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Justiça restaurativa e Lei Maria da Penha

10/03/2009 às 00:00
Leia nesta página:

Pode-se definir Justiça Restaurativa como um procedimento consensual em que as pessoas afetadas, direta ou indiretamente pelo crime, participam de forma coletiva e ativamente na construção de soluções para a reparação dos danos por ele ocasionados. [01]

Paul McCold e Ted Wachtel, do Instituto Internacional por Práticas Restaurativas (International Institute for Restorative Practices), em trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, realizado de 10 a 15 agosto de 2003, no Rio de Janeiro, a Justiça Restaurativa constitui "uma nova maneira de abordar a justiça penal, que enfoca a reparação dos danos causados às pessoas e relacionamentos, ao invés de punir os transgressores" [02]

Segundo os mencionados autores, apud Jesus:

Um sistema de justiça penal que simplesmente pune os transgressores e desconsidera as vítimas não leva em consideração as necessidades emocionais e sociais daqueles afetados por um crime. Em um mundo onde as pessoas sentem-se cada vez mais alienadas, a justiça restaurativa procura restaurar sentimentos e relacionamentos positivos. O sistema de justiça restaurativa tem como objetivo não apenas reduzir a criminalidade, mas também o impacto dos crimes sobre os cidadãos. A capacidade da justiça restaurativa de preencher essas necessidades emocionais e de relacionamento é o ponto chave para a obtenção e manutenção de uma sociedade civil saudável. [03]

O modelo restaurativo contrapõe-se ao modelo retributivo ou dissuasório, cujo objetivo é pura e simplesmente à punição do infrator, negligenciando as necessidades emocionais e sociais da vítima e da comunidade afetadas pelo delito.

Com efeito, tem o modelo restaurativo seu foco na recuperação, na restauração dos sentimentos e relacionamentos afetados pela prática delituosa, objetivando, além da redução da criminalidade, reduzir o impacto da conduta criminosa sobre as relações entre os cidadãos. [04]

Como visto, a justiça restaurativa tem o propósito de obrigar o agressor a assumir a responsabilidade pelos seus atos, por meio de compromissos concretos, na tentativa de reparar os danos causados pela infração penal.

Quanto às partes envolvidas nesse processo, esclarecem Paul McCold e Ted Wachtel apud Jesus:

Aqueles que têm uma relação emocional significativa com uma vítima ou transgressor, como os pais, esposos, irmãos, amigos, professores ou colegas, também são considerados diretamente afetados. Eles constituem as comunidades de assistência a vítimas e transgressores. As partes secundárias, por outro lado, são integradas pela sociedade, representada pelo Estado, pelos vizinhos, aqueles que pertencem a organizações religiosas, educacionais, sociais ou empresas cujas áreas de responsabilidade incluem os lugares ou as pessoas afetadas pela transgressão. O dano sofrido por essas pessoas é indireto e impessoal, e a atitude que deles se espera é a de apoiar os processos restaurativos como um todo. [05]

Segundo Scuro Neto, para se efetivar um programa de Justiça Restaurativa requer que sejam estabelecidos,

Por via legislativa, padrões e diretrizes legais para a implementação dos programas restaurativos, bem como para a qualificação, treinamento, avaliação e credenciamento de mediadores, administração dos programas, níveis de competência e padrões éticos, salvaguardas e garantias individuais. [06]

Na legislação brasileira não existem dispositivos com práticas totalmente restaurativas. Entretanto, como exemplos de diplomas legais que tratam da justiça restaurativa no Brasil, ainda que parcialmente, temos o instituto da remissão do Estatuto da Criança e do Adolescente, os institutos despenalizadores da Lei nº. 9.099/95, as penas restritivas de direitos do Código Penal, o arrependimento posterior (art. 16 do CP), o sursis, o livramento condicional, a reabilitação criminal, dentre outros. [07]

Ao falar das medidas concretas visando à adoção da Justiça Restaurativa no Brasil, conclui Jesus:

Em nosso País, o debate a respeito da Justiça Restaurativa ainda se mostra em estado embrionário. São poucas as iniciativas nesse sentido, a maioria promovida por juristas. Das iniciativas estatais, deve-se apontar uma recente, cujos frutos até então não se viram, oriunda da Justiça do Distrito Federal e Territórios (capital da República Federativa do Brasil). O Presidente, o Vice-Presidente e o Corregedor do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios elaboraram um ato administrativo (Portaria conjunta n. 15, de 21 de junho de 2004), por meio do qual foi criada uma comissão visando estudar a "adaptabilidade da ‘Justiça Restaurativa’ à Justiça do Distrito Federal e desenvolvimento de ações para a implantação de um projeto piloto na comunidade do Núcleo Bandeirante. [08]

No tocante à Lei Maria da Penha (11.340/06), o legislador brasileiro, com vistas à punição do agressor, afastou os institutos despenalizadores da Lei n° 9.099/95, ou seja, a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo, instrumentos pautados nos ditames da Justiça Restaurativa, por buscarem a solução amigável para as partes litigantes.

