pela Corte Suprema tem a capacidade de vincular as decisões proferidas pelos juízes e tribunais de todo o País, a compreensão dos conflitos de interesse submetidos ao crivo do Poder Judiciário se adstringem à mera aplicabilidade das súmulas vinculantes pertinentes à matéria aventada.

No que pertine à súmula vinculante nº 05, haja vista tratar-se da validade do processo disciplinar sem a participação do profissional habilitado, é de se indagar se o magistrado poderá nulificar a decisão administrativa que condene o acusado, quando se vislumbre um prejuízo para a defesa.

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Neste passo, retomam-se as concepções de Peter Haberle quanto à sistemática da interpretação constitucional, absolutamente aplicável ao nosso objeto de estudo. Em seu entender, Haberle considera que a hermenêutica não está restrita aos órgãos oficiais, mas provém da interpretação de todos os componentes do corpo social, dentro do que se compreende como sistemática aberta.

Com efeito, a interpretação constitucional é uma atividade que pertine a todos os indivíduos, organizados em grupos sociais ou individualmente considerados, de modo que se lhe possa imputar uma participação mais efetiva na construção da sociedade aberta. Esta é a concepção de Haberle, cuja percepção se faz no trecho a seguir transcrito:

"Os participantes do processo de interpretação constitucional em sentido amplo e os intérpretes da Constituição desenvolvem, autonomamente, direito constitucional material. Vê-se, pois, que o processo constitucional formal não é a única via de acesso ao processo de interpretação constitucional". [53]

Para ele, os intérpretes da Constituição não se restringem aos órgãos jurídicos ou "corporações", responsáveis pela interpretação formal, mas há que se ampliar para todo aquele que vivencia a norma, pois acaba por interpretá-la, ou pelo menos, co-interpretá-la. Neste sentido, afirma:

"Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detém eles o monopólio da interpretação da Constituição" [54]

Impende registrar que o entendimento perpetrado por Häberle permeia a década de setenta do século passado, haja vista que a edição inaugural de seu texto sobre hermenêutica constitucional se deu em 1975. Desse modo, é forçoso reconhecer que, tendo a evolução do constitucionalismo chegado à democracia da interpretação constitucional, através da qual todos os elementos do corpo social figuram como interpretes, houvéssemos regredido à hermenêutica fechada e há muito ultrapassada da interpretação vinculada aos órgãos jurídicos; in casu, determinada pela compreensão dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, quando da edição das súmulas vinculantes.

Entretanto, considerando o princípio constitucional do livre convencimento motivado do julgador e também, no caso em estudo, a obrigatoriedade da observância do processo legal devido, haverá que se reconhecer a inconstitucionalidade da súmula vinculante nº 05, por haver preterido um direito fundamental, ao pretenso fundamento da salvaguarda da segurança jurídica. Ora, não poderá haver segurança jurídica num País [55] em que nem mesmo os direitos fundamentais são resguardados e, ainda mais, violentados pela própria Instituição que os deveria proteger.

Nada há de legítimo em um processo no qual o acusado não teve direito de defesa, e não há defesa devida quando ao acusado não são assegurados os mecanismos capazes de proporcionar a efetividade do que alega. Assim, o acusado fica relegado à própria sorte: se tem recursos, paga pelo patrocínio do feito; se não os têm, restam-lhe apenas os próprios conhecimentos e a esperança de um Poder Judiciário capaz de reconhecer a absoluta violação das garantias asseguradas pelo Estado Democrático de Direito.

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Sobre a autora
Bartira Pereira Dantas

Doutoranda em ciências jurídicas e sociais pela Universidade Del Museo Social Argentino,especialista em direito pela Escola de magistrados da Bahia- EMAB/UCSAL, Servidora pública do Tribunal de Justiça da BA, professora universitária

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Bartira Pereira. Processo legal devido no âmbito disciplinar.: (Des)necessidade de defesa técnica?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2020, 11 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12190. Acesso em: 19 abr. 2024.

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