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Fumódromo: limites de ação dos programas de controle do tabagismo no meio ambiente do trabalho

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25/02/2010 às 00:00
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CONTROLE DAS VONTADES E COMPORTAMENTOS

O controle das vontades e comportamentos, pelo poder público e pelo setor privado, envolve angustiantes questões éticas resultantes do conflito entre o exercício do poder, os condicionamentos sociais e a autodeterminação do indivíduo.

Nas relações de emprego, o estado de sujeição a que a trabalhadora e o trabalhador têm sido condicionados, historicamente, aprofunda essa problemática e mostra a necessidade de discussão acerca dos limites do poder diretivo.

Numa sociedade que se quer democrática, entes estatais e empresas não podem atuar como instituições totalitárias: o poder público tem que ouvir as pessoas envolvidas para atender às necessidades coletivas com atenção aos direitos individuais; a propriedade privada só se legitima na medida em que se projete para uma função social.

Na expressão cunhada por UMBERTO ECCO, aqui referida com base em meus quadros de memória, a ética nasce quando o outro aparece.

A perspectiva do outro como sujeito, em suas múltiplas dimensões, mas ainda assim uno, inteiro e indiviso, com necessidades vitais que compartilha com os animais (sede, sono, fome e apetite sexual), mas também características próprias de sua condição humana, com qualidades que o distingue pela capacidade criativa, intelectual, transformadora e de adaptação, necessidade de transcendência, de relação social e com o meio em que vive, traz a lume a dignidade que detém a pessoa humana.

A trabalhadora e o trabalhador não perdem, quando ingressam no parque fabril, sua condição de pessoa livre e ser pensante, de cidadã e cidadão. Não podem, por isso, ser considerados como mero alvos de programas de saúde instituídos em seu meio ambiente de trabalho.

E diga-se: a implantação de um programa de saúde no meio ambiente do trabalho, que circunde questões comportamentais atreladas à dependência química, tem, necessariamente, que antes verificar as condições concretas de cada local de trabalho e ser precedido de consulta às pessoas envolvidas.

Transformar a trabalhadora e o trabalhador em pacientes importa destituí-los da sua condição de sujeito.

Equacionar a promoção à saúde física e mental com a autodeterminação do indivíduo, em questão que envolve comportamento, remete o tema às medidas educativas com participação ativa dos sujeitos implicados e dos seus órgãos de representação sindical.

Aliás, é nesse sentido que a Convenção-Quadro aponta quando refere que toda a pessoa deve ser informada sobre as conseqüências sanitárias, a natureza aditiva e a ameaça mortal imposta pelo consumo e a exposição à fumaça do tabaco (art. 1º).


SITUAÇÃO DE FATO

Importante destacar que o que está posto em análise não é a autodeterminação do indivíduo em fumar ou não fumar. Isso está resolvido por não ser proibido fumar em nosso País (CRFB, 5º, II).

Discute-se, aqui, os limites do cerco inibitório promovido pela saúde pública à escolha por fumar, manifesto na restrição de fumo em lugares que não afetariam outras pessoas não-fumantes, com o inegável objetivo de restringir o uso do tabaco pela abstinência a que fica sujeita a pessoa que fuma.

A ciência médica aponta o tempo de oito horas, por ser esse o período de sono em que normalmente não se fuma, como limite de tolerância antes ser iniciada a crise de abstinência.

Porém, é de se ponderar a distinção entre as sensações: a pessoa fumante, quando está em atividade, durante todo um dia de trabalho, sofre angústia pela abstinência do cigarro pelo simples fato de estar desperta, diferentemente da condição experimentada em seu período de sono.

Por isso, novamente registro, tem-se de ter atenção para que as medidas de controle ao tabagismo não excedam os limites de abstinência suportável durante a jornada de trabalho a que a pessoa está submetida, já que o tabagismo é uma doença.

Para avaliar a situação concreta a que estão condicionados as empregadas e os empregados fumantes da WETZEL, a partir da implantação do Programa de Controle do Tabagismo, foi realizada inspeção judicial nas três unidades fabris da empresa, com a verificação do processo produtivo e contagem do tempo de deslocamento dos empregados, da saída do posto de trabalho até o portão da fábrica, onde então seria possível fumar (fora do parque fabril).

