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A disciplina da prescrição no processo administrativo disciplinar contra membro do Ministério Público da União

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5. Prescrição da infração administrativa que também constitui crime: a interpretação do art. 244, parágrafo único, do Estatuto do Ministério Público da União

A mesma linha de entendimento deve ser invocada na interpretação do capitulado no art. 244, par. único, da Lei Complementar Federal n. 75/1993, quando prescreve que a falta prevista na lei penal como crime prescreverá juntamente com este.

Sobre o tema, calha pontuar que a punição administrativa do membro do Ministério Público da União pela prática de crime depende da expressa previsão do ilícito penal como concomitante falta disciplinar no Estatuto do Ministério Público da União, na medida em que a Administração Pública não tem competência para punir ilícitos criminais.

O que a Administração Pública pode punir é o cometimento de ilícitos disciplinares, previstos em lei administrativa.

Qualquer crime pode ser incluído, desde que expressamente (por força do princípio da legalidade), como falta funcional, no regime disciplinar de qualquer carreira dos servidores públicos ou dos membros do Ministério Público da União, desde que exista disposição legal explícita no sentido de que o cometimento do ilícito penal sujeita o agente público a punição administrativa, como demissão, por exemplo.

Em outras palavras, o crime, pelo fato de estar previsto na lei administrativa como transgressão sujeita a punição disciplinar, assume a natureza jurídica de falta funcional, punível nessa qualidade pela Administração Pública.

No caso da Lei federal n. 8.112/1990, por exemplo, a prática de crime contra a Administração Pública (art. 132, I), como peculato por exemplo, constitui transgressão de natureza disciplinar, passível de demissão.

De outro ângulo, o crime comum, não tipificado expressamente na lei administrativa como transgressão disciplinar, não pode render ensejo a punição funcional, salvo se a conduta for reenquadrada como um ilícito disciplinar puro, hipótese em que a contagem do prazo prescricional será pelos marcos ordinários temporais do estatuto do servidor público, não pelos parâmetros cronológicos da lei penal.

A matéria foi abordada exaustivamente em nosso Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da Administração Pública [37], o qual se pede vênia novamente para citar:

9 Regra para a contagem do prazo inicial da prescrição no caso de crimes que são tipificados no estatuto dos servidores públicos como infrações disciplinares

A regra geral da Lei federal n. 8.112/1990, no quanto preceitua que a contagem do prazo prescricional começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido pela Administração Pública (art. 142, § 1º), limita-se aos casos de infrações estritamente disciplinares, pois não se aplica às transgressões funcionais que também configuram ilícitos penais, como os crimes contra a Administração Pública, disciplinados nos arts. 312 a 327, do Código Penal, e em leis especiais.

É que, na hipótese de transgressões administrativas também tipificadas criminalmente, o prazo a ser computado, inclusive para o fim da contagem da prescrição, será o estabelecido na lei penal, por força de expressa dicção da Lei federal n. 8.112/1990: "Os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime" (art. 142, § 2º), como entende o Superior Tribunal de Justiça:

Às infrações disciplinares também tipificadas como crime aplicam-se os prazos prescricionais previstos na lei penal, afastando, por conseguinte, os prazos prescricionais das ações disciplinares, previstos nos incisos I a III do mesmo artigo (inteligência do parágrafo 2º do artigo 142 da Lei n. 8.112/90). [38][39]

Também o Supremo Tribunal Federal: "A falta disciplinar, também prevista em lei penal, como crime, prescreve juntamente com este". [40]

O Superior Tribunal de Justiça, contudo, firmou que a contagem dos prazos da lei penal para o exercício do poder de punir faltas administrativas depende do recebimento de denúncia pela prática do crime também tipificado como infração disciplinar no Estatuto do Funcionalismo. [41]

No sentido da exigência de existência de denúncia e de instauração de processo criminal contra o servidor, a fim de que seja possível a contagem dos prazos prescricionais do direito de punir administrativo pelas regras do Código Penal, e não pelos parâmetros ordinários da Lei n. 8.112/1990, é firme a jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça:

A Lei nº 6174/70 – Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado do Paraná – prevê em seu art. 301, parágrafo único, que a falta administrativa também prevista na lei penal como crime prescreve juntamente com este. Na presente hipótese, constituindo a falta praticada pelo servidor o delito de peculato tipificado no art. 312 do Código Penal, bem como tendo sido o servidor denunciado e estando a ação penal em regular trâmite, aplica-se na instância administrativa o prazo prescricional previsto na instância penal – dezesseis anos, nos moldes do art. 109, inciso II, do Código Penal. [42]

De igual teor é o pronunciamento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em precedente relatado pelo Ministro Paulo Medina, de cujo voto se extrai trecho:

Para que o prazo prescricional da pena administrativa acompanhe a prescrição do crime, faz-se necessário efetiva apuração dos fatos em instância criminal. Não obstante, inexiste referência à denúncia nem há elementos suficientes para apurar se o servidor teria praticado o crime do caput do art. 323, ou de seu parágrafo único, que implicam em prazos prescricionais diversos. Os elementos da instância criminal são essenciais para que se conclua sobre o prazo prescricional: o da lei administrativa, de cinco anos; ou os possíveis prazos da lei penal, calculados em função da pena máxima cominada em abstrato ou pela pena concreta a que o réu é condenado. Entretanto, a autoridade administrativa reconhece ter havido a prescrição, no bojo do ato impugnado. (p. 348). Na presente hipótese, constituindo a falta praticada pelo servidor o delito de peculato tipificado no art. 312 do Código Penal, bem como tendo sido o servidor denunciado e estando a ação penal em regular trâmite, aplica-se na instância administrativa o prazo prescricional previsto na instância penal – dezesseis anos, nos moldes do art. 109, II, do Código Penal. [43]

No mesmo diapasão, José Armando da Costa não admite a contagem dos prazos prescricionais da lei penal para fins de punição disciplinar do servidor público se não existe ação penal em curso:

A incidência do disposto no § 2º do art. 142 do estatuto federal ("os prazos de prescrição previstos em lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime") somente encontra regência quando haja cognição penal. (...) Alguns órgãos judicantes admitem essas excepcionais projeções da instância criminal com esteio apenas no simples despacho judicial de recepção da peça acusatória do representante do Ministério Público. Pois que tal juízo de admissão acusatória contém, quando muito, apenas plausibilidade condenatória (fumus boni juris). (...) Poderá a regência penal da prescrição disciplinar, nos termos do § 2º do art. 142 do Estatuto Federal ou dos estaduais similares ("os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime"), se conformar tão somente com a recepção judicial da denúncia ministerial. [44]

Nesse caso de faltas funcionais criminosas cometidas por servidores públicos, portanto, as normas de contagem da prescrição obedecerão ao preceituado pelo Código Penal, que enuncia: "A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: do dia em que o crime se consumou" (art. 111, caput e inciso I, com a redação dada pela Lei n. 7.209, de 11.07.1984); "diz-se o crime: consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal" (art. 14, caput e inciso I).

Já o art. 4º, do Estatuto Criminal, prescreve: "Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado" (dispositivo com a redação dada pela Lei n. 7.209/84).

Daí que, diferentemente das transgressões disciplinares exclusivamente administrativas, no caso das faltas que também configuram ilícitos penais, até conceituadas como crimes funcionais, o prazo prescricional será contado normalmente do fato, da ação ou omissão que reúna os elementos da definição legal do delito criminal (arts. 4º, 14, caput e inciso I, e 111, caput e inciso I, todos do Código Penal).

Na contagem do prazo prescricional, incidirá, outrossim, no caso das infrações disciplinares que constituem crimes, a norma pertinente do Código Penal (art. 10): "O dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum."

José Cretella Júnior confirma que, se o fato constitui crime, a prescrição conta-se a partir de sua consumação, ao passo que, se se tratar de mero ilícito administrativo, a fluência do prazo prescricional se dá a partir da ciência do fato. [45]

Em caso concreto de prática de crime contra a Administração Pública (arts. 50, III, e 51, parágrafo único, I, da Lei 6.766/79), o Superior Tribunal de Justiça pontuou que o prazo prescricional para punição administrativa seria o da lei penal, no caso computado pela pena criminal aplicada concretamente, o que veio a implicar o reconhecimento da prescrição do direito de punir administrativo na espécie. [46]

Renato Luiz Mello Varoto, além de sufragar a possibilidade de apenação funcional antes da abertura ou desfecho de processo-crime pelos mesmos fatos, assevera que a Administração Pública pode reconhecer a prescrição da punibilidade administrativa de faltas disciplinares também tipificadas como crimes na lei penal, independentemente de prévio pronunciamento do Poder Judiciário acerca da matéria. [47]

Edmir Netto de Araújo afiança que "sendo falta-crime, a prescrição regular-se-á (art. 142, § 2º) pela lei penal, e portanto iniciar-se-á na data do fato ilícito, podendo mesmo a Administração auto-aplicar esta regra, independentemente de pronunciamento judicial". [48]

É o que avaliza Armando Pereira:

Uma vez determinado o prazo de prescrição, no caso de falta capitulada na legislação substantiva penal como crime, dentro dos critérios que orientam o Direito Penal, a autoridade administrativa terá de verificar se ocorreu a prescrição da sanção penal, considerando, inclusive, as interrupções que se admitem, na esfera judiciária, no curso da prescrição. Só quando definitivamente prescrita aquela sanção é que estaria igualmente extinta a punibilidade da falta disciplinar. [49]

O Superior Tribunal de Justiça - STJ pontificou que a falta administrativa também tipificada como crime na lei penal terá o mesmo prazo prescricional, que será o do direito criminal, tanto para a imposição de penalidade disciplinar pela Administração Pública como para a imposição da pena pelo juízo criminal competente, de modo que será aplicável a regra de contagem do prazo prescricional antes (art. 109, I a VI, Código Penal) e depois da sentença (art. 110, caput e §§ 1º e 2º, Código Penal – neste último caso pela sanção penal aplicada em concreto pelo Poder Judiciário).

Por isso o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, em julgado seu, a prescrição retroativa regrada no estatuto criminal, mas ressalvou que, no tocante à falta disciplinar residual, o prazo prescricional a ser computado é o da Lei federal n. 8.112 (art. 142, inciso I), de 5 anos para demissão, só que os contou da ocorrência do fato, e não de seu conhecimento pela Administração Pública. [50]

O STJ proferiu julgado no sentido de que "a instauração do processo disciplinar é, nos termos da lei, causa interruptiva da prescrição administrativa, mesmo na incidência do prazo da lei penal." [51]

Vale dizer que, apesar de a infração disciplinar também constituir crime e ter seus prazos prescricionais administrativos estipulados pelo Código Penal, a instauração do processo administrativo disciplinar terá o condão de interromper o fluxo do prazo prescricional, até o prazo para a sua conclusão.

