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A transformação do Estado e da separação de poderes e o Poder Judiciário no pós-positivismo

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27/07/2010 às 17:15
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A idéia de separação dos poderes surgiu inicialmente com Aristóteles. Para o filósofo grego, seria injusto que uma só pessoa exercesse o poder, de modo que ele deveria ser repartido entre oligarquia, aristocracia e democracia para atingir um meio termo ideal, que o mesmo nominou de constituição mista [01].

Bem mais tarde, já na iminência da criação do estado liberal, John Locke voltou a tratar do assunto [02] em sua obra Segundo tratado sobre o governo civil [03]. No contexto da época, a separação dos poderes apresentava-se como uma resposta ao absolutismo então imperante, como garantia das liberdades individuais, na medida em que previa que o poder não deveria persistir apenas nas mãos do soberano, já que desta forma o mesmo poderia tornar-se tirânico [04]. Foi, aliás, a partir desta filosofia que foi possível superar o mencionado estado absolutista, enfraquecendo-o. Para Locke, "para que a lei seja imparcialmente aplicada é necessário que não sejam os mesmo homens que a fazem a aplicá-la" [05]. Assim, previa o filósofo três poderes, embora um deles estivesse indissociavelmente ligado a outro: o Legislativo, poder supremo de fazer as leis, que possuiria um braço responsável por aplicá-las (braço este que mais tarde configuraria o Poder Judiciário); o Executivo, de existência perene, responsável por aplicar as leis; e o federativo, que estaria ligado ao Executivo e seria responsável pelo direito das gentes, isto é, pelo relacionamento com os estrangeiros, com outras comunidades, por decisões de guerra e paz, etc [06].

Foi, no entanto, com Montesquieu que a teoria da separação dos poderes foi sistematizada e ganhou os contornos que persistem até hoje da forma como a conhecemos no sistema romano-germânico. De fato, para o pensador liberal, deve haver três poderes: o Poder Legislativo, o "Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes" e o "Poder Executivo das que dependem do direito civil". Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz as leis; pelo segundo, faz guerra ou paz, envia e recebe embaixadas, estabelece segurança, etc; pelo terceiro, julga os crimes e resolve litígios.

Interessante notar que Monstesquieu, embora preveja o poder de julgar, inovando com relação ao que escrevera Locke, o faz como um poder nulo, de corpo não permanente, que duraria somente o tempo necessário, e atuaria de acordo com a lei [07]. Para ele, o poder de julgar seria neutralizado por si próprio em razão de duas características suas: o modo de formar os tribunais e o modo de decidir dos juízes. É dizer, "o poder de julgar não deve ser outorgado a um senado permanente, mas exercido por pessoas extraídas do corpo do povo num certo período do ano, de modo prescrito pela lei, para formar um tribunal que dure apenas o tempo necessário" [08], e possibilitando, ainda, que o criminoso a ser julgado, de certo modo, escolhesse os seus julgadores, ao aceitá-los. "Em suma, o poder de julgar, em Montesquieu, é confiado a júris" [09]. De outro lado, o julgamento seria limitado a aplicar a lei em concreto, ou seja, o julgador seria meramente a "boca da lei", não podendo ir além, para moderar nem a sua força e nem o seu rigor [10].

Assim o faz o pensador, por temer o abuso do poder de julgar, o qual considera "terrível entre os homens". E, ao fazê-lo, inicia a escola da Exegese [11], para a qual o império da lei, como ordenamento racional da sociedade, capaz mesmo de modificá-la, não deve ser ameaçado pelo arbítrio dos julgadores. Em outros termos, o positivismo jurídico "se realiza quando a lei se torna a fonte exclusiva – ou de qualquer modo, absolutamente prevalente – do direito" [12].

De ser destacado que toda a teoria de Montesquieu, bem assim a escola da Exegese, foram pensadas em uma época em que o pensamento científico ascendia, como reflexo dos ideais de racionalismo do iluminismo então imperante. Nesse viés, o direito deveria ser estudado e aplicado com método científico e de forma avalorativa, é dizer, o direito não poderia se prender a qualquer ponderação axiológica por parte do magistrado que pudesse ameaçar a certeza científica. Direito e moral devem andar apartados, como ocorre nos demais ramos da ciência.

Isso porque, à época, como referido, estava-se superando o absolutismo e a contenção dos poderes do Estado era de rigor. Para tanto, imperava a prevalência de um sistema previsível e seguro, em que o Estado atuasse prevalentemente de forma negativa, abstendo-se de se intrometer nos assuntos privados, pois só assim seria possível garantir de fato a segurança jurídica e as liberdades individuais visadas. A liberdade (na esfera política e econômica) e a segurança jurídica (na esfera jurídica) eram os valores mais preciosos, no contexto da época, em que o que se buscava era a abolição de um sistema absolutista e arbitrário.

