VII – O DIREITO INTERTEMPORAL NA CONTRIBUIÇÃO DOS INATIVOS
Todos os vícios apontados nos itens precedentes deste texto dizem respeito à cobrança da "contribuição" dos inativos de uma maneira geral. Permeiam a exigência como um todo, mesmo que formulada apenas em face daqueles que venham a reunir as condições necessárias à aposentadoria, ou à pensão, somente depois da vigência da EC 41/2003 e de seu disciplinamento infraconstitucional.
Em face de pessoas já aposentadas, ou já pensionistas, quando do advento da EC 41 e de seu disciplinamento legal, há ainda a questão do direito adquirido, que veda, em princípio, a exigência da contribuição, ainda que essa exigência não estivesse contaminada pelos vícios acima enumerados.
O argumento mais comumente empregado, para afastar a invocação do direito adquirido, é o que de "não existe direito adquirido contra a Constituição". A questão, porém, parece-nos carente de um pouco mais de reflexão, reflexão para a qual convidamos o leitor que se dispuser a nos acompanhar pelos itens subseqüentes.
VII.II - DIREITO ADQUIRIDO E PODER CONSTITUINTE. DISTINÇÕES NECESSÁRIAS
É importante ter em mente a relatividade da idéia contida na afirmação de que "não existe direito adquirido contra a Constituição".
De plano, porque só se deve cogitar de direito adquirido em face de referência expressa à produção de efeitos retroativos, por parte da norma examinada. Se a norma, mesmo constitucional, nada afirma quanto à sua eficácia retro-operante, subentende-se que sua incidência ocorrerá apenas em face de fatos ocorridos após o início de sua vigência. Trata-se de noção elementar de Teoria Geral do Direito, que por isso mesmo não precisa estar consignada de modo expresso em lugar algum. A Constituição pode simplesmente silenciar, ou manifestar-se expressamente pelo respeito ao direito adquirido, como fez, por exemplo, o § 2.º do art. 41 do ADCT, quando da promulgação da CF/88.
Além disso, deve-se distinguir a norma constitucional produto do poder constituinte originário, da norma constitucional oriunda do labor do poder reformador, também conhecido como poder constituinte derivado. A primeira, quando afirmar de modo expresso sua própria retroação, não respeita direitos adquiridos, até porque não existem normas de hierarquia superior em face das quais sua validade pudesse ser cotejada. Já a segunda espécie de norma constitucional, elaborada conforme a Carta Política posta, submete-se às limitações formais e materiais estabelecidas pelo constituinte originário, regramentos que lhe antecedem, e que lhe são superiores. Entre esses regramentos, no caso da Constituição Brasileira de 1988, está o respeito aos direitos fundamentais, entre os quais está arrolado o direito adquirido.
Assim, e em suma, não existe direito adquirido contra a Constituição, mas apenas se se estiver cogitando de norma nela introduzida pelo poder constituinte originário, e que afirme expressamente a inoponibilidade de direitos adquiridos às suas disposições. Em todas as demais hipóteses, especialmente em se tratando de norma veiculada pela atuação do poder constituinte derivado, o respeito ao direito adquirido é medida que se impõe como condição para sua validade.
VII. III - A EC 41/2003 E O DIREITO ADQUIRIDO
Quanto à incidência da contribuição prevista no § 18 do art. 40 da CF àqueles já aposentados e pensionistas no momento do início de sua vigência, é interessante notar, de início, que a EC 41/2003 não a determina expressamente. Em outras palavras, não há no dispositivo em questão uma prescrição clara no sentido de que sejam onerados os já aposentados, podendo-se entender que a exação seria devida apenas por aqueles que, após a sua vigência, reunissem as condições para a aposentadoria, ou para o recebimento de pensão.
Seja como for, caso se entenda que a contribuição de que se cuida efetivamente destina-se a onerar os que já eram aposentados e pensionistas quando do início de sua vigência, ao rol de suas inconstitucionalidades deverá ser incluída a violação ao direito adquirido, e à irredutibilidade de proventos.
A redução dos proventos, levada a efeito pela incidência da contribuição, é de tamanha evidência que dispensa maiores digressões. Para tentar mitigá-lo, a única afirmação que tem sido feita, e que não resiste a um exame cuidadoso, é a de que a garantia de irredutibilidade não configura uma "imunidade" tributária, não podendo afastar a incidência de tributos.
Ora, os proventos realmente não são imunes. Precisamente por isso, aliás, submetem-se aos mesmos tributos que oneram os rendimentos em geral. Ocorre que, com a "contribuição" dos inativos, tem-se um tributo que onera única e exclusivamente os aposentados e pensionistas. Essa exclusividade na incidência do tributo faz com que o mesmo configure, claramente, apenas um outro nome para a pura e simples diminuição dos proventos e pensões. Que diferença faz, a propósito, diminuir os proventos em 11%, ou submetê-los a uma contribuição específica de 11%? A resposta é, com toda a segurança: não faz nenhuma diferença.