O Superior Tribunal de Justiça reiterou seu entendimento:

1. Os prazos administrativos de prescrição só têm lugar quando a falta imputada ao servidor não é prevista como crime na lei penal. E, havendo sentença penal condenatória, o prazo da prescrição na esfera administrativa computa-se pela pena em concreto penalmente aplicada, nos termos dos arts. 109 e 110 do Cód. Penal. 2. Não obstante a aplicação dos prazos prescricionais da lei penal, as hipóteses de interrupção regem-se, no caso, pelo regulamento geral dos servidores públicos civis do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro – porque ali se encontram previstas expressamente –, isto é, segundo os ditames do art. 57, § 2º, do Decreto-Lei nº 220/75.(RMS 15933 / RJ, 6ª TURMA, Julgamento: 20/11/2008).

Não obstante, não se pode admitir que a Administração Pública possa demitir ou punir com pena disciplinar outro servidor público, depois de o prazo para punição do crime já estar esgotado, segundo os critérios da lei penal, sob pena de ofensa direta ao § 2º do art. 142 da Lei federal n. 8.112/1990, visto que os prazos da legislação criminal são os que definem a extinção da pretensão punitiva da Administração Pública, em face do princípio da coerência entre as instâncias judicial e administrativa, não se podendo admitir que um mesmo fato esteja prescrito na órbita do processo penal, mas não no âmbito administrativo. As causas de interrupção da prescrição são aquelas definidas no Código Penal.

Também assentou o Superior Tribunal de Justiça:

A prescrição da pena de demissão, regula-se pelas disposições do Código Penal quando as faltas administrativas constituem crime ou contravenção. Definida a falta como crime de peculato, a prescrição verificar-se-á em 16 anos, a teor do art. 109, II, CP. [52]

O Superior Tribunal de Justiça destacou que o prazo prescricional para punição de falta funcional criminosa de concussão é o da lei penal, mas a falta exclusivamente disciplinar também cometida pelo acusado, prevista no art. 117, IX, da Lei federal n. 8.112/1990 ("valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública"), se sujeita ao prazo extintivo de cinco anos, capitulado para as infrações administrativas passíveis de demissão (art. 142, I, Lei n. 8.112/1990), e não aos ditames do Código Penal. [53]

OSupremo Tribunal Federal, no entanto, prolatou julgado no qual especificou que, se os fatos imputados ao servidor público caracterizam o crime de corrupção passiva, em razão do recebimento de vultosa importância em moeda estrangeira, a prescrição da sanção disciplinar administrativa deveria calcular-se pelo prazo capitulado na lei penal, independentemente da instauração, ou não, de processo penal a respeito. [54]

Cumpre apenas ressaltar que a punição de crimes contra a Administração Pública (art. 132, I, Lei n. 8.112/1990) pressupõe os delitos classificados como funcionais no Código Penal (arts. 312 a 327) e em leis especiais, de maneira que a punição por falta criminosa diversa (crime comum) , sem essa qualidade, somente poderá ser efetivada, na seara administrativa, se houver tipo disciplinar, expressamente estatuído na lei que trata do regime disciplinar do funcionalismo, prevendo penalidade para a prática do fato criminoso específico cometido pelo servidor acusado, sob pena de ilegalidade da sanção eventualmente imposta.

Nem se esqueça do requisito adicional de que o fato deve guardar correlação com as atribuições do cargo ou ser praticado no exercício funcional (art. 148, fine, Lei federal n. 8.112/1990), salvo se o regime disciplinar estatutário do funcionalismo, expressa e individualmente, estipular a punição de certas ações da vida privada do servidor que impliquem incompatibilidade com o desempenho dos ofícios pertinentes à função pública.

Por exemplo, o fato de o servidor público, por excesso de velocidade na direção do seu veículo próprio, ou de embriaguez eventual ao volante, incorrer em crime de lesão corporal culposa, ao atropelar pedestre que atravessava faixa de transeuntes, não implica, em princípio, responsabilidade no campo administrativo, salvo no caso de ocupante do cargo de motorista que, durante a jornada de trabalho, de forma negligente ou com dolo eventual, incide na ocorrência.

De igual modo, a incidência do funcionário em vias de fato com vizinho, seu desafeto, por questões relacionadas à administração do condomínio do edifício onde ambos residem, sem qualquer ligação com o serviço público, não poderia ter o efeito de implicar punição funcional, já que não violados deveres ou proibições funcionais na hipótese.

Uma das lacunas dessa natureza na Lei federal n. 8.112/1990, verificada na casuística da Administração Pública, é a hipótese de o servidor cometer transgressão profissional na atividade privada que lhe suprima a habilitação para o exercício do seu ofício e implique a cassação de seu registro/licença para desempenhar profissão pela entidade de fiscalização profissional, como na hipótese de médico que tem sua inscrição no Conselho Regional de Medicina cassada, a título de penalidade por falta ética cometida.

No caso de o apenado ocupar cargo público de médico, tendo sido cassada sua licença profissional e sendo esta exigida em lei para o exercício da profissão, seja no campo da atividade particular como também junto à Administração Pública, trata-se de conduta ilícita na vida privada que gera a privação da possibilidade de o servidor continuar a atuar profissionalmente como agente público.

A falta de previsão da perda do cargo público nesse caso gera situação de perplexidade, visto que o funcionário não pode sofrer penalidade disciplinar não prevista em lei, ou aplicada a fato não tipificado como passível de perda do posto. O agente também não pode ser reaproveitado em outro cargo de provimento efetivo, visto que a Constituição Federal de 1988 exige prévia aprovação em concurso público para a respectiva investidura (art. 37, II).

Chega-se à difícil situação, enfrentada pela Procuradoria-Geral do Distrito Federal em precedentes de cassação de registro profissional de enfermeiro e de médico, quanto à impossibilidade de demissão nesse caso, à míngua de cominação legal da penalidade para o fato, quando se propôs a possibilidade de o servidor vir a ser exonerado do cargo, não demitido, por meio de processo administrativo genérico (não disciplinar em sentido estrito), em que seja declarada a perda superveniente de condição legal para o exercício do cargo público (no caso a habilitação profisisonal: art. 5º, § 1º, Lei n. 8.112/1990), ou então o ajuizamento de ação, com o mesmo fundamento jurídico, para se decretar a perda do posto pelo infrator, em virtude do fato perpetrado em sua atividade profissional privada.

Daí que se compreende a pertinência da previsão expressa, no estatuto do funcionalismo, de penalidade demissória para transgressão cometida na vida profissional privada.

Destaque-se que, em virtude da independência das instâncias administrativa e criminal, a autoridade julgadora, conquanto tenha que examinar a extinção do direito de punir da Administração Pública, motivada pela prescrição, segundo as regras estipuladas no Código Penal, não está obrigada a aguardar futuro decreto judicial, declaratório do reconhecimento da superveniência da barreira prescricional, como impedimento ao exercício do jus puniendi estatal.

O próprio agente decisor administrativo pode apreciar e auto-aplicar os prazos diretamente à instância administrativa, apenas pautando sua análise pelas disposições da legislação criminal, como explica Armando Pereira:

A lei remete a fixação do prazo prescricional, no caso focalizado na consulta (parágrafo único do art. 213 do E F), às normas que disciplinam a prescrição no Código Penal. Mas, se essa remissão obriga o intérprete a perquirir se houve extinção da punibilidade na esfera judiciária, não significa que tenha de aguardar o pronunciamento jurisdicional in casu para concluir se houve prescrição. A sua ação é livre, apenas adstrita aos critérios que norteiam o instituto da legislação penal (Parecer do Conselho Jurídico do DASP, no proc. 3.364 de 1956). [55]

De fato, a Administração Pública pode reconhecer a prescrição das faltas administrativas que também constituem crimes de ofício, independentemente de prévio pronunciamento judicial, desde que assim o aponte a contagem de prazos prescricionais pelos parâmetros cronológicos do Código Penal. Clenício da Silva Duarte, por sinal, consignou, em parecer ofertado como Consultor Jurídico do DASP:

Respondo, pois, afirmativamente à primeira parte da consulta, não sendo, assim, necessário qualquer pronunciamento do Poder Judiciário para que a Administração considere extinta, pela prescrição, a punibilidade de faltas disciplinares também previstas na lei penal como crime. [56]

Gize-se que, no caso de a conduta irregular constituir falta criminosa e também compreender um resíduo estritamente disciplinar, o prazo prescricional será o definido na lei administrativa quanto à falta residual administrativa.

9.1 Pressupostos para a incidência da lei penal para contagem dos prazos de prescrição em casos de crimes tipificados como infrações disciplinares

Quando, efetivamente, deve incidir o disposto no art. 142, § 2º, da Lei n. 8.112/1990, que trata do prazo prescricional para a Administração Pública punir faltas administrativas também constitutivas de crimes?

De fato, questão que merece aprofundada reflexão é sobre os casos em que a Administração Pública pode computar os prazos prescricionais da lei penal para aplicar penalidades disciplinares a servidores públicos, quando o cometimento do crime é previsto, no estatuto do funcionalismo, como causa de punição.

Reza a Lei federal n. 8.112/1990: "§ 2º Os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime" (art. 142).

Questão crucial é conhecer a origem do dispositivo em apreço e saber a que o preceptivo legal alude quando menciona as "infrações disciplinares capituladas também como crime".

9.1.1 Origem do dispositivo do art. 142, § 2º, da Lei n. 8.112/1990 e conceito de falta disciplinar que também constitui crime

O preceito do art. 142, § 2º, que trata da faltas administrativas, é mera reprodução do disposto no parágrafo único do art. 213 da revogada Lei federal n. 1.711/1952 (antigo Estatuto dos Funcionários Públicos da União): "A falta também prevista na lei penal como crime prescreverá juntamente com este."

E o que é a falta administrativa ou infração disciplinar (na terminologia da Lei n. 8.112/1990) prevista também como crime?

Responde-o o emérito ministro Moreira Alves, explicando que falta administrativa ou disciplinar é toda aquela assim prevista no estatuto dos servidores públicos ou em lei administrativa que disponha sobre desvios de conduta funcional praticados por servidor público. Consigna, ainda, que o ilícito administrativo preexistia antes de se tornar, por sua gravidade, um crime.