Com efeito, tal postura do legislador ofendeu os primados da Justiça Restaurativa, na medida em que buscou a exasperação da situação em conflito, preocupando-se apenas com a imposição de uma pena sem se preocupar com a interação social entre a vítima e seu agressor.

A Lei Maria da Penha, portanto, não se harmoniza com o modelo da Justiça Restaurativa, uma vez que a ação penal nos crimes de lesão corporal leve e culposa passou a ser pública incondicionada, além de criar um empecilho para a renúncia à representação, que passou a ser admissível apenas em audiência especialmente designada para este propósito, na presença do juiz e do Ministério Público, antes do recebimento da denúncia (artigo 16).

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Nesse sentido, a Lei nº. 11.340/06 pode estar contribuindo para a ruptura dos laços familiares, defendidos pelo art. 226 da Constituição Federal, na medida em que força o prosseguimento de ações penais por crimes de lesões corporais leves e culposas, mesmo contra a vontade da mulher agredida, além de afastar os referidos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95.

Dever-se-iam criar mecanismos com vistas à solução desses conflitos, e não endurecer a intervenção do Estado dispensando a vontade da vítima no prosseguimento da persecução penal, uma vez que muitas mulheres agredidas se conciliam com seus agressores.

Além disso, muitas mulheres não querem a prisão de seus companheiros, mas tão-somente levá-los à presença da autoridade pública para que com sua intervenção essa relação possa ser repactuada e a violência não passe a ser uma constante a oprimir a mulher. Logo, prosseguir com a ação penal poderá gerar, em muitos casos, quando a relação ainda não foi completamente degradada pela violência recorrente, um desconforto no seio familiar, pondo em xeque a instituição da família.

Não se deve olvidar que, segundo dispõe a Carta Magna, no art. 226, "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Assim sendo, deve tal instituição ser protegida, e não segregada, como intencionou o legislador.

Leciona Gomes:

A Justiça do Futuro (mas que já está começando a ter nascimento em algumas cidades) está contemplada no art. 29 da Lei Maria da Penha que prevê, dentro dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a possibilidade de participação de uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. A essa equipe compete fornecer subsídios escritos ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas voltadas para a ofendida, agressor, familiares etc. [09]

Destarte, não restam dúvidas de que a Lei Maria da Penha representou um avanço na sociedade brasileira. Todavia, em alguns pontos foi um retrocesso, uma vez que ofendeu os primados da Justiça restaurativa no Brasil, diante da obrigatoriedade da ação persecutória, fomentando a discórdia entre os membros da família, instituto que goza de proteção estatal por determinação constitucional.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Lei nº. 11.340, de 7 de  agosto de 2006, (Lei Maria da Penha).

JESUS, Damásio de. Justiça restaurativa no Brasil. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 04 de novembro de 2008.

SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Rio de Janeiro, Revista da Emarf, v. 6, [200-]. Disponível em: < www.trf2.gov.br>. Acesso em: 20 nov. 2008.


Notas

  1. JESUS, Damásio de. Justiça Restaurativa no Brasil. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 04 de novembro de 2008.
  2. Ibid.
  3. Ibid.
  4. Ibid.
  5. Ibid.
  6. SCURO NETO, Pedro. Modelo de Justiça para o século XXI. Rio de Janeiro, Revista da Emarf, v. 6, [200-]. Disponível em: < www.trf2.gov.br>. Acesso em: 20 nov. 2008.
  7. JESUS, Damásio de. Justiça Restaurativa no Brasil. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 04 de novembro de 2008.
  8. Id.
  9. GOMES, Luiz Flávio. Lei Maria da Penha e justiça restaurativa. Disponível em: <http://www.blogdolfg.com.br>. Acesso em 04 de novembro de 2008.
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Sobre o autor
Fábio Dantas de Oliveira

Advogado. Gestor Governamental do Estado de Sergipe. Professor de Direito. Bacharel em Direito e licenciado em Letras. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal, em Direito Educacional, em Ciências da Religião e em Gestão Pública. Autor de livros e artigos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Fábio Dantas. Justiça restaurativa e Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2078, 10 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12439. Acesso em: 8 nov. 2024.

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