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Da distinção do financiamento das demais operações de crédito para fins da configuração do crime previsto no artigo 19 da Lei nº 7.492/86

01/08/2009 às 00:00

Resumo:


  • O artigo 19 da Lei nº 7.492/86 aborda o crime de fraude para obtenção de financiamento em instituição financeira, com pena de reclusão e multa.

  • O Banco Central distingue as modalidades de operações de crédito em: financiamento, empréstimo e títulos descontados, com destinação específica para os financiamentos.

  • A obtenção fraudulenta de outras operações de crédito, diferentes do financiamento, configura o crime de estelionato, sendo de competência da Justiça Estadual, conforme jurisprudência do STJ e TRFs.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O artigo analisa o bem jurídico protegido pelo artigo 19 da Lei nº 7.492/86, bem como do conceito de financiamento, elemento normativo do tipo, sua distinção com a figura do empréstimo e de outras operações de crédito, e das implicações na competência da Justiça Federal.

Resumo: o presente artigo trata da análise do bem jurídico protegido pelo artigo 19, da Lei nº 7.492/86, bem como do conceito de financiamento, elemento normativo do tipo, sua distinção com a figura do empréstimo e de outras operações de crédito, e das implicações na competência da Justiça Federal.

O artigo 19, da Lei nº 7.492/86, também conhecida como Lei dos Crimes do Colarinho Branco, cuida do crime de fraude para obtenção de financiamento junto à instituição financeira, nos seguintes termos:

"Art. 19. Obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira:

Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é cometido em detrimento de instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o repasse de financiamento."

Trata o tipo penal de crime especial em relação ao crime de estelionato (CP, art. 171), que deve prevalecer em razão do princípio da especialidade [01].


1. DO BEM JURÍDICO PROTEGIDO

, que instituiu o Plano Contábil das Instituições do Sistema Financeiro Nacional – COSIF, obrigatório para todas as instituições financeiras no Brasil.

Ao disciplinar as operações de crédito das instituições financeiras que integram o Sistema Financeiro Nacional, especificamente no item 1.6.1.2, da Circular nº 1.273/87, o Banco Central distinguiu as modalidades das operações de crédito em: financiamento, empréstimo e títulos descontados.

De acordo com o ato normativo mencionado: "Os financiamentos são as operações realizadas com destinação específica, vinculadas à comprovação da aplicação dos recursos. São exemplos os financiamentos de parques industriais, máquinas e equipamentos, bens de consumo durável, rurais e imobiliários".

Os empréstimos, por sua vez: "são as operações realizadas sem destinação específica ou vínculo à comprovação da aplicação dos recursos. São exemplos os empréstimos para capital de giro, os empréstimos pessoais e os adiantamentos a depositantes". Títulos Descontados "são as operações de desconto de títulos".

Verifica que o Banco Central, ao dispor sobre os exemplos de financiamentos, corretamente excluiu do seu conceito o mútuo realizado para a aquisição de qualquer bem ou serviço.

Com efeito, os bens de consumo duráveis são aqueles destinados ao desempenho da atividade econômica, como os maquinários que integram uma fábrica.

Já os bens rurais são aqueles necessários para o desenvolvimento da atividade agrícola, como tratores e insumos em geral.

Em relação aos bens imobiliários, devem ser compreendidos como aqueles necessários para o desenvolvimento de uma atividade econômica, por exemplo a aquisição de terrenos para a posterior instalação de indústria, o que revela seu caráter empreendedor.

Por outro lado, também são espécie de bens sujeitos à concessão de financiamento aqueles obtidos junto à Caixa Econômica Federal, por meio do Sistema Financeiro da Habitação, em mútuos concedidos para fins de atendimento ao direito fundamental à moradia (artigo 6º da Constituição Federal), cuja aquisição é fomentada pelo Estado e que se sujeita a uma análise de crédito que segue regras rigorosas para a disponibilidade financeira.

Nas hipóteses acima, os danos gerados pela fraude atingem a credibilidade do Sistema Financeiro Nacional em relação ao universo dos financiamentos concedidos de forma legítima, no mínimo desestimulando outros cidadãos a aderirem ao produto.

Nesse sentido é a lição de Fabio Ulhoa Coelho, que define e diferencia o financiamento "como sendo aquele mútuo bancário em que o mutuário assume a obrigação de conferir ao dinheiro emprestado uma determinada finalidade, como, por exemplo, investir no desenvolvimento de uma atividade econômica ou adquirir a casa própria" [10].

Por outro lado, os bens duráveis destinados ao mero consumo, tais como a aquisição de veículos, motos, microcomputadores etc., ainda que se denominem "financiamentos", na verdade são espécies de contratos de mútuos/empréstimos estritamente privados sem a presença do caráter empreendedor ou da atividade estatal de fomento, concedidos muita das vezes em terminais eletrônicos ou via internet, sem a observância de rigorosas cautelas.