Com efeito, doutrinou o Ministro Moreira Alves, reportando-se, em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, ao teor de lição de Caio Tácito [57] sobre o histórico da tramitação legislativa da proposta que desaguou na elaboração do dispositivo do art. 213, par. único, da revogada Lei 1.711/1952 (hoje reproduzido no art. 142, § 2º, da Lei n. 8.112/1990 – destaques não originais):

[...] Parágrafo único. As faltas também previstas na legislação penal como delito, prescrevem juntamente com este, se não houver sentença condenatória. 3 É oportuno transcrever a justificativa do acréscimo: ‘As faltas disciplinares passam do domínio do direito administrativo para a esfera do direito penal, embora continuando residualmente no primeiro, quando vulneram certos direitos que merecem maior proteção. Bem se expressa Franz Von Lisst ao reconhecer que a razão por que, nessa hipótese, a punição disciplinar por si só insuficiente reclama um quid pluris [...] Ora, se nesse entendimento com o conteúdo do direito administrativo vai enriquecer o Código Penal, as normas da prescrição não ficam indiferentes: noutras palavras, se os crimes ditos contra a Administração, tipificados no Código Penal, estão sob o amparo da prescrição penal, por que motivo não introduzir esse instituto também no âmbito administrativo [...] Eis a lição de Themóstocles Cavalcanti, luminar do direito administrativo entre nós: ‘A norma disciplinar precedeu, no tempo, à norma penal e já o fato constituía falta disciplinar antes que o legislador penal o tivesse considerado criminoso’ [...] A pena de demissão prevista naquele item sempre decorre de um procedimento criminoso do funcionário. Para exemplificar. A pena de demissão se aplica a quem abandonar o cargo; a quem empregar irregularmente os dinheiros públicos; a quem revela segredos; a quem se deixa corromper. Nessas hipóteses, em que se impõe a pena de demissão, ou se aplica o item II do artigo 209 ou se aplica o seu parágrafo único, porque também houve crime [...] Em que sentido se alude à obediência ao disposto na lei penal? O preceito é vago e merece ser aclarado. Diga-se que ‘a falta também prevista na lei penal como crime, prescreverá juntamente com este’ e ter-se-á introduzido no projeto dispositivo côngruo. Esta a origem histórica do dispositivo que assim se enuncia, na lei vigente. [58]

Da lição doutrinária de Caio Tácito, endossada pela cátedra luminar do preclaro ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Moreira Alves, explica-se que os ilícitos administrativos existiram primeiro e não eram capitulados no âmbito do direito penal, mas, devido à gravidade das infrações disciplinares, elas passaram à categoria de crimes. Nessas hipóteses é que se pode afirmar que a falta administrativa também constitui delito criminoso e, por isso, em princípio, o prazo prescricional para punição dessas transgressões disciplinares será o estipulado na lei criminal (art. 142, § 2º, faltas administrativas).

Patenteia-se que o dispositivo atual do art. 142, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990, se refere, portanto, aos crimes contra a Administração Pública, definidos nos artigos 312 a 326, do Código Penal, e em algumas normas legais esparsas, como a Lei federal 6.766/1979 (art. 50, I a III). É nesses casos que se devem computar os prazos prescricionais para imposição de penalidades administrativas pelos marcos cronológicos da legislação criminal, porquanto essas infrações é que sempre foram, antes de se converterem em ilícitos penais, faltas disciplinares.

Os ilícitos disciplinares não eram infrações criminais, mas meras transgressões dos deveres e do regime funcional dos servidores públicos. O agente público patrocinava interesse privado perante a Administração, deixava de praticar ato de ofício para satisfazer interesse pessoal, recebia ou exigia propina para o exercício de suas funções, abandonava o cargo público de forma intencional, deixava de punir o seu subordinado por mera condescendência com o faltoso, enfim, cometia diversas condutas irregulares que não surtiam efeitos para a órbita do direito penal, embora representassem graves ofensas ao código disciplinar.

Somente mais tarde, em face do interesse da sociedade no regular funcionamento da Administração Pública e do prejuízo à coletividade, causado pelas infrações cometidas pelos servidores, é que certos ilícitos disciplinares foram também albergados pelo direito penal.

Aí é que as faltas administrativas se tornaram aquelas que também se constituíram crimes (contra a Administração Pública), aludidas pelo § 2º do art. 142 da Lei federal n. 8.112/1990, mera reprodução do dispositivo do art. 213, par. único, da Lei 1.711/1952 (antigo Estatuto dos Funcionários Públicos da União, revogado pela faltas administrativas).

Confirma-o Carlos S. de Barros Júnior:

Há faltas disciplinares que, pela sua maior gravidade, pelo seu caráter doloso, constituem também crimes. Elas configuram violação de deveres relativos à disciplina e, do mesmo passo, atos previstos na lei penal. Prevê, assim, a lei disciplinar faltas que o Código Penal também reprime, considerando-as delitos. São os denominados crimes praticados por funcionários contra a Administração Pública. [59]

9.1.2 Crimes comuns e a regra do art. 142, § 2º, da Lei n. 8.112/1990

Não se dá o mesmo no caso dos crimes comuns, pois não eram nem são, em essência, ilícitos disciplinares que se tornaram, por sua gravidade, infrações penais, mas sempre foram e continuam a ser, ontologicamente, condutas tipificadas na seara criminal, visto que não se originaram, em essência, de faltas administrativas anteriores. Ao contrário, a violação de sepultura, o estupro, o seqüestro, o homicídio, o estelionato, dentre outras infrações penais comuns, não vieram a lume a partir de uma falta administrativa, de um ilícito disciplinar precedente. Sempre tiveram justificativa e natureza própria, desvinculada, em sua essência, de comportamentos praticados contra a Administração Pública por servidores públicos, mas, sim, decorrem de atentados contra valores fundamentais coletivos, cuja violação ofende a sociedade.

Se, segundo Caio Tácito, a regra da contagem dos prazos prescricionais da lei penal para punições administrativas (art. 142, § 2º, faltas administrativas, antigo par. único do art. 213 da Lei 1.711/1952) se aplica às infrações essencialmente administrativas que vieram a ser tipificadas criminalmente, resta inquestionável, pois, que é aos crimes contra a Administração Pública que o preceptivo em alusão deve ser aplicado, não nas hipóteses em que crimes comuns são praticados por servidores públicos, sobretudo quando as infrações penais nem sequer são previstas expressamente, no estatuto do funcionalismo, como falta funcional passível de punição.

Vicente Ferrer Correia Lima sufraga:

O Estatuto dos Funcionários abriga em seu bojo a punição para determinadas violações que, em alguns casos, também constituem crimes, as quais, apuradas que sejam em processo administrativo, devem igualmente ser investigadas através de inquérito policial, iniciado com as peças extraídas do referido processo administrativo [...] As caracterizações desses crimes e as penas respectivas são objeto dos artigos 312 e 326 do Código Penal que, para os efeitos penais, conceitua a figura do funcionário público no artigo 327. [60]

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Petrônio Braz salienta: "A responsabilidade penal pelas ilicitudes praticadas pelo servidor público contra a Administração vem capitulada nos arts. 312 a 327, do Código Penal brasileiro e na Lei n. 8.666/93." [61]

Raquel Melo Urbano de Carvalho [62] referenda e cita nosso entendimento:

Não se aplica a regra do art. 142, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990 para os casos de crimes comuns que, além de não serem, em essência, ilícitos disciplinares, também não autorizam a demissão do servidor público da União. Crimes comuns definem-se como aqueles não previstos, de forma autônoma, no Estatuto dos Servidores Públicos, como infração disciplinar. Se a prática de crimes comuns não consubstancia ilícito administrativo e nem mesmo leva à pena de demissão do servidor da União, o prazo prescricional não se regulará pelo Direito Penal. Esta é a lição de Antonio Carlos Alencar Carvalho: [...]

Conclui o doutrinador Antonio Carlos Alencar Carvalho que, se não existe previsão legal do fato como causa de demissão (dentre aquelas expressamente tipificadas no Estatuto do funcionalismo), evidente que não será pertinente a incidência do disposto no art. 142, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990, que prevê a contagem dos prazos prescricionais fixados no Código ou na legislação penal para responsabilização administrativa dos servidores pela prática de crime. Afinal,

"Se a Administração Pública não pode demitir, cassar a aposentadoria ou a disponbilidade pela prática de crime comum, porque não tipificado na lei administrativa como infração disciplinar, resta prejudicada a contagem de marcos cronológicos da lei criminal para punição administrativa, uma vez que, se o fato não é punível, descabe falar de lapsos temporais para o exercício do direito de punir na esfera administrativa."

Pode-se afirmar que, no âmbito federal, os prazos de prescrição da lei penal vigem quando o mesmo fato é tipificado como crime e é previsto, de forma autônoma, como infração administrativa no Estatuto disciplinar. Nesta hipótese, o prazo prescricional para punição disciplinar do servidor será o da legislação penal, por força do art. 142, § 2º, da Lei Federal n. 8.112.

9.1.3 Crítica parcial à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação do art. 142, § 2º, da Lei n. 8.112/1990, no caso de crimes comuns, e comentários sobre os reflexos do princípio da legalidade na enumeração das faltas disciplinares: a questão da tipicidade e da discricionariedade no direito administrativo disciplinar

Não se abona parte da linha jurisprudencial esposada pelo Superior Tribunal de Justiça, data maxima venia, quando aplica, de forma irrestrita, o dispositivo do § 2º do art. 142 da Lei federal n. 8.112/1990, para o fim de computar os prazos da lei penal para punições administrativas, ainda que os crimes comuns, determinantes da contagem dos lapsos temporais pela legislação criminal, não sejam tipificados, expressa e especificamente, no estatuto dos servidores públicos, como falta funcional passível de punição.

Isso porque os crimes comuns podem ser causa de demissão ou de aplicação de outra penalidade, desde que especificamente tipificados como faltas administrativas no estatuto disciplinar.

Se não o forem, todavia, não passam de ilícitos penais, sem caráter de infração funcional, punidos pela autoridade judiciária com penas criminais, sendo vedado ao administrador público aplicar sanção disciplinar, se os crimes comuns não são causa expressamente prevista de demissão ou pena administrativa no estatuto do funcionalismo, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade.

Poder-se-ia até admitir que, uma vez que o ilícito penal comum (distinto dos crimes contra a Administração Pública) seja previsto, de forma autônoma, como infração disciplinar no estatuto do funcionalismo, aí sim os prazos prescricionais a serem observados sejam os da lei penal, embora não seja essa a idéia original preconizada no dispositivo do art. 213, par. único, da revogada Lei federal 1.711/1952, reproduzido na atual redação do art. 142, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990, como explicado no item precedente.

Se, entretanto, o crime não é causa expressa de demissão, assim tipificado no estatuto dos servidores públicos, será impertinente computar os prazos prescricionais da lei penal para fins de contagem do tempo para eventual punição administrativa na verdade vedada, visto que a Administração Pública não poderá motivar pena disciplinar pela prática de crime se inexiste previsão legal autorizativa.

9.1.4 Crimes contra a Administração Pública como infração disciplinar passível de demissão expressamente prevista no estatuto dos servidores públicos federais

Por que é lícito demitir o servidor público por cometer peculato, abandono de cargo, concussão, advocacia administrativa, violação de segredo funcional, corrupção passiva? Porque esses fatos criminosos são expressamente previstos como causa de demissão no art. 132, I, da Lei federal n. 8.112/1990, que tipifica como motivo de penalidade demissória o cometimento de crime contra a Administração Pública (exatamente os previstos nos arts. 312 a 326 do Código Penal, além dos que assim sejam definidos em lei extravagante).

Por que a Lei federal n. 8.112/1990 teria se preocupado em relacionar entre as causas de demissão (art. 132, inciso I, como a violação de sigilo funcional, o desvio de verbas públicas, o abandono de cargo, a prática de crimes contra a Administração Pública) fatos que são também crimes definidos no Código Penal, portanto tornando os ilícitos penais igualmente infrações disciplinares, se fosse possível à Administração Pública punir todo e qualquer fato, inclusive crimes comuns, como fatos geradores de responsabilidade administrativa, independentemente de previsão em lei administrativa? Contém o texto legal, então, palavras inúteis ou uma série de dispositivos desnecessários, já que o Estado poderia, aleatória e indiscriminadamente, apenar qualquer fato, mesmo que não fosse previsto, no estatuto disciplinar do funcionalismo, como causa de punição?!