Com o passar do tempo, as liberdades conquistadas com a queda do absolutismo e a ascensão do estado liberal se consolidaram e o temor de retorno de um estado absolutista perdeu fôlego. Tal fato, aliado às crises econômicas do início do século XX [13], colocou em xeque os valores clássicos e fez com que os paradigmas acerca do papel do Estado mudassem, passando a se lhe exigir uma atuação mais ampla do que a aquela limitada a meramente deixar de intervir na vida dos particulares. De fato, o Estado passou a ser responsável por responder a certas e novas necessidades do povo [14], diversas daquelas em que bastava um non facere seu, adotando uma postura crescentemente legislativa e interventora. Estava-se, pois, diante do chamado Estado social.

O Estado social, por definição,

é crescentemente legislador e ocupa-se da ordenação da economia e da sociedade, não se entretendo apenas com as miúdas tarefas que cabiam ao Estado liberal, mas atuando em um processo de configuração social e afastando a doutrina de que questões sociais resolvem-se por si mesmas a partir do próprio jogo de forcas sociais em nome da liberdade [15].

O ideário liberal de que todos são iguais e de que, portanto, a liberdade deve imperar para que as relações sejam naturalmente equilibradas é definitivamente largado diante da flagrante constatação de desigualdade material entre os indivíduos.

Estrutura-se, a partir de então, um direito das desigualdades, que procede a discriminações (positivas ou negativas) de certos grupos a fim de atingir um equilíbrio concreto [16]. Adotam-se, a par dos princípios então reinantes da autonomia da vontade e da segurança jurídica, outros, capazes de responder aos anseios sociais que passaram a se revelar [17]. Demais, nota-se a adoção crescente de normas abertas e de princípios, no lugar antes reservado a normas-regras inflexíveis (relembre-se que o Poder Judiciário no Estado liberal não deveria ser mais do que a boca da lei).

Com isso, paralelamente à transformação política do Estado, que de liberal torna-se social, mitiga-se o valor então supremo da segurança jurídica e supera-se também, no âmbito da filosofia do direito, o chamado positivismo jurídico, adentrando-se na era denominada pós-positivismo.

Com efeito, a assunção de direitos de igualdade e o reconhecimento da normatividade dos princípios [18] operou uma verdadeira revolução na chamada ciência jurídica permitindo que se alterassem também os paradigmas do Direito: percebe-se, a partir de então, que o Direito não tem como andar totalmente apartado da moral, como se queria no contexto liberal e a necessidade de adoção de normas mais perenes e duradouras (no caso, os princípios), dado que ao legislador é inviável acompanhar os reclamos sociais com o atual processo legislativo, democrático [19], porém lento.

A nova hermenêutica recepcionou as "[...] tendências axiológicas de compreensão o fenômeno constitucional, cada vez mais atado à consideração dos valores e à fundamentação do ordenamento jurídico. Os princípios ganharam normatividade e foram erigidos à condição de paradigmas dos ordenamentos jurídicos. Por outro lado, a constituição como baliza do Direito, ou como Direito fundamental, é um fato nos Estados contemporâneos ocidentais. Como realça Habermas, o primado técnico-jurídico da constituição diante da lei integra a sistemática dos princípios do Estado de Direito, embora ela signifique apenas uma antecipação relativa do conteúdo das normas constitucionais" [20]

Ora, com a transformação do Estado e do Direito, e com a conseqüente a adoção de normas cada vez mais abertas, verifica-se uma verdadeira transferência de atribuições entre os poderes. Se antes era ao Legislativo que cumpria a detalhada previsão normativa de regras fechadas e inflexíveis, de modo que era dispensável qualquer atividade hermenêutica do julgador, agora, atribui-se a este o papel de dizer o direito no caso concreto, amoldado-o ao contexto em que a lide encontra-se inserida, o que implica a necessidade de uma atuação intelectiva maior do Poder Judiciário, que considere aspectos valorativos e políticos atinentes a cada caso.

O Judiciário, assim, deixa de ser a mera "boca da lei", e a parca responsabilidade que possuía de atuar como poder nulo, mero repetidor do texto legal, cede espaço à mencionada responsabilidade de dizer o direito efetivamente, dando concretude ao conteúdo vago dos princípios.

Considere-se, ainda, que, com o advento do Estado social e do constitucionalismo moderno, em que muitos outros direitos foram garantidos a par daqueles de liberdade, o papel do Poder Judiciário perpassa necessariamente pela efetivação de tais direitos, de segunda e terceira gerações. Tais direitos, como se sabe, exigem uma atuação positiva do Estado e, pois, do Poder Judiciário que, ao efetivá-los, ante a ação ou inação dos poderes responsáveis por implementá-los, necessariamente intervém na esfera de atuação destes, determinando-lhes que cumpram o papel que a Constituição lhes reserva [21]. Aliás, é natural que, ampliando-se as atribuições do Estado, ampliem-se também as do Poder Judiciário. Ele, assim, adquire um papel antes inimaginado de intervir incisivamente na atuação dos demais poderes, pois, se é responsável por fazer observar as leis e a Constituição, obrigatoriamente deve intervir na atuação dos demais poderes que não as cumprem.