Na verdade, a aquisição do bem é mera espécie de "commoditie" utilizada pelas instituições financeiras na intenção real de oferecer crédito a juros no mercado, sendo que o prejuízo decorrente da fraude atinge apenas o patrimônio privado delas, típico bem jurídico penal individual que merece ser tutelado pelos tipos penais do gênero "Crimes Contra o Patrimônio", incompatível, portanto, com a tutela penal do Sistema Financeiro Nacional exercida pelo artigo 19.

Nesse sentido é a lição de ANTÔNIO CARLOS RODRIGUES DA SILVA na análise do artigo 19, da lei nº 7.492/86, abaixo transcrita:

"Realmente, não pretendeu o legislador incluir no objeto material todos os empréstimos feitos pelas instituições financeiras, mas especificamente aqueles com destinação específica por serem operações de crédito vinculadas às diretrizes do Estado. Financiamento de natureza privada, feitos sem recursos do Estado ou recursos por ele administrados, mesmo obtidos mediante fraude do mutuário, não se subsumirão ao tipo em questão, podendo caracterizar ilícito civil ou penal definido em outro tipo." [11]

Conclui, assim, que o tipo penal do artigo 19, da Lei nº 7.492/86 só estará configurado com a obtenção fraudulenta junto à instituição financeira de financiamento, compreendido este como o contrato de mútuo com destinação específica e vinculação dos recursos, desde que realizado com finalidade empreendedora ou de fomento.

Conclui, ainda, que a obtenção fraudulenta de outras operações de crédito, diversas do financiamento, configura o crime de estelionato, da competência da Justiça Estadual.

A melhor Jurisprudência também caminha no mesmo sentido, conforme ilustram os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça: CC 37.187/RS, Rel. Ministro Paulo Medina, 3ª Seção, julgado em 08/11/2006, DJ 07/05/2007 p. 275 e CC 18959/SP, Rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, 3ª Seção, julgado em 09/04/1997, DJ 25/08/1997 p. 39294.

Confira, ainda, as seguintes ementas dos julgados dos Tribunais Regionais Ferais: ACR Nº 2004.04.01.012589-3/PR, TRF 4ª Região Rel. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, decisão de 14/11/2005 [12]; e ACR Nº 2007.51.01.802486-9/RJ, TRF 2ª Região – 1ª Turma -Rel. Des. Federal Abel Gomes, decisão de 23/07/2008 [13].

3.1. CASUÍSTICA

Passa a se analisar o tratamento conferido pela Jurisprudência aos diversos tipos de contratos bancários que não possuem a natureza jurídica de financiamento.

O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre a fraude em contrato de "leasing" bancário, no sentido de que configura crime de estelionato, e não o crime previsto no artigo 19, da Lei nº 7.492/86, pois o "leasing" ou arrendamento mercantil substitui o financiamento e com ele não se confunde [14].

A falsificação de duplicatas para garantir a concessão de empréstimo também configura estelionato de competência da Justiça Estadual, pois não se trata de financiamento [15].

A concessão de empréstimo sem finalidade vinculada, mediante restrições (novação de dívida e forma de depósito), obtida por meio fraudulento, não configura o crime do artigo 19, mas sim estelionato da competência da Justiça Estadual [16].

Por fim, a abertura fraudulenta de conta corrente com a concessão de empréstimo pessoal na modalidade "cheque especial" configura estelionato de competência da Justiça Estadual, pois a obtenção fraudulenta do crédito desvinculado de finalidade não se trata de financiamento [17].

Em todas as espécies de mútuos acima mencionados não há a destinação vinculada dos recursos e nem a finalidade empreendedora ou de fomento, o que afasta a configuração do crime do artigo 19, da Lei nº 7.492/86.

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Notas

  1. PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro. São Paulo: RT, 1987, pp. 144/146.
  2. TÓRTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.124, e COSTA JR., Paulo José; MACHADO, Charles M.; QUEIJO, Maria Elizabeth. Crimes do Colarinho Branco. 2º Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 129.
  3. "Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;"
  4. FELDENS, Luciano; SCHMIDT, Andrei Zenkner. O CRIME DE EVASÃO DE DIVISAS: A Tutela Penal do Sistema Financeiro Nacional na Perspectiva da Política Cambial Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 159.
  5. "Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) VII - política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores;"
  6. Art. 21. Compete à União: (...) VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;
  7. "Artigo 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado."
  8. "Artigo 4º. Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República: (...) VI – disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações creditícias em todas as suas formas, inclusive aceites, avais e prestações de quaisquer garantias por parte das instituições financeiras;"
  9. "Artigo 10. Compete privativamente ao Banco Central do Brasil:(...);