A resposta é desenganadamente não.

A Lei federal n. 8.112/1990 é clara no sentido de que somente se estendem pelos prazos prescricionais da lei penal as infrações administrativas tipificadas no estatuto disciplinar do funcionalismo que, simultaneamente, constituem crimes (art. 142, § 2º, faltas administrativas) – é precisamente o caso dos crimes contra a Administração Pública (arts. 312 a 326, Código Penal, como o peculato, concussão, corrupção passiva, advocacia administrativa).

Isto é, o fato é previsto na legislação administrativa como falta disciplinar e é também apenado com pena criminal no Estatuto Penal pertinente.

Não é o caso, por exemplo, da falsidade ideológica (art. 299, Código Penal), que não é expressamente prevista como infração administrativa na Lei federal n. 8.112/1990, mas tão-somente no Código Penal, não passando de crime comum, sem tipificação disciplinar pela Administração Pública.

Por exemplo, o abandono de cargo é tipificado no Código Penal (art. 323) e na Lei federal n. 8.112/1990 (art. 138). A corrupção, capitulada no art. 317, do Código Penal, e no art. 132, XI, da Lei federal n. 8.112/1990; a aplicação irregular de dinheiro público, se ocorre desvio (art. 132, VIII, faltas administrativas), e o peculato, na forma de desvio de recursos públicos (art. 312, Código Penal).

Palhares Moreira Reis comenta que a Lei federal n. 8.112/1990 previu, como falta disciplinar tipificada, a aplicação irregular de dinheiros públicos (art. 132, VIII), também conceituada como crime no art. 315, do Código Penal; a revelação de segredo do qual o servidor se apropriou em razão do cargo é capitulada como infração administrativa (art. 132, IX, faltas administrativas) e como ilícito criminal (art. 325, Código Penal), assim como a corrupção como falta disciplinar (art. 32, XI, faltas administrativas) e crime (art. 317, Código Penal). [63]

9.1.5 Princípio da legalidade na imposição de sanções e a tipicidade de infrações disciplinares

É que a pena de demissão, a mais grave cabível contra o servidor público em atividade, por força do princípio da legalidade da Administração Pública, somente pode ser aplicada se houver, expressamente, uma descrição da conduta passível dessa punição no estatuto do funcionalismo. Se não houver, a punição deverá basear-se em algum dispositivo da lei disciplinar, aplicável ao servidor processado, que defina uma infração disciplinar pura (só que, nesse caso, os prazos prescricionais serão os do art. 142, I a III, da Lei federal n. 8.112/1990).

É a lição de Marçal Justen Filho, o qual acentua que se aplica o princípio da legalidade no tocante à definição das infrações, na fixação das sanções, quanto à pena de demissão, a respeito da qual frisa: "A gravidade da sanção impede sua aplicação sem previsão legal das hipóteses de seu cabimento." [64] (destaque nosso)

É preciso deixar claro que a responsabilidade administrativa decorre, por força do princípio da legalidade, de a conduta dos servidores públicos configurar infrações disciplinares, capituladas em regras do respectivo estatuto funcional. Já a responsabilidade criminal resulta da adequação típica da conduta em um dos modelos de infrações estatuídas no Código Penal ou legislação repressiva pertinente. Necessariamente, a conduta se deve enquadrar em uma previsão normativa de ilícito, seja administrativo, seja criminal.

Vicente Ferrer Correia Lima explicita essa idéia de tipicidade:

Somente são punidas, penal e administrativamente, as infrações que estiverem, específica ou genericamente, caracterizadas nos respectivos diplomas legais, isto é, no Código Penal, no Estatuto dos Funcionários ou leis correlatas. Nem ao Juiz, nem à autoridade administrativa, é permitido instituir crimes, faltas e penas. [65]

Para que se possa falar de responsabilidade administrativa e de imposição de penas disciplinares, mister que exista uma conduta classificada em lei funcional definidora de infração administrativa, isto é, o fato cometido pelo servidor deve ser previsto, no estatuto disciplinar, como ilícito administrativo.

Carmen Lúcia Antunes Rocha, eminente ministra do Supremo Tribunal Federal, explicita: "Demissão, no sistema brasileiro, é pena. Logo, somente pode ocorrer quando houver previsão legal da falta autorizativa de tal decisão." [66] (destaque nosso)

É condição sine qua non, se o modelo legislativo adotado prevê exaustivamente as infrações disciplinares (como é o caso do art. 132, da Lei n. 8.112/1990, ao taxativamente relacionar as ações passíveis de demissão), que a conduta que se pretende punir se enquadre em um dos tipos disciplinares elencados, sob pena de agressão ao princípio da legalidade, pois a autoridade administrativa estaria criando, por via oblíqua, ilícitos por meio de ato administrativo, o que não se coaduna com o império da lei em exclusivamente definir infrações e sanções disciplinares.

Marienhoff nota que nenhuma autoridade da Administração Pública, seja de que hierarquia for, possui competência para configurar ou criar faltas administrativas, pois "tal configuração ou criação deve ser, indefectivelmente, obra do legislador." (apud Régis Fernandes de Oliveira, p. 60).

9.1.6 Tendências da tipicidade das faltas sujeitas a penas mais graves no direito administrativo disciplinar: discricionariedade, tipos abertos e fechados de infrações administrativas; o modelo da ordem jurídica federal

Efetivamente, no que concerne às penas mais severas, a tendência do direito administrativo disciplinar, em virtude dos avanços democráticos, é de regular o mais precisamente possível as faltas, em tipos disciplinares, deixando margem maior para discricionariedade administrativa somente para as condutas sujeitas a penas mais leves.

Veja-se que, embora seja possível que a lei crie infrações disciplinares com tipo aberto e com margem discricionária para enquadramento pela autoridade administrativa (por exemplo: "o servidor será demitido se cometer grave violação de seus deveres" ou "se incorrer em procedimento irregular gravíssimo"), não é essa a tendência dos estatutos pátrios, particularmente no modelo da Lei federal 8.112/90, que taxativamente tipifica as condutas passíveis de penalidade demissória em modelos hipotéticos (art. 132), cujos elementos do tipo disciplinar respectivo são precisos ou rendem pequena margem para discricionariedade, sempre porém com previsão legal.

Aliás, o velho Estatuto dos Funcionários Públicos federais de 1939 (Decreto-lei 1713/1939) capitulava que seria aplicada a pena de demissão em caso de "procedimento irregular do funcionário, devidamente comprovado" (art. 238, III), infração de natureza discricionária ampla, mas que nem sequer foi reproduzido na Lei federal 1.711/1952 (Estatuto dos Funcionários Públicos federais), menos ainda na posterior e atual Lei federal 8.112/90.

De fato, as infrações passíveis de demissão são claras e de conteúdo normativo e fático definido:

1) crime contra a administração pública (art. 132, I, Lei n. 8.112/90) - vale lembrar, aliás, que o agente penitenciário que deixa de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo, comete crime contra a Administração Pública (art. 319-A, incluído pela Lei federal n. 11.466/2007);

2), abandono de cargo (art. 132, II, c.c. art. 138, Lei n. 8.112/90);

3) inassiduidade habitual (art. 132, I, c.c. art. 139, Lei n. 8.112/90);

4) improbidade administrativa (art. 132, IV, Lei n. 8.112/90);

5) ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem (art. 132, VII, Lei n. 8.112/90);

6) aplicação irregular de dinheiros públicos (art. 132, VIII, Lei n. 8.112/90, c.c. art. 315, Código Penal);

7) revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo (art. 132, IX, Lei n. 8.112/90, c.c. art. 325, Código Penal);

8) lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional (art. 132, X, Lei n. 8.112/90);

9) corrupção (art. 132, XI, Lei n. 8.112/90);

10) acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas (art. 132, XII, Lei n. 8.112/90);

11) transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117 da Lei n. 8.112/1990, prevista no art. 132, XIII, Lei n. 8.112/90:

12) valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;

13) participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, salvo a participação nos conselhos de administração e fiscal de empresas ou entidades em que a União detenha, direta ou indiretamente, participação no capital social ou em sociedade cooperativa constituída para prestar serviços a seus membros, e exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário;

14) atuar, como procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro;

15) receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições;

16) aceitar comissão, emprego ou pensão de estado estrangeiro;

17) praticar usura sob qualquer de suas formas;

18) utilizar pessoal ou recursos materiais da repartição em serviços ou atividades particulares;

19) cometer a outro servidor atribuições estranhas ao cargo que ocupa, exceto em situações de emergência e transitórias).

São infrações, portanto, de conteúdo preciso, para cuja configuração não se confere margem discricionária ao aplicador do direito ou, quando muito, facultam pouca discricionariedade para a autoridade administrativa proceder ao enquadramento das faltas disciplinares nesses tipos.

Já os seguintes tipos disciplinares, que relacionam causas de demissão, conquanto possam conferir alguma faixa de discricionariedade para o administrador público em capitular os fatos irregulares cometidos pelos servidores infratores nessas disposições normativas, têm, entretanto, seu conteúdo e densidade comentados e precisamente circunscritos pela doutrina, a qual delimita a interpretação desses ilícitos. Eis os preceptivos: proceder de forma desidiosa (art. 117, XV, c.c. art. 132, XIII, Lei n. 8.112/90); incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição (art. 132, V, Lei n. 8.112/90); insubordinação grave em serviço (art. 132, VI, Lei n. 8.112/90).

9.1.7 Evolução quanto à idéia inicial do direito francês de desnecessidade de previsão legal das infrações disciplinares, senão apenas das sanções aplicáveis: perspectiva corrente no direito brasileiro e estrangeiro

Constata-se que a idéia antiga, do direito francês, de que as infrações disciplinares não careceriam de previsão legal (nem se lhes aplicaria a exigência de tipicidade como no direito penal), podendo ser punidas todas as condutas dos servidores que infrinjam deveres funcionais em sentido amplo (sem sequer a enunciação das infrações passíveis de penas mais graves, mas somente com a descrição do rol de penalidades cabíveis), tem cedido terreno para a obrigatoriedade de previsão legal, taxativa, das faltas sujeitas a penalidades de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, em nome do princípio da legalidade.

