IV FERDERC, globalização econômica e União Européia: cooperação internacional e a construção de alianças com órgãos supranacionais
Outra faceta relevante da atuação da FERDERC nos últimos anos é a importância que o órgão assumiu no cenário internacional. A participação ativa em grupos como o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) e a Unidade de Cooperação na Luta Antifraude (UCLAF), e a colaboração direta para implementar formas de cooperação entre os sistemas de justiça, conforme o tratado de Schengen [16], possibilitaram aos membros da FERDERC o desempenho de funções pouco comuns aos membros do MP espanhol (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 1998, p. 153).
O processo de unificação européia acarretou mudanças profundas no contexto social e político dos países envolvidos. A necessidade de um ordenamento jurídico adequado para a nova realidade supranacional impulsionou a regulamentação de áreas que antes estavam reservadas ao espaço de soberania dos países-membros. A criação de um sistema de justiça adequado ao novo contexto é um processo paulatino e ainda em construção. O interesse em se criarem mecanismos que possibilitem mais cooperação entre autoridades judiciais, procedimentos mais eficientes (além do reconhecimento mútuo das decisões) e legislação harmônica com a nova realidade política e social levou, no início da década de 90, por proposta do chanceler alemão Khol, à criação da Unidade Européia de Cooperação Judicial (EUROJUST). No processo de constituição de um futuro "espaço judicial europeu", foi instituída a EUROPOL em 1999, órgão responsável pela informação e pela análise de dados, sem atribuições policiais operativas.
A idealização de um MP europeu decorreu de fatores concretos. A partir dos serviços prestados pela chamada Comissão DG 21, foi criticada a lentidão dos métodos intergovernamentais tradicionais de cooperação no âmbito penal, considerados ineficientes para a defesa dos interesses financeiros da comunidade. A partir desse informe, foi criada comissão de juristas coordenada por Mireille Delmás-Marty que, em 1996, apresentou proposta para harmonizar o direito penal e o processual-penal (Corpus Juris), prevendo-se a figura do MP europeu (European Public Prosecutor), auxiliado por um adjunto em cada país (Nilsson, 2001) [17].
Idealizado para o combate à fraude aos interesses da União Européia, o MP europeu ainda não foi implementado. Embora já elaborado documento que define as diretrizes e os princípios do órgão, dificuldades práticas teriam impossibilitado a concretização da nova figura. Na prática, a solução temporária se dá com a coordenação dos Ministérios Públicos nacionais para a persecução de práticas nocivas aos interesses comunitários, papel assumido inicialmente pela UCLAF, órgão sucedido pela European Anti-Fraud Office (OLAF) (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 1997, p. 147; Bruti Liberati, 2000, pp. 117-119). Na Espanha, a FERDERC é um dos principais colaboradores do órgão (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 1999). Além de agente responsável pela coordenação do que é descrito como "luta" contra a fraude, a extinta UCLAF também foi fonte importante das investigações iniciadas pela FERDERC (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 1998; Memoria de la FERDERC correspondiente al año 1999). As atividades desempenhadas na defesa dos interesses comunitários englobam a persecução penal de práticas diversas, desde o contrabando de produtos até a utilização fraudulenta de subsídios da União Européia, entre outras (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 1999).
Outra faceta importante na interação com organizações internacionais foi o papel desempenhado nas comissões instituídas em países do Leste europeu que se candidatam a integrar a União Européia. Na Romênia e na Eslováquia, os promotores participaram dos convênios de Hermanamiento [18] (Camaradagem) (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 2002). O assessoramento poderia ser sintetizado em dois planos: institucional e pessoal. O objetivo do programa era, assim, a formação prática de juízes e promotores de justiça, economistas e funcionários do Estado. Promotores e demais integrantes da Promotoria Especial passaram também a assessorar anteprojetos de futuras leis que regulam aspectos penais e processuais relacionados a delitos econômicos e corrupção. Alguns dos integrantes da FERDERC participaram de programas de avaliação das instituições desses países. Uma das conseqüências desse trabalho se reflete na proposta de criação de promotorias de justiça especializadas no combate à corrupção na Romênia e na Eslováquia, com clara inspiração no modelo espanhol.
