Passados mais de dois anos desde a sua edição, há ainda situações tormentosas que pairam sobre a Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha –, e às quais deve ser dado um termo, para se evitar a ocorrência de nulidades que favoreçam a quem, por vezes, ao agir com violência contra as mulheres, suprime-lhes ao máximo os direitos humanos, no silencioso ambiente doméstico ou familiar.
Questão que merece tratamento mais apurado está relacionada à competência para julgar causas que envolvam situações protegidas na lei. Porém, a abordagem que aqui será feita se dará à margem da discussão acerca da constitucionalidade do seu artigo 33, até porque entendo constitucional o dispositivo que determina a estruturação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Antes, contudo, serão firmadas três questões que servirão de premissas básicas para análise do tema a seguir abordado:
a) As formas de violência sofridas pela mulher, analisadas à luz da presente lei, constam em rol não taxativo estabelecido no artigo 7º da lei;
b) O empregado doméstico, em regra, pode ser sujeito ativo da prática de violência doméstica, o que, inclusive, já tive a oportunidade de asseverar anteriormente1:
... a mesma empregada doméstica que pode ser vítima da violência cuja proteção encontra amparo na Lei nº 11.340/2006, pode também ser o algoz – e aqui se inclua o empregado doméstico, pois ambos os sexos possuem capacidade para ser sujeito ativo. Ademais, complementa tal assertiva o fato de o ambiente de seu trabalho ter sido alçado à categoria de ambiente doméstico por força do artigo 5º, inciso I, desse diploma legal, e ali inserida a proteção relativamente à mulher.
c) A Lei nº 11.340/2006, por seu artigo 13, protege as mulheres de todas as idades, sejam crianças, adolescentes, jovens, adultas ou idosas, e não gera desconforto algum a superposição de normas protetivas, como o Estatuto do Idoso e o ECA. É certo, todavia, que não se aplica a Lei nº 9.099/1995 – Lei dos Juizados Especiais – aos crimes alcançados pela Lei nº 11.340/2006, conforme claramente destaca o artigo 41, mas isso será discutido mais adiante.
Ademais, em julgado publicado no Informativo nº 363, o STJ se manifestou, embora de forma reflexa, pela não aplicação do procedimento dos Juizados Especiais Criminais aos crimes de violência praticados no âmbito doméstico ou familiar onde a mulher é vítima. Na ocasião, a questão de fundo foi analisada no sentido de que o crime de lesão corporal leve qualificada suscita ação penal pública incondicionada:
4) ademais, até a nova redação do § 9º do art. 129 do CP, dada pelo art. 44 da Lei n. 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos à lesão corporal leve qualificada praticada no âmbito familiar, corrobora a proibição da utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando assim a exigência de representação da vítima2.
Porém, CUNHA e PINTO3 lembram que o dispositivo apenas se refere aos crimes, notadamente se porque busca evitar a aplicação das penas previstas no rito dos Juizados Especiais Criminais, em razão do seu caráter didático quase inócuo. Entretanto, no que tange às contravenções penais praticadas no âmbito doméstico e familiar "continua sendo aplicável a Lei 9.099/95 (e suas medidas despenalizadoras), ressalvando-se, apenas, as proibições trazidas no art. 17 da Lei 11.340/2006".
Tecidas essas considerações, parte-se, então para a análise de um recente caso de violência doméstica ocorrido em Goiânia, capital de Goiás, onde uma menina de doze anos foi vítima de tortura e de cárcere privado praticados na forma continuada por empregada doméstica – ao lado de sua mãe adotiva –, conforme amplamente divulgado nos meios de comunicação4.
Foi proposta a ação penal nº 200801071261, distribuída para a 7ª Vara Criminal da Comarca de Goiânia em 17-03-2008. A sentença condenatória foi exarada em 30-06-2008.
Como se percebe, o juiz "a quo" observou a celeridade na entrega da prestação jurisdicional, pois prolatou a sentença pouco mais de três meses depois de distribuído o processo. E aqui, abram-se parêntesis, cumpre ressaltar que essa rapidez, logicamente, foi incentivada pela farta exposição midiática do fato, o que invariavelmente ajuda a acelerar os trabalhos, mormente pela necessidade de prestar contas à sociedade, já que houve grande clamor público pela grave violação a direitos humanos de uma criança.
