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Monitoramento eletrônico: os caminhos tortuosos da Lei nº 12.258/2010

16/09/2010 às 07:31
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A lei em comento cria vigilância onde não existia, quebrando o pacto de confiança que se estabelece entre o Estado e o preso ao longo da execução da pena.

INTRODUÇÃO

Ano após ano assistimos ao incremento da massa carcerária, em média um acréscimo de 5% (cinco por cento), ou seja, cerca de 23.000 (vinte e três mil) novos presos por ano. Ademais, o Sistema Nacional de Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional – InfoPen anota que 44% (quarenta e quatro por cento) dos presos são provisórios.

Contudo, esses números não permeiam o dia a dia do legislador.

Em que pese a grande massa carcerária ser determinante para o caos que assola o sistema prisional, impedindo que as políticas destinadas ao retorno do preso à sociedade sejam exitosas, e de o relatório da CPI do Sistema Carcerário revelar a cruel realidade em que são submetidas as pessoas recolhidas na maioria nos estabelecimentos penais do país (espaços antigos, arquitetonicamente ultrapassados, inapropriados, minúsculos, escuros, insalubres, enfim, sem a mínima condição de abrigamento humano), permanece, no âmbito do Congresso Nacional, a sanha por medidas cada vez mais duras, sem qualquer compromisso com a mudança do atual cenário.

É o caso da Lei 12.258/2010, que prevê a possibilidade de utilização de equipamento de vigilância indireta pela pessoa condenada em determinadas hipóteses, a chamada "monitoração eletrônica".

Distante do ideário de reinserção, fundamento maior da Lei 7.210/84 (Lei de Execuções Penais), a lei em comento cria vigilância onde não existia, quebrando o pacto de confiança que se estabelece entre o Estado e o preso ao longo da execução da pena.


1 MONITORAMENTO ELETRÔNICO E PROGRAMAS DE REINSERÇÃO: BINÔMIO NECESSÁRIO

Independentemente da dimensão, a superpopulação carcerária é um tema que já permeou (e ainda permeia) o sistema penitenciário de inúmeros países. O seu fim (diminuição ou manutenção em patamares aceitáveis) perpassa necessariamente por uma abordagem multifacetada.

Com efeito, algumas medidas, desde que complementadas por outras, podem auxiliar na diminuição da pressão existente nos cárceres. É o caso do monitoramento eletrônico de presos.

Conforme ensina Whitefield (2005), o emprego do monitoramento eletrônico se torna uma hipótese real de diminuição nas taxas de reincidência quando se combina a solução tecnológica com programas de supervisão focados no comportamento delinquente, levando "disciplina e ordem a vidas frequentemente caóticas".

Lembra ainda o autor que o programa sueco, que combina o monitoramento com programa de supervisão intensiva prestada pelos serviços de reinserção social, reduziu a população prisional em 25% (vinte e cinco por cento). Entre 1994 e 1997, em um universo de 12.000 (doze mil) monitorados, 94% (noventa e quatro por cento) concluíram a execução da medida com sucesso.

Citando como exemplos Holanda, Suíça, Bélgica e Escócia, ressalta o pesquisador que cada um dos componentes de per si possuem vantagens, seja pelo controle, seja pela supervisão, contudo, quando operam conjuntamente "tornam-se o instrumento mais poderoso de todos".

Assim, se de um lado, o monitoramento eletrônico passa a estar à disposição da justiça, de outro, há que se fortalecer as instituições e os programas de reinsersão social.

Por fim, de forma categórica, Whitefield assevera que a tecnologia integrada a outras opções se trata da "oportunidade de fazer uma intervenção poderosa e positiva nas vidas dos delinquentes". Contudo, alerta que seu mau uso resultará, face o descumprimento da medida por ausência de programas sociais, efeito contrário, enchendo ainda mais as prisões.

Nessa esteira, Caiado (2005) revela que a vigilância eletrônica (VE) não pode ser uma experiência dura e fria, "em que a dimensão relacional está ausente ou quase ausente".

Assim como Whitefield, ensina o insigne professor lusitano que a combinação entre trabalho psicossocial e monitoramento é fundamental para se garantir o sucesso da medida.

A visão singular do mestre sobre a importância do binômio em comento merece transcrição (CAIADO, 2005, p. 96):

Trata-se de uma ortopedia social traduzida em ajuda psicológica e relação pessoal (presencial ou telefónica) que ajuda a evitar episódios de ruptura e que favorece, por vezes, mais valias sociais importantes – disciplina pessoal, reestruturação de modos de vida, continuidade de trabalho, estudo ou tratamentos, questões que podem ajudar a modelar comportamentos e a prevenir recidivas.

Mais especificamente sobre a experiência portuguesa, Caiado (2008) afirma que o trabalho social foi essencial para manter o monitorado no programa, antecipando e solucionando crises, tornando-se um plus em relação ao mero controle.

Independentemente da modalidade de monitoramento adotada (front door – destinada a evitar o encarceramento prematuro; ou back door – possibilidade de retirada antecipada de apenados das prisões), ambas impõem a combinação entre "a VE, na fiscalização do confinamento à habitação, com programas de ressocialização ou tarefas úteis que conduzam o condenado à integração social" (CAIADO, 2008).