Na descrição de experiências adquiridas com as novas tarefas assumidas, promotores de justiça e funcionários das unidades da FERDERC elogiam a existência de objetivos comuns com atores que integram organizações desses países. Na troca de experiência com promotores de justiça, juízes e funcionários da administração pública da Romênia, aparece muitas vezes nos relatos a dificuldade na implementação de grupos multidisciplinares contra a delinqüência econômica e a corrupção. Um dos promotores de justiça menciona a existência de antigos ciúmes e receio em compartilhar informações.
O papel dos meios de comunicação também surge na descrição da experiência na Romênia, onde a desconfiança mútua entre jornalistas e atores do sistema de justiça teria se revelado um obstáculo importante no que é representado constantemente como "luta" contra a corrupção (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 2002, pp. 109-110). Alguns dos escândalos políticos envolvendo personalidades do poder político muitas vezes surgiam a partir de notícias divulgadas por jornalistas. A falta de sintonia da imprensa com a Polícia, juízes e promotores de justiça constituía-se, contudo, em obstáculo para que os casos fossem posteriormente aprofundados. Em síntese, as más relações impediriam alianças que poderiam interessar para um caso determinado.
A necessidade de instrumentos para regular os novos espaços criados com a globalização e o processo de unificação de mercados gera, em determinados contextos, conflitos com elites nacionais e interesses concretos de grupos políticos e econômicos. A avaliação negativa emitida pelo GRECO sobre o governo espanhol, em 2002, evidencia parte dos interesses contraditórios que vêm à tona quando se pretende implementar determinadas medidas nos Estados-nacionais. O grupo, constituído em outubro de 1999, sob a coordenação do Consejo de Europa, Resolução n. 5, de 1º de maio de 1999 [19], foi o ponto de partida para o estabelecimento de controles mútuos entre os Estados-membros. O objetivo é, pela criação de mecanismos de controle recíproco, efetivar a implementação de instrumentos jurídicos eficazes contra a corrupção.
Na avaliação da Espanha, a equipe do GRECO foi integrada pelo procurador-geral alemão, Norbert Jansen, pelo chefe da unidade de supervisão de investigação na Inspeção Geral de Aduanas da Polônia, Jakub Farinade, e pela integrante do MP irlandês, Ruth Fitzgerald. Na visita realizada entre os dias 6 e 8 de novembro de 2000, os integrantes se reuniram com diferentes funcionários de órgãos estatais, incluindo-se promotores e funcionários das unidades da FERDERC (Informe de Evaluación Sobre España, Greco, 2002, p. 25). A visão negativa dos membros da Promotoria Especial sobre o discurso do governo espanhol em relação à corrupção, retratado como retórica política, reflete-se no relatório final. De fato, o relatório veiculado em 2002 critica o desempenho da Espanha em relação às políticas de combate à corrupção (Informe de Evaluación Sobre España (Greco), 2002, pp. 54-55).
O relatório menciona, ainda, o menor grau de independência do MP comparado ao Judiciário, decorrente do sistema de nomeação do procurador-geral (González Aznar, 2002, p. 8). O sistema hierárquico agravaria a dependência do Executivo em razão do poder do procurador de dar instruções ao membro encarregado de um determinado assunto, além da dependência orçamentária em relação ao Ministério de Justiça. A possibilidade de o juiz de instrução prosseguir as investigações e o fato de que existe na Espanha a ação penal popular teriam o efeito de minorar eventuais influências do governo (Informe de Evaluación Sobre España. Greco, 2002, p. 54). Nos relatos sobre a interação com os órgãos criados para o combate à delinqüência econômica e à corrupção, o relatório do GRECO é mencionado como paradigmático da distância entre o discurso oficial do governo espanhol, que se declara empenhado em implementar medidas contra a corrupção, e suas práticas efetivas. Se, nos relatos de alguns dos integrantes da FERDERC, o governo espanhol muitas vezes aparece como adversário para o desempenho das atividades do órgão, organizações como o GRECO, a extinta UCLAF e a OLAF são descritas como importantes aliadas.