Contudo, embora deva ser ressaltado o excelente trabalho desenvolvido pelo magistrado, entendo que o processo é nulo em razão da incompetência absoluta para apreciação da demanda.
Explico. Há na Comarca de Goiânia um juízo específico para tratar da matéria, tendo em vista que desde 2007 a competência do antigo 7º Juizado Especial Criminal foi alterada para cuidar de casos de "Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher", conforme consta na lista de Comarcas e de Juízes disponível no sítio do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás5.
Ora, se há juízo competente para julgar causas que envolvam violência doméstica e familiar, outro não será competente, independente de potencial ofensivo dos crimes cometidos, ressalvadas as competências do Tribunal do Júri e a hierárquica, pois estabelecido um juízo especializado para cuidar de matéria específica, resta fixada a competência absoluta, improrrogável por tratar de interesse público, e não privado.
Com relação à competência do juízo ensinam GRINOVER, CINTRA e DINAMARCO6 que é aquela fixada entre varas especializadas, estabelecidas em conformidade com o interesse público. Assim, em princípio, o sistema jurídico-processual não admite mudanças nos critérios que determinarem essa competência, principalmente pela vontade das partes, uma vez que se trata de competência absoluta, a qual "não pode jamais ser modificada".
Na lição de FUX7, para determinar a competência do juízo (ou objetiva), uma das situações a serem consideradas é a matéria litigiosa (competência em razão da matéria), embora também possam ser considerados: o valor da causa (competência em razão do valor); as partes envolvidas (competência em razão da pessoa); e a função a ser exercida no processo (competência em razão da função).
Como a competência em razão da matéria é fixada à luz do interesse público, ela é, por esse motivo, imperativa e absoluta. Assim, sua inobservância implica grave vício insanável, conforme depreende dos artigos 111 e 113 do CPC.
No âmbito do CPP, conforme dispõe o artigo 69, inciso III, combinado com o caput do artigo 74, a natureza da infração é uma das formas de se determinar a competência jurisdicional, que será regulamentada na Lei de Organização Judiciária, respeitadas as normas de competência estabelecidas na CRFB/1988 e a competência privativa do Tribunal do Júri.
MIRABETE8, ao comentar o caput do artigo 74 do CPP, ensinou que para fixar a competência penal em razão da matéria ("ratione materiae"), em primeiro lugar é necessário verificar se a mesma é afeta à Justiça Especial (Militar ou Eleitoral) ou à Justiça Comum (Federal ou Estadual) – competência constitucional. Ultrapassada essa fase, cumpre verificar se é possível determinar a competência em razão da natureza da infração, o que se dá por meio de leis de organização judiciária (federal/ estadual), onde são firmados vários critérios de apuração para operar essa divisão.
A seu turno, TOURINHO9 sugeriu vários desses critérios de apuração da natureza das infrações penais, os quais servirão para determinar a competência dos juízes: a qualidade da pena principal; o caráter do resultado; ou a objetividade jurídica. Nesse último caso, são exemplos os crimes contra o patrimônio e contra a honra.
Em sentido inverso, porém, o entendimento de PACELLI, para quem a competência conferida pelas leis infraconstitucionais é relativa – especialmente a Lei de Organização Judiciária –, pois, no que tange à competência em razão da matéria, a CRFB/1988 teria apenas contemplado as subdivisões referentes às Justiças Especiais (Militar, Eleitoral e do Trabalho) e Comuns (Federal e Estadual). Assim, porque não foi atribuída uma competência minudenciada, mas apenas residual, é inquestionavelmente prorrogável a competência das varas especializadas criadas por leis infraconstitucionais para normatizar a justiça comum:
A nosso juízo, somente a Constituição Federal pode definir regras relativas à competência absoluta, em razão da função ou em razão da matéria. Embora não se possa negar que as normas de organização judiciária, quando criam varas especializadas, estão a estabelecer competência por matéria, o fato é que o princípio do juiz natural, e assim, da competência absoluta, se impõe apenas como competência de jurisdição (da Justiça Federal, Estadual, Militar, Eleitoral, Trabalhista, etc.). Por isso, independentemente da instituição de varas especializadas, se a matéria é da competência (constitucional) de Juiz de Direito, o vício de incompetência será relativo se não obedecida a organização judiciária (quando a decisão for proferida por um juiz de direito, de outra Vara)10.