José Bernejo Vera defende a tipicidade das faltas disciplinares:

La reserva de Ley cubre principalmente la tipificación de las infacciones (penales y administrativas) y la determinación de los castigos correspondientes (penas o sanciones administrativas) [...] tiene que ver siempre una norma com rango de Ley la que contenga una verdadera tipificación de lãs infracciones y la que señale com tanta precisión como le sea possible las sanciones pertinentes y las reglas sobre responsabilidad [...] Establecer como elementos esenciales de la infracción administrativa los mismos de la infracción del Derecho Administrativo sancionador al Derecho Penal a que hemos aludido antes. Lo cierto es que el TS lo há proclamado reiteradamente. Por ej., su sentencia de 17 de abril de 1990, entre otras similares, define la infracción administrativa como ‘conducta antijurídica, típica y culpable’. Y la STS de 23 de febrero de 2000 (Ar. 7047) afirma: ‘Para que una determinada acción u omisión pueda ser objeto de sanción es necessario que sea típica, antijurídica y culpable; pressupuestos que quedan eliminados por la concurrencia de causas de justificación o excluyentes de la culpabilidad o antijuridicidad. [...] Para que um conducta sea infracción administrativa es necessário que, además de ser antijurídica, este concretamente prevista por uma norma como tal infracción y tenga atribuída una sanción administrativa. Las normas sancionadoras, como las penales, acotan una parte de las conductas antijurídicas para convertirlas em infracciones administrativas. Las normas establecen los ‘tipos’. Em este sentido se habla del requisito de la tipicidad de la conducta: sólo son infracciones las acciones u omisiones tipificadas como tales o, lo que expresa la misma Idea, las conductas ‘típicas’. La acción u omisión antijurídica pero no típica no constiuye infracción ni puede ser castigada, sin perjuicio de que si lê correspondan otras consecuencias.

[67]

Sim, a propalada atipicidade das faltas disciplinares, se comparadas à previsão dos crimes no direito penal, deve ser compreendida como a possibilidade de existirem tipos disciplinares, relativamente abertos (caso dos preceptivos dos artigos 117, XV, 132, V e VI, todos da Lei federal 8.112/90), cujos elementos podem ser interpretados com relativa margem discricionária pelo administrador público, o qual poderá considerar que certa conduta constitui, ou não, por exemplo, ato de insubordinação grave.

Não mais vinga, contudo, a idéia de atipicidade no sentido de deixar de arrolar, no estatuto disciplinar do funcionalismo, a previsão específica do modelo hipotético das infrações disciplinares mais graves, sujeitas a penas mais severas, como se constata no art. 132, da Lei federal 8.112/90.

No direito penal, os tipos são, em regra, fechados, cujos elementos contêm palavras e ações cujo conteúdo é conhecido ou exaurido na doutrina penalista, não facultando margem para discricionariedade de tipificação, ressalvada a figura das normas penais em branco, completadas por atos normativos administrativos outros, como os crimes de posse de substância entorpecente (o conceito dessa substância é definido em lei ou regulamento administrativo) ou de omissão em notificar doença contagiosa (a relação de doenças de notificação compulsória é definida em regulamento administrativo).

9.1.8 Os limites da discricionariedade administrativa no Estado democrático de Direito: a consagração da tipicidade das faltas sujeitas a sanções mais graves no direito positivo federal brasileiro e na doutrina desde o Estatuto dos Servidores Públicos federais de 1939

O que não se pode abonar é o raciocínio de que o Estado poderia editar uma norma com um único dispositivo acerca da responsabilidade dos servidores públicos ("o servidor será punido, com as penas previstas nesta Lei, se violar dever ou proibição funcional"), sem que exista a relação dos deveres e proibições e a previsão das penas cabíveis para cada espécie de conduta, com o fim de se permitir à autoridade administrativa vasta e irrestrita liberdade para avaliar todo e qualquer fato e aplicar, conforme seu alvedrio e até arbítrio, a punição que achar melhor, até as mais severas, como a decretação da perda do cargo público.

Registre-se, por sinal, que, no direito brasileiro, os Estatutos dos Funcionários Públicos Federais de 1939 e 1952 já fixavam, taxativamente, as hipóteses de aplicabilidade de pena de demissão, tradição mantida, com rigor, no texto da atual Lei federal 8.112/90.

Henrique de Carvalho Simas, comentando o Estatuto dos servidores públicos federais de 1952, revogado pela Lei federal n. 8.112/1990, mas mantido basicamente nas disposições do atual estatuto, explica:

No propósito de impedir ou dificultar o abuso das autoridades, dando aos funcionários maior garantia contra possíveis desmandos e arbitrariedades, a Norma Jurídica, nas Nações democráticas e como corolário do princípio da legalidade, relaciona as faltas administrativas e suas penas disciplinares [...] o Estatuto federal de 1952, para evitar excessos na imposição da pena máxima, enumerou, no art. 207, de forma taxativa, os casos possíveis de sua aplicação [...] A demissão distingue-se por ser uma pena disciplinar que a lei prevê em caso de graves infrações especialmente configuradas. A demissão não se decreta a livre critério do administrador. [68]

Entendimento em contrário seria fugir ao princípio constitucional da legalidade, além de produzir o efeito de esvaziar o princípio da motivação da atuação administrativa, porquanto não somente os crimes comuns, mas até os atos da vida privada e da intimidade, além de qualquer ação ou omissão cometida por servidor público, poderiam ser livre e irrestritamente conceituados como falta disciplinar por autoridades da Administração Pública, as quais poderiam ter "carta branca" para impor quaisquer sanções em um Estado democrático de Direito, pior ainda porque poderiam invocar poderes estritamente discricionários, ilimitados, para tentar afastar o eventual controle jurisdicional sobre os atos administrativos, trazendo de volta à seara administrativa os tempos negros do arbítrio.

Criticando os abusos que a discricionariedade da Administração Pública em enquadrar como "procedimento irregular" diversas condutas do servidor, (inclusive a ponto de nem os órgãos administrativos de consultoria jurídica oficiais, nem sequer o Poder Judiciário definirem a densidade e o conteúdo normativo precisos dessa falta disciplinar), Olavo Tabajara Silveira não abona a amplitude conceitual que o antigo DASP emprestava ao tipo de ilícito funcional em destaque, considerando compreendido na idéia normativa todo procedimento oposto à justiça, à lei, ou contrário aos princípios de moral com que se deve mover o funcionário. O doutrinador pontua:

Sua imprecisão implicava, segundo diziam, em gerar situação de permanente insegurança para o servidor público, em contradição, aliás, com a própria estabilidade garantida pela Carta Magna [...] O pecado maior que se tem verificado, com lamentável freqüência, é o do recurso à invocação do ‘procedimento irregular’, quando nada se consegue apurar em maltratados inquéritos administrativos [...] A figura disciplinar em causa não poderá, jamais, ser erigida em recurso para aproveitamento de processos natimortos ou mal orientados. [69]

Ora, um quadro dessa expressão colide com todos os avanços já consagrados na doutrina e na jurisprudência do direito administrativo no Brasil, haja vista a tendente linha jurisprudencial de controle de legalidade dos atos administrativos disciplinares sob a ótica dos princípios constitucionais da proporcionalidade, razoabilidade, individualização da pena (até da insignificância), motivação, com o efeito de o Poder Judiciário anular penalidades impostas de forma exagerada, incompatível com a menor gravidade das condutas, ou à revelia das circunstâncias atenuantes e demais parâmetros de dosimetria das sanções, quando inadequada a penalidade infligida, à luz dos motivos fáticos que a determinaram, sem falar na sindicância judicial da própria correção quanto à capitulação jurídica do fato e, especialmente, acerca da possibilidade efetiva de defesa quanto às acusações deduzidas.

Não se admite possa a autoridade administrativa punir indiscriminadamente os agentes públicos, menos ainda instituir faltas disciplinares por ato infralegal, nem que resida absoluta insegurança jurídica da parte dos servidores quanto ao conhecimento, decorrente de clara previsão legal, das condutas passíveis de apenação mais grave.

Daí a tendência do direito administrativo disciplinar atual de tipicidade das faltas disciplinares cominadas com penas mais graves, admitindo-se pequena parcela de discricionariedade no enquadramento de algumas condutas (como a demissão por "ato de insubordinação grave"), enquanto absoluta tipicidade quanto a outras, cujos elementos típicos são rigorosa e precisamente enunciados (como, por exemplo, abandono de cargo, inassiduidade habitual, prática de crime contra a Administração Pública, etc.).

A tendência da tipificação das faltas administrativas é apontada por Justino Vasconcelos:

Não se deve exagerar crendo que o poder disciplinar seja, ou possa ser, livre de vínculos. Antes de tudo, é exigência de uma boa ordem jurídica se prevejam com amplitude as possíveis infrações disciplinares e se fixem, com precisão, as sanções correspondentes. Subsiste, assim, a tendência de estabelecer, com normas jurídicas, a noção de falta disciplinar e a natureza e entidade da pena, segundo o preceito nullum crimen sine lege, de graduar a pena, de agravá-la pela reincidência, de presumir a inocência do acusado, e de instituir procedimentos contenciosos para a aplicação das penas disciplinares. Tendência idêntica se verifica relativamente à individualização e previsão da falta disciplinar no texto legal, acomodando-a ao princípio que condiciona a configuração e a punibilidade do delito. [70]

Regis Fernandes de Oliveira aponta:

No campo do Direito Administrativo prevalece o que se rotula de tipicidade, isto é, a infração administrativa há que se estar devidamente delimitada pela regra normativa. As exigências são as mesmas que aquelas para identificação dos crimes. A garantia da Administração para obstar qualquer ação infracional ou arbitrária do agente público está em que deve ela pautar sua conduta pelos ditames legais. [71]

Pedro Guillermo Altamira anota que a incidência do princípio da tipicidade do direito penal deve incidir, no possível, na punição das faltas disciplinares, para prevenir arbitrariedade: "Em derecho penal rige el principio nulla poena sine lege que em lo posible debe hacerse extensivo a la ‘potestad’ disciplinaria, dejando escaso margen a la discrecionalidad para evitar la arbitrariedad. [72]

9.1.9 Responsabilidade administrativa e tipicidade de infrações disciplinares

Conseqüentemente, é descabido falar em responsabilidade administrativa e em demitir do serviço público, se o fato não é previsto, no estatuto dos servidores, como falta passível de demissão ou cassação de aposentadoria, seja um crime contra a Administração Pública, um crime comum ou mesmo um ilícito exclusivamente disciplinar expressamente tipificado, sob pena de se reconhecerem poderes ao administrador público de criar faltas disciplinares, quando a lei não o fez.

Ainda, se não existe previsão legal do fato como causa de demissão dentre aquelas expressamente tipificadas no estatuto do funcionalismo, evidente que não será pertinente a incidência do disposto no art. 142, § 2º, da Lei 8112/90, que prevê a contagem dos prazos prescricionais fixados no Código ou na legislação Penal para responsabilização administrativa dos servidores pela prática de crime. Se a Administração Pública não pode demitir, cassar a aposentadoria ou a disponibilidade pela prática de crime comum, porque não tipificado na lei administrativa como infração disciplinar, resta prejudicada a contagem de marcos cronológicos da lei criminal para punição administrativa, uma vez que, se o fato não é punível em nível funcional, descabe falar de lapsos temporais para o exercício do direito de punir na esfera disciplinar.

Em outras palavras, seria um paradoxo: aplicar-se a regra da contagem dos prazos da legislação penal, para fins do exercício de punição funcional pela Administração Pública, quando o crime não é sequer previsto como fato punível no estatuto dos servidores públicos.