No âmbito de controle transnacional do delito emergem novas formas de interação entre as instâncias encarregadas da repressão penal. O fortalecimento de uma ideologia de cooperação transnacional decorre de uma nova compreensão sobre o papel desempenhado pelos atores que integram diferentes agências de controle. Surgem, assim, novas interações entre atores e organizações, bem como a difusão de novas metodologias de trabalho (Capeller, 1997, pp. 76-78). Os promotores que integram a FERDERC interagem nesse cenário a que faço referência. Entre os promotores entrevistados predomina o discurso favorável à cooperação internacional. Nos relatos é constante a menção à impossibilidade de afrontar a delinqüência econômica e a corrupção de dimensões transnacionais com os instrumentos jurídicos do Estado-nação. A constituição, assim, de laços com atores que integram organizações multinacionais é parte da estratégia para alcançar os objetivos estabelecidos para a Promotoria Especial.
A partir do marco teórico proposto por Croizier e Friedberg, utilizo alguns conceitos que considero relevantes para análise do caso: o fato de o ator se tornar um experto, as relações do indivíduo com seu entorno, o domínio da informação e da comunicação ensejam maior margem de atuação dentro da organização. O indivíduo que disponha dessa habilidade participará de diversos Sistemas de Ação Concretos, na medida em que poderá atuar como intérprete de lógicas de ação diferenciadas (Croizier e Friedberg, 1992, pp. 83-86).
A proximidade dos promotores de justiça da FERDERC com integrantes de órgãos supranacionais permitiria, também, potencializar as críticas sobre o que é avaliado como restrição ao poder investigatório da Promotoria Especial. Na terminologia bourdieuna, os promotores que integram essas redes de relações com outras organizações disporiam de maior capital social (Bourdieu, 2001). Além disso, a pressão dos partidos de oposição e a repercussão nos meios de comunicação constituir-se-iam em estratégia para se contrapor às limitações impostas. Com isso, aparentemente, também se pretende levar à comunidade internacional as dificuldades institucionais existentes e o desinteresse do governo espanhol em conferir meios materiais e institucionais para atuação da FERDERC. Em outras palavras, busca-se criar ambiente favorável ao incremento da autonomia do órgão.
Assim, emerge uma das contradições propiciadas pela constelação de interesses que surgem com a formação da União Européia. A defesa dos interesses europeus justifica a adoção de formas de controle e repressão a fraudes que possam atingir os interesses comuns. Internamente, contudo, em cada Estado-membro, persistem interesses que se chocam com a retórica internacional. Os membros da FERDERC parecem mover-se nesse contexto mais amplo. No âmbito internacional constrói-se a imagem de um órgão especializado na repressão de práticas (delitos econômicos relacionados à corrupção) extremamente complexas. Internamente, contudo, os objetivos de parte dos integrantes da Promotoria especializada se chocam, muitas vezes, com fortes interesses econômicos e potenciais aliados do governo.
V Desempenho das atividades, organização interna e dependência hierárquica: percepções dos promotores de justiça da FERDERC
Os promotores de justiça lotados na FERDERC desenvolvem várias frentes de trabalho. Além da atuação tradicional perante os juizados de instrução e, posteriormente, na chamada vista oral, perante o tribunal competente para o julgamento, o aspecto mais relevante no desempenho da Promotoria Especial se relaciona à investigação de fatos caracterizados por grande complexidade.
O início da atividade de investigação surge, na grande maioria dos casos, de alguma irregularidade que constata a AEAT, como um depósito bancário de uma quantia não declarada, alguma transação irregular ou outra atividade mercantil que acarrete prejuízo para o patrimônio público. O acesso a um completo banco de dados que propicia informações de natureza fiscal, bancária e mercantil é um instrumento de grande relevância em todas as fases de atuação dos integrantes do órgão. As operações bancárias passaram, também, a ser objeto de controle mais efetivo nos últimos anos, dado que as instituições financeiras e empresariais estão obrigadas a informar ao Servicio Ejecutivo de la Comisión Nacional del Blanqueo de Capitales sobre operações suspeitas de lavagem de dinheiro.