Para GRINOVER, CINTRA e DINAMARCO "o princípio do juiz constitucionalmente competente vem integrar as garantias do devido processo legal, podendo considerar-se inexistente o processo conduzido pelo juiz desprovido de competência constitucional"11.
DIDIER JR.12, por sua vez, afirma que a decisão emanada por juiz incompetente denota desrespeito a comando constitucional, o que autoriza a decretação de sua nulidade mesmo após corrido o lapso temporal para ajuizar ação rescisória (artigo 495 do CPC), ou seja, a qualquer tempo, através da "querela nullitatis", ação autônoma que encontra fundamento nos artigos 475-L, inciso I, e 741, inciso I, do CPC. Ressalva, porém, que como o legislador não deu tratamento diferenciado, conclui-se que a questão só pode ser resolvida até o alcance da ação rescisória.
Independentemente de tratar do assunto sob a ótica do plano da existência ou da validade, é incabível a prorrogação pela inércia do réu no caso em espeque porque se trata de matéria de interesse público, e, portanto, improrrogável. A competência só será prorrogável em duas situações: por disposição legal (prorrogação legal) ou pela vontade das partes (prorrogação voluntária), quando possível. Como se vê, enquanto a regra que protege interesse particular é de competência relativa e, portanto, disponível, quando se trata de interesse público, a regra é de competência absoluta, e é indisponível e improrrogável.
Isso posto, acredito que o fato de ter sido destinado um Juizado Especial Criminal (o 7º de Goiânia) para cumprir a determinação contida no artigo 14 da Lei nº 11.340/2006 pode ter contribuído para gerar a confusão que restou na distribuição equivocada do feito. Concorre para isso a lei, ao destacar que poderão ser criados "Juizados" de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
DIDIER JR. e OLIVEIRA13 bem detalham o assunto:
A designação "Juizado" remete a um tipo de órgão jurisdicional e uma espécie de procedimento, exclusivo deste mesmo órgão. O Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, embora tenha essa designação, não é um "Juizado" no sentido tradicional. Trata-se de uma "vara especializada". Não há um procedimento específico para as causas que tramitam neste juízo, que deverão obedecer as regras do Código de Processo Civil, Código de Processo Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente e Estatuto do Idoso, desde que não conflitem com as regras processuais especiais previstas na Lei Federal n. 11.340/2006.
Como os crimes praticados contra a menina goiana não são de menor potencial ofensivo, isso possivelmente motivou a distribuição da ação para uma Vara Criminal. O fato, então, se deu ao alvedrio da Lei nº 11.340/2006, pois a remessa dos autos deveria ter sido feita ao juízo competente, já que a Lei de Organização Judiciária do ente federativo estabeleceu um órgão competente para julgar tais causas. Em decorrência disso, restou configurada a nulidade.
Segundo CUNHA e PINTO, a Lei nº 11.340/2006, que trata especificamente das infrações praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher "ao afastar a aplicação da Lei 9.099/05 (‘sic’) no tocante a estas infrações, deixou de considerá-las infrações de menor potencial ofensivo"14.
Vale dizer, o artigo 41 da Lei nº 11.340/2006 aponta que, independentemente da pena que lhe for cominada, o crime praticado contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar será julgado pelo juízo detentor dessa competência. Apenas vige como disposição transitória o dispositivo segundo o qual, enquanto não forem estruturados tais "juizados especializados", as varas criminais irão acumular as competências cível e criminal para conhecer e julgar tais causas de violência contra a mulher (artigo 33).
Ainda com relação à incompetência absoluta, traz-se à baila a lição de DIDIER JR.15:
A incompetência absoluta pode ser alegada a qualquer tempo, por qualquer das partes, podendo ser reconhecida ex officio pelo magistrado.
Trata-se de defeito tão grave que, uma vez transitada em julgada a última decisão, ainda será possível, no prazo de dois anos, desconstituí-la por ação rescisória, com base no art. 485, II, CPC.