Por outro lado, o "fato gerador" do direito à aposentadoria não depende do pagamento da "contribuição" dos inativos, que não o integra. Aliás, referido "fato gerador" não depende de qualquer outra circunstância ou evento posterior à aquisição do direito à aposentadoria. O recebimento de uma aposentadoria, por isso, é diferente do recebimento de um salário, eis que este último tem como "fato gerador" o trabalho durante o mês anterior, enquanto o "fato gerador" do direito ao provento, ou à pensão, é a situação que culminou na concessão da aposentadoria, ou da pensão, que restou consolidada no passado. O que o aposentado faz no mês imediatamente anterior ao pagamento do provento é, em princípio, irrelevante para determinar o nascimento do direito a esse mesmo provento.
Pode-se dizer, por isso mesmo, que a lei que regula o direito à aposentadoria, e à pensão, incide sobre os fatos nela previstos, gerando o direito à aposentadoria e produzindo efeitos continuados, no futuro, pela própria natureza do direito à aposentadoria. Em outros termos, o pagamento da aposentadoria, ou da pensão, é apenas um efeito de uma incidência que se aperfeiçoou no passado, e que por isso mesmo não pode mais ser alterado sob pena de violação ao direito adquirido, e ao princípio basilar de irretroatividade das leis. Administrativistas de respeito falam inclusive, como já foi acenado acima, que a aposentadoria do servidor é um vencimento diferido, porque oriundo do trabalho já desempenhado no passado.
A esse respeito, Para Paulo Roberto Lyrio Pimenta lembra que "os (hoje) inativos ingressaram no serviço público sabendo que iriam auferir, após o preenchimento de determinados requisitos, aposentadoria integral, a qual representaria uma contraprestação do Estado pelas contribuições recolhidas ao longo de vários anos, as quais, inclusive, incidiram sobre a totalidade dos vencimentos dos servidores, sem limitações". Assim, conclui, "uma série de atos jurídicos foi praticada pelos servidores, com base em tais hipóteses normativas. Não pode, portanto, após a concessão do benefício – ou da satisfação dos requisitos necessários à outorga de tal vantagem – o servidor ser surpreendido com modificação normativa que importa em diminuição do benefício pretendido. Vale dizer, o servidor que contribuiu para auferir um benefício ‘x’, não pode futuramente receber um benefício ‘x-1’. Isso infringe, inquestionavelmente, o princípio da segurança jurídica" [08].
Nem se argumente, no caso, que o direito adquirido, como os direitos fundamentais de uma maneira geral, são direitos do cidadão contra o Estado, não podendo por isso ser invocado pelos servidores públicos. A premissa de que os direitos fundamentais são proteção do cidadão em face do Estado é verdadeira, mas a sua aplicação ao presente caso é completamente impertinente, pois o servidor, ativo ou inativo, em suas relações com o poder ao qual serve, ou serviu, é cidadão, e não está nesse momento agindo em nome do Poder Público. O servidor que maneja ação judicial contra o Estado, pugnando vencimentos atrasados, por exemplo, é um cidadão que litiga contra o poder público exatamente como o é o contribuinte que pugna pela restituição de tributos pagos indevidamente.
Assim, o fato de o cidadão protegido pelo direito adquirido estar opondo esse direito ao Poder Público na condição de servidor público aposentado, ou de pensionista, não altera essa realidade. Serve, apenas, para mostrar a tais servidores, e aos seus pensionistas, e também aos que um dia estarão nessa condição (embora hoje imaginem que esse dia ainda está ainda muito distante), que as garantias do cidadão devem ser respeitadas sempre, e que a defesa dos interesses do Estado têm limites na Constituição e nos valores por ela protegidos. Agora que amargam os efeitos do arbítrio estatal, muitos desses servidores estão percebendo que "autoridades são apenas alguns, e só durante algum tempo, enquanto cidadãos somos todos nós e durante toda a vida".
É curioso perceber, ainda, que muitos dos que defendem a necessidade de se exigir uma "contribuição" de aposentados e pensionistas geralmente referem-se à garantia do direito adquirido de modo negativo, pejorativo, com referências tais como "abusos adquiridos". Pugnam pela mitigação da garantia, chegando ao cúmulo de pretendê-la, tal como ocorreu em face da ditatorial Carta de 1937, relegada apenas ao plano da lei ordinária. É curioso que essas mesmas pessoas, em geral, defendem com igual energia o pagamento incondicional e irrefletido dos juros da dívida pública, sem qualquer questionamento quanto à sua abusividade, em face do "respeito aos contratos", respeito que por sinal está positivado no mesmo dispositivo da Constituição. Atestam, com isso, o acerto de Pontes de Miranda, para quem "(...) o capitalismo nenhuma condescendência tem, quando prejudicial ao seu interesse, com os princípios jurídicos, muito embora esteja sempre pronto a defendê-los, com a maior energia, quando coincidam os seus interesses" [09].