O professor mexicano García-Trevijano Fos confirma que, no direito do México, é obrigatória a previsão em lei das infrações disciplinares, por força do princípio da legalidade:

Ninguna infracción disciplinaria existe mientras no se encuentre prevista em um texto normativo. Ahora bien, es preciso que estén enumeradas taxativamente? Tecnicamente, así deberia de ser, y, por tanto [...] El respeto al principio de legalidad es aqui total y nuestra jurisprudência así lo há establecido (SS. de 7 de abril de 1953, 28 de junio de 1960, 9 de noviembre de 1965, 20 de diciembre de 1967, etcétera). La sentencia de 3 de febrero de 1969 sienta la doctrina de que ‘solo son faltas los hechos previstos como tales, sin que baste que sean reprochables’, ya que la tipicidad juega (em este terreno) aunque sea atenuada, y exige siempre que estén previstas. [73]

A obrigatoriedade de previsão em lei das infrações disciplinares é corroborada por Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernández:

Não há infração nem sanção administrativa possível sem lei que a determine, de uma maneira prévia; em segundo lugar, essa previsão legal, que tem aqui além disso o caráter próprio da legalidade administrativa que conhecemos, a atribuição à Administração de potestade para sancionar, tem que realizar-se justamente através de lei formal [...] o princípio de tipicidade é uma aplicação daquele de legalidade e exige, como sabemos, a delimitação concreta das condutas que são reprováveis a efeitos de sua sanção. A jurisprudência contenciosa recorda esta exigência nas sanções administrativas. Hoje esta particularidade está expressa no art. 25, 1, da Constituição; a lei há de ter determinado de maneira prévia que ‘ações ou omissões’ em concreto constituem infração administrativa, o que exclui cláusulas abertas ou indeterminadas. [74]

Carlos S. de Barros Júnior [75] parece encampar essa idéia de obrigatória previsão estatutária dos crimes como faltas disciplinares, aludindo ao Estatuto dos Servidores federais de 1939 (art. 239, II), quando referia que seria aplicada a pena de demissão a bem do serviço público ao funcionário que praticasse crime contra a boa ordem e a administração pública, a fé pública e a Fazenda Nacional, ou previsto nas leis relativas à segurança e à defesa do Estado:

Determinou a lei estatutária de 1939 que, nos casos de crimes contra a boa ordem e a administração pública, e, outros, enunciados no art. 239. n. II, daquele Estatuto, se efetivasse a responsabilidade disciplinar.

Não pode, destarte, suceder punição disciplinar por fato (crime comum) para o qual o estatuto dos servidores públicos não prevê sanção nem descreve como infração administrativa.

9.1.10 Caráter exaustivo das hipóteses de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade na disciplina da Lei n. 8.112/1990

Carlos S. de Barros Júnior cita Tito Prates da Fonseca para afiançar que as penas expulsivas não se podem aplicar sem determinação legal e que é taxativa a enumeração dos tipos das faltas passíveis de demissão no estatuto disciplinar, ao mesmo tempo em que lembra o escólio de Marcelo Caetano no sentido de que existe

a tendência de fixar na lei os casos em que taxativamente é lícito aplicá-la [...] em face do nosso direito positivo, só as faltas enunciadas, como suscetíveis de demissão, podem acarretar essa penalidade. [76]

Themistocles Brandão Cavalcanti aduz: "A aplicação da pena disciplinar pressupõe uma infração prevista e punida pela lei e uma pena também consignada por uma disposição legal." [77] (destaque não original)

Com efeito, sublinhe-se, a Lei federal n. 8.112/1990 previu, exaustivamente, no seu art. 132, as condutas sujeitas à pena de demissão. Faltas disciplinares ou comportamentos ali não previstos expressamente não podem ensejar a pena demissória, sob pena de ofensa aos princípios da legalidade e da segurança jurídica.

A lição é encampada por Sebastião José Lessa, o qual cita Marcelo Caetano, Victor Nunes Leal e Hely Lopes Meirelles no sentido de que os motivos para a aplicação de pena demissória são vinculados, de maneira que os casos de demissão devem obedecer à regra da tipicidade, com a "prévia definição do comportamento e absoluta correspondência entre o tipo e a conduta." [78]

Consigne-se que o Superior Tribunal de Justiça referendou a incidência do princípio da tipicidade no processo administrativo disciplinar:

A utilização de analogias ou de interpretações ampliativas, em matéria de punição disciplinar, longe de conferir ao administrado uma acusação transparente, pública, e legalmente justa, afronta o princípio da tipicidade, corolário do princípio da legalidade, segundo as máximas: nullum crimen nulla poena sine lege stricta e nullum crimen nulla poena sine lege certa, postura incompatível com o Estado Democrático de Direito. 5 Recurso conhecido e parcialmente provido para anular a pena demissória aplicada ao Recorrente. [79]

Reafirme-se. Os estudiosos do direito administrativo disciplinar [80] já encimam que a discricionariedade fica sobremodo restrita no caso de faltas passíveis de penas mais graves, que constituem atos vinculados, os quais somente podem ser aplicados se houver a presença, inequivocamente demonstrada nos autos do processo administrativo, dos motivos de fato previstos em lei para a imposição da demissão. Vigora a tipicidade das infrações mais graves. É tendência dos estatutos disciplinares do funcionalismo público relacionar, de forma exaustiva, os casos de condutas para as quais será aplicada a pena de demissão, como se vê no art. 132 e nos incisos IX a XVI do art. 117, todos da Lei n. 8.112/1990.

Na verdade, a discricionariedade, em direito administrativo, existe nos termos da lei. Ato discricionário deve gozar de autorização legal, sob pena de se tornar ato arbitrário. Conseqüentemente, é na lei definidora do regime disciplinar dos servidores públicos que se alinharão os limites do poder discricionário do administrador público a quem outorgado o exercício do poder disciplinar.

Se o estatuto do funcionalismo, pois, estabelece faltas disciplinares cujo tipo admite discricionarismo para o enquadramento da conduta (por exemplo: será causa de demissão a prática de "procedimento irregular de natureza grave"), poderá ser aplicada punição correspondente por meio de classificação jurídica discricionária, observada lógica e aproximação estreita entre os fatos e a previsão normativa pertinente.

Se, todavia, o diploma legal capitula infrações disciplinares precisamente delineadas, não haverá margem a distorções no enquadramento jurídico, respeitando-se a idéia de tipicidade estrita.

De todo modo, o que precisa ficar assentado é a tendência dos estatutos disciplinares do funcionalismo em tipificar, exaustivamente, as condutas passíveis de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, definindo as infrações disciplinares de forma o mais precisa possível, a fim de subtrair da autoridade administrativa margem a arbítrio no manejo abusivo do poder de punir servidores públicos.

As penalidades disciplinares gravíssimas, como as suso-aludidas, somente são aplicáveis para as condutas previstas exaustiva (numerus clausus) e expressamente na lei disciplinadora da conduta funcional, como foi seguido no caso da Lei federal n. 8.112/1990 (somente admite demissão para os fatos ajustados aos tipos previstos no seu art. 132).

Até para a imposição de penas mais brandas como a advertência e a suspensão a Lei federal n. 8.112/1990 definiu os deveres e proibições cuja violação implicaria as respectivas penalidades (vide arts. 129 e 130), ressalvando pequena parcela residual de competência discricionária para o enquadramento jurídico dos fatos, como no caso de imposição de advertência aplicável por violação de dever funcional (art. 129, Lei n. 8.112/90).

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello frisa que a pena de demissão "supõe falta grave, enunciada em lei" [81], no que é endossado por Mário Masagão: "O legislador entendeu de catalogar os casos de demissão, declarando nos Estatutos." [82] (destaques não originais).

Também doutrina Odete Medauar:

As condutas consideradas infrações devem estar legalmente previstas; é ilegal apenar servidores públicos por atos ou fatos que não estejam caracterizados, na lei, como infrações funcionais. Essa caracterização se efetua nos estatutos e leis orgânicas das categorias, principalmente. [83]

Nesse sentido é a orientação jurisprudencial do egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região: "A lei não concede, aliás nem poderia fazê-lo, uma autorização incondicionada aos administradores. A punição deve estar atrelada a um pressuposto fático, previamente catalogado como infração administrativa, para que ocorra a punição." [84]

9.1.11 Previsão de crimes comuns como faltas disciplinares no estatuto dos servidores públicos como pressuposto para contagem dos prazos prescricionais da lei penal para punição administrativa

Infere-se, de todo modo (ainda que se elastecesse a finalidade e sentido original do dispositivo do revogado parágrafo único do art. 213 da Lei 1.711/1952, reproduzido no § 2º do art. 142 da Lei n. 8.112/1990, de aplicação restrita aos assim tipificados crimes contra a Administração Pública), que a Administração somente pode contar os prazos prescricionais pelas regras da lei penal quando o mesmo fato é tipificado, de forma autônoma, no estatuto disciplinar administrativo e no diploma criminal pertinente.

José Cretella Júnior anota que as leis administrativas municipais, estaduais e federais repetem delitos capitulados no Código Penal, na Lei das Contravenções, no Código Eleitoral, na Lei de Economia Popular, alumiando e confirmando o entendimento do autor deste livro: "Os crimes não são punidos pela Administração pelo fato de constituírem crimes, mas por estarem definidos de maneira autônoma no Estatuto." [85](destaques nossos)

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, depois de comentar que a prática de crimes que não geram a demissão permite que o servidor continue a receber parte dos vencimentos (ou melhor, auxílio-reclusão em favor de seus familiares) durante o período de cumprimento de pena criminal, aduz: "O ilícito penal, só por si, não enseja punição disciplinar." [86]

Grife-se: um servidor público não pode ser demitido pelo fato de cometer um crime previsto no Código Penal, se o ilícito criminal não é definido de forma autônoma como infração disciplinar no estatuto do funcionalismo, visto que, por força do princípio da legalidade, não podem ser aplicadas punições não previstas em lei (sobretudo no caso de penalidades disciplinares gravíssimas, como é o caso da sanção demissória) pela incursão em conduta que não seja expressamente tipificada no regime disciplinar legal dos servidores públicos dentre as causas taxativas de penalidade de expulsão do serviço público, como são expressamente previstos os crimes contra a Administração Pública, inclusive a corrupção e o abandono de cargo, ou no caso de crime comum de usura, tipificado na legislação penal (art. 4º, a e b, da lei n. 1.521/51) e na Lei n. 8.112/1990 (art. 117, XIV, c.c. art. 132, XIII).