As diligências de investigação podem se originar de razões diversas, conforme relatam alguns dos promotores de justiça. Um sócio que deixa uma empresa e quer prejudicá-la, um anônimo que denuncia alguma atividade ilícita e até mesmo um trabalhador que foi demitido pela empresa e se sente motivado a denunciar atividades ilícitas da empresa. Os casos de corrupção aparecem muitas vezes por iniciativa dos partidos políticos.
Nos relatos de alguns dos promotores de justiça é ressaltado o papel dos órgãos responsáveis por remeter à FERDERC as informações necessárias para se iniciar uma investigação. Os meios de comunicação também são mencionados. Embora a maioria dos casos não seja iniciado por notícia veiculada pelos meios de comunicação, o papel da imprensa é retratado como importante. Nos relatos de alguns dos entrevistados aparece o que foi na Espanha o jornalismo investigativo.
Uma vez definida a atribuição da Promotoria de Justiça especial, o chefe designa um promotor de justiça para coordenar a investigação, o qual passa a examinar o assunto. Na prática, a imagem é a de que há bastante autonomia na definição diária das diligências a serem realizadas para o esclarecimento de um fato determinado.
O anterior promotor-chefe, Carlos Jiménez Villarejo, manifestou reiteradamente, nos relatórios anuais da FERDERC (1997-2002), perante os meios de comunicação e em revistas especializadas, sua constante preocupação com a corrupção e com a delinqüência econômica. Na interpretação que faz desses fenômenos, semelhante à exteriorizada na Instrução n. 1/1996 da Procuradoria-geral, opta por conceitos amplos. Incorpora, por exemplo, o conceito de corrupção do Consejo de Europa: "(...) aquela conduta que se desvia dos deveres normais de uma função ou cargo público por razões pessoais, patrimoniais ou status (...)" (Jiménez Villarejo, 2001, p. 18). O conceito de abuso do poder econômico que adota Villarejo está relacionado às ofensas ao modelo de "constituição econômica formal", que prega "(...) uma ordem econômica e social justas" (Jiménez Villarejo, 2001, p. 19). Segundo Villarejo, a corrupção gera formas de criminalidade organizada e estimula a prática de delitos conexos como a lavagem de dinheiro, envolvendo normalmente funcionários que ocupam cargos relevantes no sistema político e econômico. Apesar do discurso que prega o controle de tais práticas, critica Villarejo que a comunidade internacional aceite pacificamente a existência dos chamados paraísos fiscais.
Sobre as causas da corrupção na Espanha, Villarejo menciona a crescente intervenção do Estado na economia, negligenciando formas de controle sobre a atuação de políticos e administradores públicos. Além disso, o insuficiente regime de incompatibilidades entre as atividades pública e privada teria ensejado o uso de informações privilegiadas e o tráfico de influências. Outros fatores completariam o quadro: é praticamente inexistente a denúncia pelos órgãos de controle da administração pública de eventuais atos delituosos; se as instituições de controle não funcionam ou atuam de forma deficiente, estimula-se a corrupção e o ceticismo dos cidadãos em denunciar delitos dessa natureza. Essas práticas, sustenta Villarejo, deveriam ser sancionadas penalmente, já que contrárias à probidade na administração pública, contra o consumidor e a liberdade de mercado.
A resposta penal, contudo, não é a arma principal. Deveriam ser implementados mecanismos de controle sobre o financiamento dos partidos, a contratação pública e o exercício da função pública. Deveriam, também, ser criadas formas de impedir o monopólio do mercado, protegendo-se os consumidores. Em síntese, antes do "controle penal", seriam necessários processos preventivos eficientes, já que exclusivamente com o direito penal seria impossível erradicar a corrupção e a delinqüência econômica (Jiménez Villarejo, 2001) [20][21].