Constatou-se que o tempo médio de deslocamento representa, no máximo, tendo em conta o local de trabalho mais distante do portão da fábrica, metade do período do intervalo para descanso, que é de 10min, isto é, o fumante gasta no máximo 5min, somando ida e volta, para se deslocar até o portão da fábrica. Resta-lhe, portanto, 5min para fumar e para tudo o que desejar fazer em seu intervalo para descanso.

Esses dados permitiram ver que, na situação concreta, se o fumante desejar fumar, poderá fazê-lo, ainda que com prejuízo da metade do seu tempo de intervalo, gasto no deslocamento do seu posto de trabalho até sair fora do parque fabril, comprometendo o desfrute de outras coisas no período de descanso. Portanto, as condições de fato não impõem a abstinência ao fumante, durante toda a jornada de trabalho, mas apresentam a ele – como condição desfavorável ao fumo – o tempo gasto com deslocamento, além, é claro, da segregação, já que poderá fumar apenas fora do parque fabril.


ESCLARECIMENTO E CONSULTA

O caráter educativo que orienta a Convenção-Quadro e a esfera de direitos individuais e coletivos que são atingidos pela implantação do Programa de Controle do Tabagismo no parque fabril reclamam sejam inseridos no debate todas as pessoas envolvidas.

Para isso, no caso concreto, foi realizado um amplo processo de esclarecimento e consulta às trabalhadoras e aos trabalhadores, contemplando as três unidades fabris, nos três turnos de trabalho.

O processo de esclarecimento teve início com a distribuição de três notas explicativas, no Dia Nacional de Combate ao Fumo, para cada trabalhadora e trabalhador, nas quais o Juízo explicou a questão debatida e as partes fizeram as defesas de suas teses.

Na sequência, foi realizada a exposição oral da questão, em reuniões plenárias nos locais de trabalho, em cada um dos turnos, com explanação desta Magistrada e dos representantes do Sindicato e da WETZEL, contando, ainda, com a participação colaborativa da médica pneumologista, Dr.ª MARIA JÚLIA ALVES COIMBRA KREIN, em todas as etapas.

Concluídas as inspeções judiciais e o processo de esclarecimento, foi feita consulta às trabalhadoras e aos trabalhadores, que responderam às seguintes perguntas, nas opções "sim", "não", "branco", "nulo", sobre se deveria haver fumódromo na empresa?; você fuma?; você participou do programa de controle ao tabagismo? Na sequência foram apurados os votos.

Na votação ao quesito "deve haver fumódromo na empresa", quase dois terços (2/3) dos trabalhadores responderam "não" ao fumódromo. Foram 1.128 votantes: 669 disseram "não"; 430 responderam "sim"; havendo 29 votos brancos e nulos (menos de 2,6%). Desses, 196 se declararam fumantes. A abstenção foi mínima, ainda que facultativo o voto, e muitas das ausências foram justificadas por férias ou licença médica.


PARTICIPAÇÃO CIDADÃ DAS TRABALHADORAS E TRABALHADORES ENVOLVIDOS

A difícil discussão acerca de interesses comuns e escolhas individuais, em tema inerente à saúde pública e de interesse humano geral, mostra como é necessário realizar o resgate da participação cidadã das trabalhadoras e dos trabalhadores em torno de uma decisão que irá atingi-los diretamente, no seu cotidiano e no seu ambiente de trabalho.

Por conta disso, no caso em análise, para a solução do conflito entre a eliminação do fumo no parque fabril e a reivindicação sindical em prol dos direitos individuais dos fumantes, foi imprescindível o deslocamento do eixo de decisão para a coletividade diretamente atingida, não sem antes se realizar uma minuciosa verificação das condições reais impostas aos fumantes, seguida de um amplo processo de esclarecimento e debates sobre todas essas questões até aqui expostas, relativas ao fumo, a fim de se qualificar a capacidade deliberativa.

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E por que esse deslocamento do eixo de decisão?

A dimensão coletiva dos conflitos em questões ainda não sedimentadas apresenta o desafio de se buscar soluções de caráter metajurídico para o alcance de uma decisão com amplitude suficiente para contemplar o máximo possível de efetividade das garantias constitucionais, o que se perderia em riqueza de compreensão nos estreitos limites de uma decisão individual, resultante dos aspectos vistos a um só olhar, distanciado da dinâmica de vida e trabalho das pessoas diretamente envolvidas.