9.1.12 Descabimento da contagem dos prazos prescricionais da lei penal para punição de infrações estritamente disciplinares

Por outro lado, os prazos da lei penal não podem ser estendidos, para fins de cômputo do prazo prescricional de punição das faltas administrativas puras. Se o servidor cometeu insubordinação grave em serviço (falta exclusivamente disciplinar) e peculato (crime que é também tipificado como falta disciplinar passível de demissão), os prazos prescricionais fixados no Código Penal somente incidirão contagem quanto à apenação da prática de crime contra a Administração Pública de peculato, sendo de cinco anos, todavia, por outro lado, o tempo máximo para demissão pela insubordinação grave.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça destacou que o prazo prescricional para punição de falta funcional criminosa de concussão é o da lei penal (que também é capitulada de forma autônoma, na Lei federal n. 8.112/1990, como causa de demissão, enquanto crime contra a Administração Pública: art. 132, I), mas a falta exclusivamente disciplinar também cometida paralelamente pelo acusado, prevista no art. 117, IX, da Lei n. 8.112/90 ("valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública"), se sujeita, entretanto, ao prazo extintivo de cinco anos, capitulado para as infrações administrativas passíveis de demissão (art. 142, I, Lei n. 8.112/90), e não aos ditames do Código Penal. [87]

Ainda sedimentou o Superior Tribunal de Justiça:

A falta administrativa, quando também prevista na lei penal como crime, prescreverá juntamente, no mesmo prazo, tanto para o Direito Disciplinar quanto para o Direito Penal [...] Entretanto, admitindo a existência de falta administrativa residual (Sum. n. 18-STF), na espécie do art. 117, IX, da Lei n. 8.112/90, deve a prescrição regular-se pelo art. 142 desse diploma legal, que prevê o prazo de cinco anos, contados a partir da ocorrência do fato, em face da extrema gravidade da pena de demissão. [88]

Em conseqüência, apesar de a Administração Pública poder punir as faltas exclusivamente disciplinares cometidas por servidor público, como é o caso de improbidade administrativa (art. 132, IV, Lei n. 8.112/90) e se valer do cargo para lograr proveito em detrimento da dignidade da função pública (art. 117, IX, c.c. art. 132, XIII, Lei n. 8.112/90), elas são consideradas faltas residuais, autônomas, diante de crimes comuns (aquele não capitulados autonomamente como causa de demissão no estatuto disciplinar do funcionalismo), de maneira que o prazo prescricional a ser considerado, para fins de contagem da prescrição do direito de punir o servidor público na esfera administrativa, será o do estatuto disciplinar – no caso da Lei federal n. 8.112/1990: 5 anos (art. 142, I), tendo em vista que as faltas disciplinares que não são tipificadas especificamente como crimes na lei penal devem ser apenadas nos prazos legais próprios do regime disciplinar do funcionalismo, não incidindo, em absoluto, aqueles do Código Penal.

Não deve haver confusão, portanto: se o servidor pratica, paralela ou concomitantemente, um crime contra a Administração Pública e uma infração disciplinar pura não caracterizadora de ilícito penal, o prazo prescricional da lei penal somente incidirá, desde que havendo ação penal em curso contra o acusado, para punição demissória pela prática de uma das condutas tipificadas nos arts. 312 a 326 do Código Penal, enquanto para a falta exclusivamente funcional (residual), como a de proceder de forma desidiosa (art. 117, XV, da Lei federal n. 8.112/1990), executada no mesmo comportamento, a contagem da prescrição far-se-á pelos marcos cronológicos ordinários da legislação administrativa, não da norma criminal.

Portanto, indevida a invocação do prazo previsto na lei penal para punição de faltas exclusivamente administrativas.

No que concerne à prática de crimes comuns, igualmente, se não previstos no estatuto disciplinar como causa de demissão, repita-se, não podem ser motivo de direito para aplicar a penalidade demissória, por reflexo do princípio da legalidade e do fato de que a pena expulsória do serviço público depende de motivos vinculados e, por óbvio, da previsão em lei da conduta punida (no caso da Lei federal n. 8.112/1990, no seu art. 132), pressuposto para se falar em responsabilidade administrativa. Do contrário, estar-se-ia admitindo que a Administração Pública usurpasse a prerrogativa do Poder Judiciário em impor a responsabilidade penal aos servidores públicos criminosos, na via do processo-crime.

Assim, por exemplo, se o servidor cometeu crime de falsidade ideológica, por exemplo, ilícito penal comum porque não previsto como crime contra a Administração Pública nem como falta disciplinar no estatuto do funcionalismo, não poderá o exercício do poder de punir administrativo considerar como prazo prescricional disciplinar aquele previsto na legislação criminal para o delito de falso, mas poderá, classificando a conduta como uma improbidade administrativa, típica infração disciplinar (art. 132, IV, Lei federal n. 8.112/1990), demitir o servidor criminoso, para tanto computando o lapso temporal do art. 142, I, do Estatuto dos Servidores Públicos Federais, isto é, 5 anos, não devendo nem podendo a Administração, no caso, aplicar a contagem pelos parâmetros do art. 109, do Código Penal, porque o crime tipificado no art. 299, do Código Penal, não é simultaneamente previsto como falta funcional no regime da Lei 8.112/1990 nem é arrolado como causa de demissão.

Se, todavia, num estatuto disciplinar funcional de um Estado ou Município, capitular-se expressamente que será demitido o servidor que cometer crime de falsidade ideológica (no caso o crime passa a assumir a categoria de falta funcional), aí sim será possível fazer aplicar a regra de que o prazo prescricional para punição da transgressão administrativa obedecerá os parâmetros da legislação criminal, desde que exista ação penal em curso contra o servidor.

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região também julgou no sentido da impossibilidade de cômputo dos prazos da lei penal, se a conduta é expressamente declarada atípica, para fins criminais, pelo juízo penal competente:

4. Inaplicabilidade da regra contida no parágrafo 2º, do art. 142, do Estatuto dos Servidores Públicos Federais (que prevê que "os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime") para alargar o prazo prescricional, haja vista que a própria sentença penal, já transitada em julgado, reconheceu a atipicidade penal das condutas. [89]

9.1.13 Desclassificação dos crimes comuns para faltas exclusivamente disciplinares como meio de viabilizar a punição administrativa, mas segundo os prazos ordinários do estatuto do funcionalismo

Insista-se. Se o delito cometido, previsto no Código Penal ou lei criminal especial, não é especificamente tipificado na lei administrativa como falta funcional, então se cuida de crime comum, o qual, para ser causa de punição disciplinar e para gerar a contagem prescricional respectiva pelos prazos da legislação criminal, dependeria de ser arrolado dentre as causas de demissão catalogadas no estatuto administrativo.

Por exemplo, o servidor que incorrer em prática de estupro de colega de trabalho na repartição poderá ser demitido pelo enquadramento do fato como conduta escandalosa na repartição ou ofensa física em serviço, tipos disciplinares puros, mas o prazo para punição da falta será de cinco anos para demissão, e não os do Código Penal, na medida em que o delito criminal de estrupro não é previsto, expressamente, como causa de demissão, na Lei federal n. 8.112/1990. Pode-se enquadrar a conduta (crime comum), outrossim, como improbidade administrativa, só que o prazo para punição do comportamento será o do art. 142, I, da Lei federal n. 8.112/1990: cinco anos. O motivo de direito da penalidade demissória deverá ser um fato dentre os arrolados no art. 132, da Lei federal n. 8.112/90, sob pena de ilegalidade.

Mauro Roberto Gomes de Mattos [90] confirma a necessidade de que o cometimento de crime comum seja reenquadrado em alguma infração disciplinar para ensejar punição funcional:

Não basta à Autoridade administrativa indicar a prática de um ilícito penal, ela terá que adequar o fato praticado pelo acusado em uma falta disciplinar (infração disciplinar), e não ficar na dependência de uma decisão da instância penal para transportá-la à instância disciplinar. Sem a comprovação de uma falta disciplinar por parte do servidor público (nexo de causalidade) que remeta a um ilícito penal, a simples existência de um crime, que não se relacione com o exercício ou desempenho da função pública, não autoriza a imposição de sanção disciplinar, através de um processo administrativo disciplinar.

Poder-se-ia computar a contagem do prazo da prescrição administrativa pelos prazos da lei penal, relativos ao crime de estupro, porém, se o estatuto disciplinar do funcionalismo ou da carreira específica prevê a demissão em caso de prática de crime contra os costumes, o qual passa a ser, pois, infração funcional.

É o que sucede, por exemplo, no caso de estupro cometido por um policial civil distrital ou federal, pois a prática de crime contra os costumes (atualmente nominados contra a dignidade sexual) é expressamente capitulada como falta disciplinar passível de demissão no regime da Lei federal n. 4.878/1965 (art. 48, I). No caso, como o crime comum do art. 213, do Código Penal (não se trata de crime contra a Administração Pública), é também punível como transgressão administrativa, é, sim, pertinente e legítima a contagem dos prazos prescricionais para punição disciplinar pelos marcos cronológicos da legislação penal.

A demissão pela prática de crimes comuns (aqueles não previstos, de forma autônoma, no estatuto dos servidores públicos federais como infração disciplinar), no entanto, por outro prisma, afigura-se ilegal se invocado o fato criminal como exclusivo motivo determinante da pena administrativa, assim como será descabido, no caso, contar o prazo prescricional pelos parâmetros temporais da legislação criminal, que são impertinentes no caso de crimes comuns não tipificados autonomamente no estatuto disciplinar do funcionalismo, haja vista que seria um "non-sense" contar os prazos da lei penal para punir administrativamente conduta que não é prevista em lei administrativa como passível de imposição de reprimenda funcional pela Administração Publica.

Por isso, o dispositivo do art. 142, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990, trata do prazo para punição disciplinar dos crimes dos arts. 312 a 326 do Código Penal e da legislação criminal extravagante definidos como ilícitos penais contra a Administração Pública, e excepcionalmente dos crimes comuns expressamente classificados como faltas disciplinares, por assim estarem definidos, de forma autônoma, na lei administrativa, hipótese em que serão considerados os marcos cronológicos da lei penal para o exercício do poder disciplinar administrativo, uma vez existente ação penal em curso contra o servidor, ou mesmo condenação criminal já exarada.

Não estando previstos no estatuto disciplinar do funcionalismo como causa de punição administrativa, os crimes comuns não renderão ensejo à contagem dos prazos prescricionais pelos marcos da lei penal.

9.1.14 Interpretação restritiva do art. 142, § 2º, da Lei n. 8.112/1990 na atual disciplina do direito positivo federal

No caso da atual redação da Lei n. 8.112/1990, somente serão computados os parâmetros da legislação criminal no caso de crimes contra a Administração Pública (art. 312 a 326, Código Penal, e outros delitos assim classificados em leis especiais), por serem os únicos tipificados como faltas disciplinares no diploma legislativo dos servidores da União. Nada obsta, todavia, que outros crimes, comuns, possam ser futuramente tipificados, no estatuto, como faltas disciplinares, determinantes da perda do cargo público por meio de demissão.

No caso de crimes comuns, que não são tipificados de forma autônoma no estatuto do funcionalismo, especificamente, como infrações disciplinares passíveis de demissão ou outra penalidade administrativa, grife-se, se não houver o enquadramento da conduta em outra falta estritamente disciplinar (improbidade administrativa, etc. – caso em que o prazo prescricional será o do art. 142, I a III, da Lei n. 8.112/1990, não o do Código Penal), não cabe a punição demissória, sob pena de a Administração Pública impor pena por fato não previsto em lei.