VIII - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em razão do que foi visto ao longo deste texto, é-nos facultado concluir, em síntese, que a "contribuição" dos inativos é um adicional do imposto de renda, devido apenas pelos aposentados e pensionistas do serviço público, e cujo produto da arrecadação destina-se, em tese, ao custeio da aposentadoria de outros servidores públicos, no futuro. Tal exação, entretanto, é inconstitucional, mesmo depois de prevista em Emenda Constitucional, por ofensa ao art. 60, § 4.º, I e IV, da CF/88, eis que:
1. agride o princípio da isonomia, pois configura majoração do imposto de renda devida apenas por quem é aposentado ou pensionista do serviço público;
2. malfere o pacto federativo, pois representa uma majoração do imposto de renda que não é partilhada pela União com Estados e Municípios, nos termos em que determinado pelo art. 159, I, da CF/88;
3. ainda que contribuição fosse, a exação seria de qualquer sorte contrária ao princípio da proporcionalidade, pois configura instrumento inapto, desnecessário e, acima de tudo, excessivo, para corrigir o alegado déficit da seguridade social;
4. é contrária ao princípio da razoabilidade, visto que foge ao senso comum que alguém contribua para aposentar-se já estando aposentado, ou contribua para o recebimento de uma pensão da qual já é beneficiário;
5. viola o princípio da capacidade contributiva, e a vedação ao confisco, pois incidência, considerada em conjunto com a do imposto de renda das pessoas físicas, implica ônus superior a 38% dos rendimentos do aposentado, ou do pensionista;
Os vícios acima apontados tornam inválida a expressão "e inativos e pensionistas" inserida no caput do art. 40 da CF/88, e todo o § 18 que nele foi encartado. Por conseguinte, impedem a instituição da "contribuição dos inativos", seja qual for o tratamento intertemporal que se lhe dê. Muitos deles, a propósito, já foram reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da contribuição instituída pela Lei n.º 9.783/99. Por essa razão, se houver coerência com as premissas do posicionamento anterior, a exação há de ser declarada inconstitucional, mais uma vez, pois a armadura que lhe confere o veículo "emenda constitucional" não a habilita a arrostar as cláusulas imodificáveis da Constituição.
Entretanto, deve-se considerar, em relação àqueles já aposentados, ou já pensionistas, ou já detentores do direito de assim serem considerados, a proteção ao direito adquirido. Diante dessa proteção, que naturalmente deve ser respeitada também por normas veiculadas através de Emenda Constitucional, a "contribuição dos inativos", ainda que válida venha a ser considerada pelo STF, somente poderia ser exigida daqueles que adquirissem o direito à aposentadoria após o início da vigência das normas que a criaram.
IX - REFERÊNCIA CITADAS
, Sacha Calmon Navarro, "A Tributação dos Inativos", em Revista Dialética de Direito Tributário n.º 103.GRECO, Marco Aurélio, Contribuições (uma figura "sui generis"), São Paulo: Dialética, 2000.
MACHADO, Hugo de Brito, Uma Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo: Dialética, 2000.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de, O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3.ª ed., São Paulo: Malheiros, 1993.
MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de, e também J. E. Abreu de Oliveira, citados por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 10.ª ed., São Paulo: Atlas, 1999.
MIRANDA, Pontes, Comentários à Constituição de 1967, com a emenda n.º 1 de 1969, São Paulo: RT, 1970, V II.
PIMENTEL, Paulo Roberto Lyrio, "Da Contribuição dos Inativos para a Seguridade Social: Inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 41/2003", em Revista Dialética de Direito Tributário n.º 103.
SOUZA, Hamilton Dias de, "Contribuições especiais", em Curso de Direito Tributário, coord: Ives Gandra da Silva Martins, 7.ª ed., São Paulo, 2000.
Notas
- Último debate televisionado entre os candidatos que concorriam ao segundo turno das eleições presidenciais de 2002, realizado pela Rede Globo, Onde afirmou, peremptoriamente, que não oneraria aposentados e pensionistas com tal contribuição.
- STF - ADInMC 2010/DF – DJ de 12.04.2002, precedente, servindo de paradigma para o STF declarar a inconstitucionalidade de "contribuições" semelhantes instituídas pelos Estados-membros sobre seus servidores aposentados, e sobre seus pensionistas
- COELHO, Sacha Calmon Navarro, Cf. "As Contribuições Especiais no Direito Tributário Brasileiro", em Justiça Tributária – livro de apoio do 1.º Congresso Internacional de direito tributário – IBET, São Paulo: Max Limonad, 1998.
- COELHO, Sacha Calmon Navarro, Cf. "As Contribuições Especiais no Direito Tributário Brasileiro", em Justiça Tributária – livro de apoio do 1.º Congresso Internacional de direito tributário – IBET, São Paulo: Max Limonad, 1998
- STF - ADInMC 2010/DF – DJ de 12.04.2002.
- STF - ADInMC 2010/DF – DJ de 12.04.2002.
- STF - ADInMC 2010/DF – DJ de 12.04.2002.
- Pimentel, Paulo Roberto Lyrio, "Da Contribuição dos Inativos para a Seguridade Social: Inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 41/2003", em Revista Dialética de Direito Tributário n.º 103.
- MIRANDA, Pontes de, Comentários à Constituição de 1967, com a emenda n.º 1 de 1969, São Paulo: RT, 1970, V II.