Nos relatos dos promotores e dos funcionários entrevistados, a delinqüência econômica aparece como a grande tarefa a ser enfrentada pela Promotoria especializada. De fato, os delitos econômicos, especialmente os crimes fiscais, representam a grande maioria dos assuntos investigados. A definição do que seja o white-collar crime (crime de colarinho branco) suscita debates na comunidade acadêmica (criminologia) (Sutherland, 1940, 1945; Nelken, 1994; Shapiro, 1994). O conceito surge também nos relatos de alguns dos entrevistados sobre a atividade desempenhada na Promotoria Especial. O ponto comum com o conceito de Sutherland aparece na referência aos delitos praticados por pessoas das camadas privilegiadas da sociedade e ao modo de atuação dos criminosos: por meio da empresa (ocupação) e de forma organizada (organização).
Entre os integrantes da Promotoria Especial, a modalidade de delitos que se busca reprimir, normalmente associados à criminalidade de colarinho branco, gera sentimento de repulsa. Ao contrário da criminalidade tradicional (de la calle), os delitos econômicos (relacionados à corrupção) não estão vinculados a situações de necessidade econômica ou dificuldades sociais. A imagem das pessoas envolvidas com as práticas investigadas está associada normalmente ao político ou ao empresário com grande poder econômico, que age por ganância e desprezo aos compromissos sociais relacionados ao modelo de Estado Social de Direito.
O perfil do delinqüente típico nos atos dessa natureza aparece como fator que teria motivado um dos integrantes a optar pela Promotoria Especial. A sensação de que a FERDERC desempenha um papel importante no combate à impunidade desses delitos teria sido, assim, um estímulo importante. Apesar da morosidade da justiça, o elevado índice de condenação por práticas que até então não recebiam atenção do sistema penal é motivo de elogios de alguns dos entrevistados. Assim, o sentimento de que houve diminuição da impunidade teria efeito exemplar, já que reforçaria a função preventiva da pena (prevenção geral).
Alguns dos relatos coincidem com a preocupação exteriorizada nos relatórios anuais da FERDERC [22]. Nos últimos anos, alguns dos temas recorrentes foram as operações financeiras por meio das quais entidades com filiais em "paraísos fiscais" estimulam a evasão de divisas e fraudes fiscais. Essas empresas seriam criadas especialmente nesses locais com a finalidade de facilitar a burla ao fisco espanhol, não se excluindo a sua utilização para lavagem de dinheiro [23] (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 2002). O promotor-chefe chegou, inclusive, a propor alternativas que poderiam facilitar o controle das operações financeiras.
A lavagem de dinheiro foi também uma preocupação recorrente (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 2002, p. 130). Nos relatórios anuais, o promotor-chefe descreveu parte dos mecanismos usados nas operações ilegais, reforçando-se a necessidade de propiciar aos órgãos estatais de controle (especialmente ao Servicio Ejecutivo de la Comisión de Prevención de Blanqueo de Capitales e Infracciones Monetarias, SEPBLAC) os recursos materiais e humanos (Memorias de la FERDERC correspondiente al año 2002, p. 140).
A necessidade de uma efetiva especialização do MP apareceu reiteradamente nos relatórios apresentados por Villarejo. O promotor-chefe criticou a fórmula usada pela Lei n. 10/95, por ter potencializado o papel do procurador-geral, limitando a autonomia da FERDERC para instaurar investigações de ofício. A Instrução n. 1/96 acenara com a possibilidade de reduzir o poder do procurador-geral, na medida em que a Lei n. 10/95, aparentemente, teria indicado a possibilidade de se atribuir mais autonomia funcional à Promotoria especializada. Com o passar dos anos, não se efetivou o que se anunciava na Instrução de 1996. Ao contrário, o procurador-geral teria buscado a interpretação literal da lei (Memoria de la FERDERC correspondiente al año 1999, p. 4).