Note-se que até pouco tempo atrás eram os não-fumantes que buscavam fosse delimitado um lugar específico para o fumo, a fim de se protegerem. E agora se discute a reivindicação dos fumantes de terem um fumódromo dentro do parque fabril, na defesa do direito de escolha de fumar sem ser segregado.

Na lição de LUÍS ROBERTO BARROSO, não há efetividade possível da Constituição sem uma cidadania participativa. Em sua obra, O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, o autor escreve:

Veja-se que a ordem jurídica, como já afirmamos em outro estudo, na generalidade das situações, é instrumento de estabilização, e não de transformação. Sem deixar de reconhecer-lhes um ocasional caráter educativo, as leis, usualmente, refletem – e não promovem – conquistas sociais longamente amadurecidas no dia-a-dia das reivindicações populares.

Assim é que, sem abandonar o modelo representativo, outras formas de intervenção vêm sendo estudadas e positivadas, com o fito de viabilizar manifestações de pessoas e entidades que não tomam parte no governo, mas que se pronunciam, por via institucionalmente disciplinada, nos processos decisórios, tanto os de cunho restrito e específico, quanto os que assumem caráter mais amplo e geral. Há, por assim dizer, um retorno à utilização de certos institutos ligados à prática da democracia direta, configurando um sistema híbrido, que muitos autores denominam de participação semidireta. (Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 127, 130)

A necessidade de construção de espaços democráticos de deliberação coletiva, como afirmação da democracia participativa e desprendimento da forma impregnada de concentração de poder, impôs, no caso concreto, integrar as trabalhadoras e os trabalhadores nos debates e na deliberação da questão relativa a ter ou não fumódromo no parque fabril, porque a trabalhadora e o trabalhador têm que ser sujeito da relação, e não objeto alvo de algum programa – por melhor que seja e se apresente esse programa.

A decisão das trabalhadoras e dos trabalhadores legitimou o Programa do Ministério da Saúde, de Controle do Tabagismo, implantado pela WETZEL, ao dizer "não" ao fumódromo.

Essa posição não implica violação aos direitos individuais da pessoa de decidir sobre fumar e expressar essa sua escolha, dadas as condições concretas que apresentam uma alternativa ao fumante: usar metade do tempo de seu intervalo no deslocamento até o portão da fábrica, para fumar.

Um sacrifício razoável para quem está dinamitando a própria vida.

A decisão representa a opção das trabalhadoras e dos trabalhadores pela política de saúde pública, que propõe limitações ao exercício dessa vontade, de modo a inibir o consumo de cigarros, porque letal à saúde humana.

A trabalhadora e o trabalhador têm um saber naquilo que fazem e não estão alheios às condições de trabalho a que estão submetidos. Conhecem a realidade sua e de seus colegas. Sabem que se adoecer vão cair no desalento do precário sistema público de saúde. Também sabem que perderão o emprego se não produzirem além do que sua mão-de-obra custa para o empregador. E, mais do que isso, sabem que dependem de seu trabalho para prover seu sustento.


Nota

  1. Registro agradecimentos ao Dr. FELIPE ARTHUR WINTER, Ex.mo Juiz do Trabalho em Joinville-SC, e às servidoras MARIA ISABEL WOITOWICZ DE ALMEIDA e ANA PAULA HOSTIM RABELLO DE AGUIAR, que acompanharam as inspeções judiciais e os procedimentos de esclarecimento e consulta; à Dr.ª MARIA JÚLIA ALVES COIMBRA KREIN, médica pneumologista engajada no Programa de Controle do Tabagismo, que participou ativamente de todas as etapas de esclarecimento; aos professores Dr. HERVAL PINA RIBEIRO, Dr. NELSON PASSAGEM VIEIRA e Dr. CLEBER DE PAULA, do Curso de Extensão – Adoecimentos e Doenças Contemporâneas do Trabalho, da Escola de Saúde Pública, CEREST, pelos debates e as excelentes bibliografias repassadas sobre o tema. Registro especiais agradecimentos às trabalhadoras e aos trabalhadores que voluntariamente se dispuseram a participar de todo o processo de esclarecimento e consulta.
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Sobre a autora
Angela Maria Konrath

Juíza do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KONRATH, Angela Maria. Fumódromo: limites de ação dos programas de controle do tabagismo no meio ambiente do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2430, 25 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14408. Acesso em: 23 abr. 2024.

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