Calha a advertência de Hely Lopes Meirelles: "O que a Administração não pode é aplicar punições arbitrárias, isto é, que não estejam legalmente previstas." [91]

Palhares Moreira Reis escreve que as faltas disciplinares devem estar previstas na lei, juntamente com as sanções cabíveis, sob pena de não poderem ser aplicadas, porquanto o doutrinador leciona que a Lei federal n. 8.112/1990 exige a tipicidade das faltas mais graves, passíveis de demissão, relacionando-as, de forma taxativa, no art. 132, únicas hipóteses em que o autor admite seja imposta a pena demissória: "Como se trata, agora, de pena mais grave, entendeu o legislador ser prudente e elencar as hipóteses em que a penalidade expulsiva da demissão pode ser aplicada." [92](destaque não original)

No mesmo sentido é a cátedra do administrativista Edmir Netto de Araújo, o qual também pondera que, quanto aos crimes comuns, se não descritos de forma autônoma como falta disciplinar na lei administrativa, não poderão render ensejo a punições disciplinares, nem à contagem de prazo prescricional pelos parâmetros temporais da lei penal, visto que não passarão de ilícitos exclusivamente penais, a serem apurados e processados pelo Juízo criminal competente, ressalvando a possibilidade de a autoridade administrativa enquadrar o fato em algum dispositivo que veicula infrações administrativas puras, hipótese em que os prazos prescricionais serão os ordinários do estatuto, não os da lei penal. [93]

9.1.15 Estatutos Estaduais e Municipais que capitulam crimes comuns como infrações disciplinares

Por essa causa que certos estatutos disciplinares dos servidores ou de carreiras específicas da Administração Pública de União, Estados, Distrito Federal e Municípios capitulam, em seu bojo, como faltas sujeitas à pena de demissão, a prática de crimes comuns, como a tortura, o estupro, o atentado violento ao pudor, o cometimento de crime hediondo, tráfico de entorpecentes, terrorismo, causar epidemia com resultado morte, dentre outros, conforme anota Edmir Netto de Araújo, ex vi do princípio da legalidade, haja vista que os crimes comuns passam à condição de ilícitos administrativos e causas de demissão por causa da previsão como faltas funcionais na lei administrativa, aí sim legitimando a contagem dos prazos prescricionais pela lei penal para a punição dos crimes tipificados, de forma autônoma, no estatuto do funcionalismo, como infrações disciplinares. [94]

O Estatuto dos Servidores do Município de São Paulo (Lei Municipal Paulista 8.989, de 29.10.1979) capitula que "será aplicada a pena de demissão a bem do serviço público ao funcionário que praticar crime contra a boa ordem e a administração pública, a fé pública e a Fazenda Municipal, ou crime previsto nas leis relativas à Segurança e à Defesa Nacional" (art. 189, II). A disposição é idêntica à capitulada no Estatuto dos Servidores do Estado de São Paulo (Lei Estadual Paulista 10.261, de 28.10.1968).

A Lei Complementar Estadual Paulista n. 207, de 5 de janeiro de 1979 (Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo), preceitua, outrossim, que "será aplicada a pena de demissão a bem do serviço público, nos casos de praticar ato definido como crime contra a Administração Pública, a Fé Pública e a Fazenda Pública ou previsto na Lei de Segurança Nacional" (art. 75, II).

O Estatuto dos Servidores do Município de São Paulo (Lei Municipal Paulista 11.846, de 06.07.1995) prevê a demissão em caso de prática de assédio sexual, crime comum tipificado no art. 216-A, do Código Penal (incluído pela Lei Federal nº 10.224/2001):

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

O Estatuto dos Policiais Civis do Distrito Federal prevê a demissão em caso de prática de crime comum contra os costumes ou o patrimônio (art. 48, Lei federal n. 4.878/1965).

Vê-se, pois, que os estatutos procuram capitular como infrações disciplinares, passíveis de demissão, a prática de crimes comuns contra a Fé Pública, a Fazenda Pública ou a Segurança Nacional, além daqueles contra a Administração Pública (312 a 326, Código Penal, e legislação extravagante).

Se se interpretasse que seria possível a demissão por todo e qualquer crime comum, independentemente de específica previsão na lei administrativa do fato criminoso também como falta disciplinar, então, chegar-se-ia à conclusão de que os estatutos dos servidores públicos em geral, inclusive a Lei federal n. 8.112/1990 (art. 132, I), conteriam uma série de dispositivos inúteis, desnecessários, pois se teriam preocupado em precisar quais crimes ensejariam punição administrativa, quando, supostamente, todos os ilícitos penais poderiam caracterizar infração funcional, o que, evidentemente, não procede, sobretudo à vista da magnanimidade do princípio da legalidade no direito administrativo, com o efeito prenunciado pelos diplomas legais de autorizar à Administração aplicar penalidades disciplinares em caso de cometimento de infrações criminais comuns.

Não foi por acaso ou sem finalidade útil que alguns estatutos do funcionalismo municipal ou estadual incluíram como falta funcional a prática de crimes comuns, mas precisamente para, em reverência ao princípio da segurança jurídica e da legalidade, permitir a punição administrativa pelo cometimento de ilícitos penais comuns, não cometidos contra a Administração Pública.

Edmir Netto de Araújo é explícito a respeito:

O Estado e o Município de São Paulo tratam de forma imprecisa o assunto, catalogando (art. 257, II, do Estatuto estadual; 189, II, do Municipal) os crimes ‘contra a boa ordem e a administração pública, a fé pública e a Fazenda Estadual (ou Municipal), ou previstos nas leis relativas à segurança e à defesa nacional,’ ampliando ainda mais o campo de incidência. No Estado de São Paulo, ainda, a Lei Complementar n. 207, de 5 de janeiro de 1979 (Lei Orgânica da polícia), em seu art. 75, II, alarga ainda mais o campo de abrangência, pois pune com demissão a prática de ato definido como crime nas normas penais citadas, eliminando a necessidade de decisão jurisdicional que considere crime o ato praticado para a responsabilização, equiparando a situação a dos comportamentos criminosos descritos autonomamente nos Estatutos. Com essas considerações, seriam enquadrados qualquer crime de falso (arts. 289 a 311 do CP), qualquer tipo de crime fiscal ou crime contra as finanças públicas, e os que atentam contra a segurança e a defesa nacional. [...] Na prática, então, quanto aos crimes comuns, é indispensável que a Comissão Processante e a autoridade julgadora procedam ao estudo criterioso de cada caso concreto para o devido enquadramento, inclusive aguardando-se, se for o caso, a decisão judicial: se não for descrita autonomamente a conduta na lei administrativa, remete-se a questão para o Juízo criminal, único competente para declarar a ocorrência de delito e seu autor, sendo aqui integral a comunicabilidade da sentença penal. [95]

Daí que Edmir Netto de Araújo, conquanto admita não ser obrigatório sobrestar o julgamento do processo administrativo disciplinar para que a Administração Pública demita servidor pela prática de crime contra a Administração Pública (porque expressamente catalogado como infração sujeita à demissão no art. 132, I, da Lei n. 8.112/1990), entende, porém, que descabe a punição por crime comum se a conduta não é tipificada, de forma autônoma, no estatuto do funcionalismo, como causa de pena demissória.

O crime contra a Administração Pública, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, para fins administrativos, é infração disciplinar, se tipificado na lei administrativa como causa de demissão, juízo compartilhado por Marcelo Caetano: "O crime contra a Administração Pública é considerado especificamente na lei administrativa como infração disciplinar" [96].

José Armando da Costa ajunta:

A prática de delito contra a Administração Pública pelo funcionário constitui ilícito disciplinar ensejador da pena disciplinar capital (demissão). O justo título gerador da reprimenda demissória é, nesses casos, a prática de crime contra a administração. [97]

Destarte, se o crime contra a Administração Pública é punido porque constitui infração disciplinar, assim tipificado na Lei federal n. 8.112/1990, segue que os crimes comuns não previstos como falta funcional do estatuto dos servidores públicos não podem motivar apenação administrativa, sob pena de agressão à legalidade dos atos administrativos, sobretudo os sancionadores, a não ser que se admita que o Estado pode exercer seu poder de punir de forma livre e irrestrita, independentemente de previsão legal, o que não se conforma ao disposto no caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988.

Nesse particular, calha a advertência do professor Romeu Felipe Bacellar Filho: "A Administração não pode agir quando a lei não autorize expressamente, não podendo incidir sobre a esfera jurídica do indivíduo sem a previsão legal." [98] (destaque não original).

Por corolário, se o ilícito é previsto exclusivamente no campo penal, não tipificado expressamente, de forma autônoma, como falta disciplinar, no estatuto administrativo dos servidores públicos, cuida-se de ilícito puramente criminal, cujas correspondentes apuração e punição somente podem ser ultimadas pela autoridade judiciária competente, não pela autoridade administrativa, a qual somente pode aplicar penalidades previstas em lei, maiormente em caso de condutas passíveis de demissão, cujos motivos fáticos são elementos vinculados.

Se a Administração Pública considerasse que o servidor deveria ser demitido, única e exclusivamente, por cometer crime de falsidade ideológica, estupro, atentado violento ao pudor, prática de crime hediondo, injúria, difamação, violação de sepultura, ocultação de cadáver, etc., deveria ter incluído previsão expressa de demissão nesse caso, ocasião em que, aí sim, seria caso de computar o prazo prescricional da lei penal para contagem da prescrição na esfera administrativa, como se dá nos casos de crimes contra a Administração Pública, previstos como causa de imposição de penalidade demissória aos servidores públicos federais (art. 132, I, Lei federal n. 8.112/1990), de abandono de cargo (art. 138, Lei federal n. 8.112/1990 e art. 323, Código Penal). Consigne-se que não quer dizer que esses fatos não possam ser reenquadrados como infrações disciplinares (como conduta escandalosa na repartição, ofensa física em serviço, etc.), mas os marcos cronológicos, no caso, serão os da lei penal.

Não se confunda, outrossim, o efeito acessório de sentença penal condenatória, quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, ou quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos, nos demais casos (art. 92, I, a e b, Código Penal, com a redação determinada pela Lei n. 9.268/1996), hipótese em que a perda do cargo decorre da pena criminal, e não de uma sanção administrativa, nem de processo disciplinar.

Rogério Greco recorda, aliás, que a perda do cargo público, como efeito acessório previsto no art. 92, I, "b", do Código Penal, por não ter efeitos automáticos, deve ser motivadamente determinada pela sentença criminal condenatória. [99] Cezar Roberto Bitencourt referenda a lição. [100]

Sebastião José Lessa cita jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios no sentido de que a perda do cargo público, como efeito acessório da sentença penal condenatória, somente pode ser declarada após o respectivo trânsito em julgado. [101]

Mas reitere-se: se não existe previsão no estatuto disciplinar do crime como infração disciplinar tipificada em caráter autônomo, não se pode aplicar demissão, nem considerar o prazo da lei penal para computar a prescrição do direito de punir as infrações disciplinares. Calha a lição de Eduardo Pinto Pessoa Sobrinho: "A prescrição da pena decorre da natureza da falta, conforme previsto em lei, e não de eventual vinculação com outras irregularidades." [102]

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. A disciplina da prescrição no processo administrativo disciplinar contra membro do Ministério Público da União. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2573, 18 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/16967. Acesso em: 23 abr. 2024.

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