    VI – exercer o controle do crédito sobre todas as suas formas;"

  10. DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª edição, São Paulo: Atlas, p. 403.
  11. ULHOA, Fabio Coelho. Manual de direito comercial. 13ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 457.
  12. DA SILVA, Antônio Carlos Rodrigues. Crimes do Colarinho Branco. Ed. Brasília Jurídica, 1999, p.145.
  13. "PENAL. COMPETÊNCIA.
  14. PERPETUATIO JURISDICIONIS. RÉUS DENUNCIADOS COMO INCURSOS NO ART. 19 DA LEI Nº 7.492/86. ALCANCE DO TERMO ‘FINANCIAMENTO’. DESCLASSIFICAÇÃO PARA ESTELIONATO. AUSÊNCIA DO ELEMENTO ‘FRAUDE’. ABSOLVIÇÃO.

    Segundo a doutrina comercialista, financiamento’ é mútuo com finalidade vinculada, não estando abrangido em seu campo conceitual o contrato de ‘mútuo simples’, assim entendido aquele desprovido de qualquer finalidade empreendedora. Dessarte, a obtenção, mediante fraude, de empréstimo’ em instituição financeira, sem que o mutuário se obrigue a dar ao dinheiro finalidade específica (desenvolvimento de atividade econômica, aquisição de casa própria etc.), caracteriza, em tese, o

    crime de estelionato, e não aquele previsto no art. 19 da Lei que define os Crimes contra o SFN.

    A desclassificação (emendatio libelli) operada quanto aos delitos que atrairam, inicialmente, a competência da Justiça Federal não terá o condão de modificá-la, tendo em vista o que dispõe o art. 81 do CPP, que assegura a perpetuatio jurisdicionis.

    Inexistindo provas substanciais no sentido de que os acusados tenham agido fraudulentamente na concessão/obtenção de empréstimo junto à instituição bancária, impõe-se a manutenção do decreto absolutório." (grifos inseridos)

  15. "PENAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. DISTINÇÃO FINANCIAMENTO E EMPRÉSTIMO. DESCLASSIFICAÇÃO. ESTELIONATO. BANCO DO BRASIL. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.I - Falsificação de documentos para abertura de contas bancárias junto à sociedade de economia mista e obtenção de disponibilidade financeira na modalidade "crédito direto ao consumidor".II - Financiamento não é sinônimo de empréstimo; empréstimo é gênero do qual financiamento é espécie; este cercado de formalismo e dirigido a subsidiar determinadas atividades empreendedoras possuindo destinação vinculada enquanto no empréstimo a destinação é livre e a garantia é acessória. Resultado dessa distinção; empréstimos em geral e financiamentos de natureza privada, feitos sem recursos do Estado ou recursos por ele administrados, mesmo obtidos mediante fraude do mutuário, não se subsumirão ao tipo do art. 19 da lei n.º 7492/86, mas sim ao art. 171 do CP, pois não afligem o sistema financeiro na sua unidade.III - No contrato de crédito direto ao consumidor há crédito rotativo feito diretamente em conta corrente ao qual o correntista tem acesso até mesmo através de contratação por meio eletrônico. A simples indicação do bem ou serviço que se pretende adquirir ou contratar, não retrata destinação que possa configurar financiamento propriamente. Contrato assemelhado a empréstimo destinado à compra de bens e serviços sem qualquer caráter empreendedor, intenção de facilitar aquisição de bens de consumo IV - Acolhida preliminar para desclassificar a conduta para o crime de estelionato e reconhecer a incompetência da Justiça Federal para apreciar a matéria. Anulado o feito ab initio e determinada a remessa dos autos à Justiça estadual." (grifos inseridos)
  16. STJ – 6ª Turma – HC 31530/SC, Rel. Ministro Paulo Medina, julgado em 15/09/2005, DJ 03/10/2005 p. 334.
  17. STJ – 3ª Seção - CC 18959/SP, Rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, julgado em 09/04/1997, DJ 25/08/1997 p. 39294.
  18. TRF4 – 8ª Turma - RSE 2003.04.01.01334-7/PR – Rel. Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, 17/09/03.
  19. STJ – 3ª Seção - CC 65074/MG, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal Convocado), julgado em 24/10/2007, DJ 14/11/2007 p. 421.
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Sobre o autor
Milton Fornazari Junior

Delegado de Polícia Federal em São Paulo (SP), Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e Mestre em Direito Penal pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FORNAZARI JUNIOR, Milton. Da distinção do financiamento das demais operações de crédito para fins da configuração do crime previsto no artigo 19 da Lei nº 7.492/86. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2222, 1 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13235. Acesso em: 22 dez. 2024.

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