É correto dizer que o próprio juiz de piso deveria ter suscitado de ofício sua incompetência, pois conforme estabelece o artigo 5º, inciso LIII, da CRFB/1988, apenas a autoridade competente pode processar e/ou sentenciar o jurisdicionado. Ademais, observar o dispositivo é por demais necessário, pois juntamente com o inciso XXVII do mesmo artigo, serve de fundamento para o Princípio do Juiz Natural.
Por outro lado, é importante acrescentar que, defende PACELLI, ainda que se entenda tratar de incompetência relativa – o que, no meu entender, não guarda relação com a presente hipótese –, "no processo penal, ao contrário do processo civil, permite-se também ao juiz, ex officio, a declinação da incompetência relativa, conforme se vê do art. 109 do CPP"16.
Concluindo, se as mulheres que mantêm vínculo de trabalho doméstico podem ser vítimas de crimes perpetrados no âmbito doméstico, por participarem deste ambiente no exercício de suas atividades laborais, não sem menor razão podem ser algozes das violências praticadas nesse recinto. Entretanto, cumpre inserir nesse contexto, como sujeito ativo, o homem que exerce profissão de empregado doméstico.
Ademais, a violência praticada contra mulher de qualquer idade no âmbito doméstico ou familiar obrigatoriamente será apurada, processada e julgada nos termos da Lei nº 11.340/2006. Quer dizer: conferir ao juízo competente para julgar os casos de violência doméstica e familiar a denominação de "Juizado" pode ser questão de política judiciária. Mas, tratar esse juízo como se fosse um Juizado Especial Criminal é um equívoco, haja vista que, em razão da dicção do artigo 41, a própria lei não discrimina se os crimes julgados sob a sua égide serão de maior ou de menor potencial ofensivo.
Por fim, relativamente ao fato que objetivou o presente estudo, foi praticada violência por empregada doméstica no ambiente doméstico em que exercia sua atividade laboral, e contra mulher, que não obstante seja uma criança, está protegida pela Lei nº 11.340/2006. Destarte, a ação intentada contra ela forçosamente deveria tramitar no juízo competente para apurar tais crimes. Contudo, malgrado exista na Comarca de Goiânia, o mesmo não foi acionado.
Ora, uma vez estruturado um "Juizado" competente para apurar a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o processo formado não pode ser distribuído para uma vara criminal, já que a determinação da competência, nos termos da lei, está divorciada do grau de ofensividade do crime praticado, sob pena de incidir o vício da incompetência absoluta, incorrendo em grave violação ao Princípio do Juiz Natural.
Nesse diapasão, é nulo em sua inteireza o processo que tramitou em juízo distinto daquele determinado na Lei de Organização Judiciária, porque viola a competência absoluta ("ratione materiae"), sendo, por isso mesmo, inadmitida a prorrogação.
REFERÊNCIAS
1 PEIXOTO, Fernando César Borges. Violência doméstica contra a mulher perpetrada por empregado(a) doméstico(a) em seu local de trabalho. Disponível em http://www.lfg.com.br; publicado em 07.out.2008;
2 HC 96.992/DF; 6ª Turma; Rel. Desemb. convocada do TJ-MG Jane Silva; julgado em 12/8/2008; Disponível em: <http://www.stj.gov.br/>. Acessado em 11.set.2008;
3 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica. 2. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 188/189;
4Juiz ouve depoimento de menina vítima de tortura em Goiás; notícia de 23/04/2008. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/0,,PIO422782-5598,00.html>. Acessado em 29.set.2008;
5 Disponível em: <www.tjgo.jus.br>. Acessado em 30.out.2008;
6 GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 240;
7 LUIZ FUX. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 97;
8 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 302;
9 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. 2. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 113;
10 PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 228;
11 Ob. cit., p. 241;
12 DIDIER JR.; Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol.1. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2007, p. 102;
13 DIDIER JR., Fredie; e OLIVEIRA, Rafael. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha – violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/main/ artigos/default.jsp>. Acessado em 11.set.2008;
14 Ob. cit., p. 34;
15 Ob. cit., p. 100;
16 Ob. cit., p. 223.