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Videoconferência e os direitos e garantias fundamentais do acusado

24/03/2009 às 00:00
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O melhor e mais aprofundado estudo (no Brasil) sobre a videoconferência (de que temos conhecimento) foi feito por Juliana Fioreze (Videoconferência no processo penal brasileiro, Curitiba: Juruá, 2007). O livro nasceu como fruto da sua pesquisa realizada para a obtenção do título de Mestra em Direito pela Universidade Paranaense (Unipar-Umuarama). Tive a honra de participar da sua banca e, agora, tomo a liberdade de sintetizar seus pontos de vista (que subscrevo) sobre os itens acima mencionados.

Videoconferência e direitos e garantias fundamentais: o objetivo do interrogatório on line (ou seja: do uso da videoconferência no âmbito criminal) não é só a agilização, a economia e a desburocratização da justiça, senão também a segurança da sociedade, do juiz, do representante do Ministério Público, dos defensores, dos presos, das testemunhas e das vítimas. Não se trata de privilegiar só o indivíduo ou a só a Justiça, senão também a sociedade.

Se de um lado é certo que os direitos e garantias fundamentais do cidadão constituem as barreiras infraqueáveis (os limites intransponíveis) dos poderes fiscalizatórios, investigativos, persecutórios e sancionatórios do Estado, de outro, não menos certo é que tais direitos e garantias, fundados, sobretudo, em princípios constitucionais, não são absolutos. Podem sofrer restrições, desde que elas tenham por base uma lei e sejam proporcionais.

O modelo garantista de processo (sustentado por Ferrajoli) vem fundamentado em cinco premissas: (a) jurisdicionalidade, (b) inderrogabilidade do juízo, (c) separação das atividades de julgar e acusar, (d) presunção de inocência e (e) contradição.

A videoconferência (da forma como foi disciplinada na Lei 11.900/2009) procurou preservar essas cinco linhas mestras do processo garantista. Quem determina o uso da videoconferência é o juiz que, aliás, preside toda a instrução. Por meio da videoconferência o juiz acaba não delegando a ninguém a oitiva de todas as pessoas envolvidas no processo (preso, testemunha, vítima). Na medida em que a videoconferência pode evitar a expedição de carta precatória ou rogatória, ela reforça a inderrogabilidade da jurisdição assim como os princípios do juiz natural e da identidade física do juiz. A videoconferência não afeta o modelo acusatório de processo (que distingue as funções de acusar, defender e julgar). Não diminui a eficácia garantista da presunção de inocência nem elimina a contradição (direito ao contraditório, que constitui a base da ampla defesa). O réu pode contrariar todas as provas colhidas perante o juiz natural da causa e defender-se amplamente (tendo o direito de se comunicar reservadamente com seu defensor). Os princípios constitucionais garantistas, como se vê, acham-se preservados e até enaltecidos na nova lei (Lei 11.900/2009).

Ao acusado deve-se dar oportunidade de apresentar sua defesa da forma mais ampla possível. A videoconferência não elimina nem restringe essa possibilidade (ao contrário, amplia). Tudo que é dito é registrado (de modo fidedigno). Finalmente pode-se falar na fidelidade do registro (que é fundamental, sobretudo, para o momento recursal). Ela não afeta a qualidade da prova. A distância espacial não impede a presença física (remota) do réu na audiência. Não obstaculiza o diálogo. Todo ato é realizado perante a autoridade judiciária (não se viola o princípio do juiz natural nem a identidade física do juiz). Os advogados participam ativamente (sem limitações abusivas). Contra o réu não se exerce qualquer coação (princípio da liberdade de expressão). A lisura do ato é garantida pela presença de dois defensores (um no presídio e outro no fórum). A presença do réu é física (real), embora remota. Ouve-se tudo, vê-se tudo. Não há restrição à interação. Acusado, defensores e juiz estão juntos. A participação de todos se dá em tempo real. A distância só é espacial, não temporal. Nada é virtual (tudo é real e fisicamente visível). A tecnologia supera o distanciamento, aproxima temporalmente as pessoas e dá concretude a todas as garantias constitucionais. Nada se perde. Não se viola o princípio do devido processo legal, nem a ampla defesa nem o contraditório.

Razoabilidade e garantismo: a videoconferência, tal como foi regulada pela Lei 11.900/2009, encontrou o ponto de equilíbrio entre os princípios da ampla defesa, proporcionalidade e devido processo legal, de um lado, e, de outro, a eficiência e a brevidade (processuais). O processo pode ser mais célere, mais barato e mais seguro para todos (presos, testemunhas, vítimas), sem eliminar a força cogente dos princípios garantistas citados. Os atos continuam sendo orais (tal como preconiza o sistema acusatório). Está assegurado o contado auditivo e visual de todos os presentes. A lisura de tudo é fiscalizada pelo Ministério Público assim como pelos defensores. A qualidade da prova não resulta prejudicada. Diminuirão, sensivelmente, os adiamentos de audiências. A videoconferência reduz custos (de transporte) e incômodos. Está em perfeita sintonia com a ordem constitucional vigente assim como com todos os vetores informadores do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nenhum princípio cardeal garantista resultou arranhado com a videoconferência: juiz natural, identidade física do juiz, publicidade, dignidade da pessoa humana, acesso à justiça, ampla defesa, contraditório, devido processo, direito de ser julgado em prazo razoável etc.

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Tratados internacionais e videoconferência: os dois tratados internacionais, sobre direitos humanos, mais relevantes (no nosso entorno cultural) são: Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose) e Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Ambos vigoram no Brasil desde 1992. Dizem (art. 7º, 5 e 9º, 3) que o preso deve ser conduzido à presença do juiz. O escopo dos dois diplomas é assegurar a presença física do réu perante o juiz. Essa presença física pode se dar diretamente ou remotamente. O fundamental é que ambos estejam temporal e fisicamente em contato. A omissão da forma videoconferência em tais tratados se explica pela época em que foram elaborados (década de 60). Quando tais tratados foram redigidos nem sequer ainda existia o sistema de videoconferência (que nasceu em 1969). A interpretação progressiva é imperativa.

Os modernos tratados já fazem referência ampla à videoconferência: Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (arts. 32, § 2º, alínea "a" e 46, § 18); Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (art. 18, § 18, art. 24) etc.

Direito comparado: Nos Estados Unidos a videoconferência é utilizada desde 1996 (está prevista tanto em leis federais como em praticamente todas as legislações estaduais); Canadá (desde 1998); Austrália (desde 1997); Índia (desde 2003); Reino Unido (desde 2003); Espanha (desde 2003); Chile, Itália, Portugal, França etc. Todos esses países fizeram alterações em seus ordenamentos jurídicos para permitir a videoconferência.

Conclusão: não existem motivos sérios que maculem a proporcionalidade da Lei 11.900/2009. A expectativa é de que nosso Supremo Tribunal Federal declare sua constitucionalidade assim como a validade do sistema adotado.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Videoconferência e os direitos e garantias fundamentais do acusado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2092, 24 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12507. Acesso em: 5 nov. 2024.

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