E ao fazê-lo, "resgata o status de legitimidade do ordenamento, uma vez que a existência do Estado de Direito pressupõe o respeito as suas normas" [22]. Para Lênio Streck, as "inércias do executivo e a falta de atuação do legislativo passam a poder ser supridas pelo judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. Ou isto, ou tais mecanismos legais/constitucionais podem ser expungidos do texto magno" [23]. Repare-se como essa transformação do Estado reflete-se na interpretação do artigo 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, erigido a verdadeiro dogma da organização política liberal, que diz: "toda sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes estabelecida não tem constituição".

O fato é que, a partir daí, a supremacia de que o Poder Legislativo gozava cede espaço ao Poder Judiciário, que agora exsurge como um poder efetivamente igual em poder, com o perdão do jogo de palavras. É dizer, as relações entre os três poderes foram sensivelmente afetadas e o Poder Judiciário, agora, afigura-se como o terceiro gigante [24], capaz de frear os outros poderes com o seu poder (o poder freia o poder).

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Percebe-se, ademais, como essa transformação promove uma aproximação entre os sistemas romano-germânico da civil law e o anglo-saxão da common law. Neste último, em suas origens, diversamente do que ocorrida no sistema da civil law, em que se temia o arbítrio dos julgadores, temia-se uma tirania do legislativo [25]. Previu-se, assim, um sistema em que a separação das funções do Estado não é estanque e inimiscuível, como no sistema francês. Bem ao revés, estabeleceu-se o chamado sistema de freios e contrapesos, por meio do qual os poderes têm alguma ingerência sobre os outros, que possibilita a sua autonomia e o controle de um por outro. Ou seja, a separação dos poderes não é absoluta, mas justificável na medida em que é capaz de barrar a concentração de poder nas mãos de uma só pessoa [26].

Os autores dos Artigos Federalistas, a respeito da separação de poderes idealizada por Montesquieu, sustentam que o filósofo jamais escreveu que os poderes não poderiam ter qualquer ingerência uns sobre os outros e que deveriam manter-se absolutamente apartados, de modo que a interpretação que fazem da teoria de Montesquieu é melhor que aquela adotada pela França e pelos países da Europa continental, os quais interpretam o filósofo de modo literal e equivocado [27].

Diversas que sejam as interpretações dadas à teoria de Montesquieu por franceses e norte-americanos, o fato é que, hoje, inegavelmente há uma reconfiguração do modelo clássico da separação dos poderes na civil law, mormente no que tange às atribuições do Poder Judiciário, agora muito maiores e capazes de implementar um efetivo controle sobre os demais poderes e a concretização dos direitos fundamentais, donde a sua semelhança atual com o sistema de freios e contrapesos americano.

De toda essa transformação, da qual há vários exemplos legais ilustrativos [28], decorre uma série de implicações, como a questão da legitimidade do Poder Judiciário, não eleito, de dizer o direito no lugar daquele poder democraticamente eleito pelo povo, a questão dos limites que se deve opor ao Judiciário, a questão da racionalidade discursiva, dentre tantas outras. De modo que resta equacioná-las frente aos valores democráticos e com a questão da efetiva separação e controle dos poderes ou funções que dita transferência opera.

Quanto à questão da legitimação democrática do Poder Judiciário, é interessante notar que o sistema americano mitigou a força do Poder Legislativo justamente por temer que a democracia garantida pela supremacia deste poder se transformasse em tirania da maioria ou de uma facção dominante [29], daí o maior poder atribuído, por esse sistema, aos Poderes Judiciário e Executivo. Ora, se o Poder Judiciário presta-se a conter os eventuais abusos do Poder Legislativo (e, por conseguinte, do povo e da democracia), não teria sido ele intuído como o elemento aristocrático da separação de poderes pensada por Aristóteles, ao lado dos elementos monárquico e democrático [30]? Nesse caso, ele a priori não necessitaria da legitimação popular e democrática que se exige do poder legislativo, vez que elemento alheio ao povo [31], necessitando apenas de legitimação que o reconhecesse como elemento mesmo do poder estatal [32]...

Tal legitimação, segundo Pereira e Roesler [33], embasados nas teorias de Alexy e Habermas, poderia ser alcançada por processos de construção dialógica da decisão judicial [34], calcada em critérios racionais de correção material, aqui entendida como aceitabilidade racional apoiada em argumentos, e pelo abandono do mero cumprimento dos ditames lógico-dedutivos, monologicamente conduzidos.

Visto sob este ângulo, o Poder Judiciário poderá sem problemas de legitimação exercer efetivo controle sobre os demais poderes, concretizando assim o ideal clássico de limitação do poder político e aquele moderno da concretização dos direitos fundamentais.


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Sobre a autora
Bruna Bonfante

Servidora pública do Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONFANTE, Bruna. A transformação do Estado e da separação de poderes e o Poder Judiciário no pós-positivismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2582, 27 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17058. Acesso em: 2 nov. 2024.

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