Nos relatos de alguns dos promotores de justiça entrevistados surge a insatisfação com o que é avaliado como excessivo poder do procurador-geral sobre a atuação da FERDERC. A crítica não se dirige ao modelo hierárquico. Os princípios da unidade de atuação e da hierarquia são avaliados de forma positiva. A forma de indicação do procurador-geral e a ausência de controles sobre o poder do governo de nomear e demitir o chefe do MP aparecem como os problemas mais sérios do modelo espanhol. A figura do procurador-geral parlamentar é mencionada por um dos promotores como solução ou alternativa, reproduzindo-se propostas difundidas pelas associações de classe. A necessidade de que o promotor-chefe tenha mais autonomia para avaliar a especial transcendência dos casos que requerem a atuação da FERDERC é uma das principais sugestões para melhorar as condições de trabalho.
A FERDERC teria sido, durante o período que a chefiou Carlos Jiménez Villarejo, sistematicamente impedida de investigar os fatos que pudessem prejudicar o partido no governo (PP) [24]. O momento de tensão por que passou o MP espanhol, especialmente a FERDERC nos últimos anos, culminando com a modificação do EOMF, que ensejou a substituição dos promotores de justiça incômodos ao governo, não é um tema abordado com tranqüilidade pelos promotores de justiça. Saber o momento exato de colocá-lo em discussão ou suscitá-lo durante as conversas tornou-se um desafio importante no transcurso do trabalho de campo.
As notícias sobre a interferência do governo na atuação da FERDERC são acompanhadas, em alguns casos, por um breve relato da história recente da Espanha. Ao contrário do discurso do governo, os entrevistados negam a suposta diminuição dos casos de corrupção na Espanha. O controle exercido sobre as instituições seria um dos principais obstáculos para que os casos fossem conhecidos e investigados. A crítica ao governo espanhol nos relatórios de avaliação do GRECO é mencionada por um dos entrevistados.
Os entrevistados recordam também alguns dos casos em que, durante o governo socialista, o procurador-geral teria impedido as investigações incômodas para o PSOE. As mudanças no sistema democrático e o crescimento da administração pública tornaram mais difícil implementar formas de controle sobre os atos dos governantes. Os modelos de gestão administrativa favorecem o distanciamento da cúpula dos ministérios, dificultando a responsabilização política. O funcionamento deficiente dos órgãos de controle da administração impede o conhecimento de eventuais irregularidades. Além disso, os partidos políticos, sobretudo na Europa, tendem a conquistar níveis cada vez mais altos de disciplina interna, sendo raros os casos de derrota parlamentar do Executivo.
Se os controles políticos são, assim, insuficientes, resta a via da responsabilidade jurídico-penal (Bustos Gisbert, 2000, pp. 35-36). Nos relatos dos entrevistados aparecem as críticas aos governos com maioria absoluta, que impedem a responsabilização política por supostos atos de corrupção. Os mecanismos de controle sobre os atos do procurador-geral, na prática, dificultariam iniciativas do MP (campo jurídico-penal), razão pela qual as ações populares se constituiriam em mecanismos eficientes para levar ao conhecimento dos tribunais os atos praticados por integrantes do governo.
As modificações implementadas pela Lei de Juicios Rápidos e as limitações à investigação pelo MP são criticadas. As medidas legislativas aprovadas teriam evidenciado, na imagem descrita por parte dos entrevistados, as prioridades do governo popular (PP): redirecionar a política criminal contra a delinqüência tradicional (callejera) e dificultar a investigação da criminalidade de "colarinho branco". As novas exigências para a investigação comandada pelo MP diminuíram a possibilidade de atuação do órgão. Além da redução do número de diligências, diante da necessidade de que sejam cientificados os suspeitos, as interferências nos assuntos que interessam ao governo atrapalhariam a atuação do órgão [25]. Sobre a suposta extinção do órgão, ventilada pelo governo popular e pelo procurador-geral, os entrevistados se revelam céticos quanto a essa possibilidade. Alguns dos entrevistados sugerem que o governo também teria interesse em manter uma estrutura como a da FERDERC, já que interessa aos partidos a existência de alguma forma de controle, inclusive de políticos integrantes do partido no governo, desde que as ações da Promotoria permaneçam sob estrito controle hierárquico.