Em ensaio elaborado por Baiona e Jongenelen (2010, p.70), com o objetivo de estudar os fatores que influenciam a adaptação à medida de coação de obrigação na permanência na habitação com vigilância eletrônica em Portugal, as pesquisadoras verificaram que os monitorados que se sentiram apoiados socialmente cumprem melhor a medida imposta:

Verificou-se que os arguidos que denotam uma percepção mais elevada a nível do apoio social e do apoio geral cumprem mais as regras da medida, quando comparados com os arguidos que as não cumprem. É de salientar, ainda, que os arguidos que cumprem as regras percepcionam mais apoio social e apresentam uma rede de apoio mais alargada do que os arguidos que não cumprem essas regras.

Vê-se, pois, que o monitoramento eletrônico não tem o condão de alterar qualquer cenário no âmbito penitenciário quando desacompanhado de medidas integradoras e de apoio ao monitorado, bem como de estrutura para o pronta resposta a eventos críticos.

Enfim, estudos capitaneados pelo Departamento de Reinserção Social de Portugal, país indicado pela COMJIB – Conferência dos Ministros da Justiça dos Países Ibero-Americanos - para transferir conhecimento sobre "Monitoramento Eletrônico - ME", revelam que o sucesso da solução tecnológica possui esteio nas seguintes premissas:

a) realização de estudo prévio do sistema de ME que proporcione o esclarecimento sobre a que se destina a solução (Para que serve? O que se deseja?), suas vantagens (sociais e econômicas), seus limites, as tecnologias disponíveis, a estrutura humana e física dos centros de monitoramento, o conjunto de atividades conexas (o apoio ao monitorado), o perfil a ser contemplado, as hipóteses de utilização, enfim, todas as questões que permeiam o tema e que visam a suprir as necessidades do Estado;

b) apoiado no estudo acima, o ME deve ser dar após amplo debate com a comunidade judiciária e a opinião pública. Ademais, deve-se evitar a criação de expectativas excessivas. O ME é apenas uma alternativa, e não "a" alternativa. Não se trata de solução mágica;

c) tanto o Executivo quanto o Judiciário devem possuir estrutura que proporcione reações rápidas perante os eventos (descumprimento de parâmetros estabelecidos em decisão judicial; chamadas do monitorado; etc);

d) a implementação deve ser realizada de maneira gradual, nos moldes de programas experimentais (leia-se, programa piloto devidamente acompanhado por comissão de avaliação) que testem as tecnologias e os procedimentos adotados na execução da medida;

e) a previsão (definição, parâmetros, rito, etc.) do ME deve ocorrer em lei própria, sem prejuízo das alterações de dispositivos legais existentes;

f) o ME deve estar necessariamente agregado ao consentimento do monitorado, bem como dos coabitantes;

g) deve haver permanente avaliação do desempenho do ME a fim de se buscar a correção de procedimentos e a melhoria de resultados. Os resultados devem ser disponibilizados ao público como meio de tornar transparente todo o processo;

h) a eficácia do ME não depende apenas da tecnologia empregada; depende da integridade dos recursos humanos e do rigor dos procedimentos (previstos em manuais) de execução da medida; e

i) a tecnologia empregada, à luz dos princípios fundamentais e Tratados de Direitos Humanos, deve ser a menos invasiva possível. Da mesma forma, devem ser estabelecidos procedimentos proporcionais e adequados à finalidade almejada.

Os ensinamentos além-mar revelam que há um longo caminho a trilhar. Não se deve ultimar a alternativa eletrônica sem estudos prévios tampouco sem a realização de experimentações que indiquem a melhor forma de se colocar a medida em prática.

Em suma, há que se entender o monitoramento eletrônico sob uma perspectiva mais ampla. Não se trata uma ferramenta com um fim em si mesma. A solução, portanto, deve estar fulcrada no binômio controle e apoio aos monitorados.


2 LEI 12.258/2010: CAMINHOS TORTUOSOS

A sobrepena (não prevista em lei) imposta pela superlotação dos estabelecimentos penais impulsiona debates na busca por alternativas ao encarceramento. Dentre as propostas que aportaram no Congresso Nacional, ganhou destaque o monitoramento eletrônico de presos (PL nº 4.342/01 e nº 4.834/01).

Em apertada síntese, a medida seria capaz de reduzir o número de presos, tornando factível a observância intramuros dos princípios fulcrados na LEP, além de potencializar a ressocialização extramuros dos monitorados, uma vez que a alternativa tecnológica permitiria o acesso ao trabalho, o convívio familiar e a participação de cursos e atividades educativas.

Contudo, diante de novas propostas (PL 337/2007; PL 510/2007; PL 641/2007; e PLS 165/2007), todas coligidas e discutidas em sede do Projeto de Lei do Senado nº 175/2007 (posteriormente, Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado (SCD) nº 175/2007), a idéia inicial sucumbiu diante da proposta de controle máximo.

Aprovado pelo Congresso Nacional, o SCD nº 175/2007 passou a prever a vigilância indireta por meio da afixação ao corpo do apenado de dispositivo eletrônico que indicasse o horário e a localização do usuário nas hipóteses de:

a) execução de pena restritiva de liberdade a ser cumprida nos regimes aberto ou semiaberto;

b) concessão de progressão para tais regimes aberto ou semiaberto;

c) saída temporária no regime semiaberto;

d) aplicação de pena restritiva de direitos que estabeleça limitação de horário da freqüência a determinados lugares;

e) prisão domiciliar;

f) concessão de livramento condicional; e

g) suspensão condicional da pena.

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Diante do Presidente da República, o projeto em comento sofreu inúmeros vetos, restando apenas o monitoramento nas hipóteses de autorização de saída temporária no regime semiaberto, e de prisão domiciliar. Nascia a "monitoração eletrônica" no Brasil por meio da Lei 12.258/2010.

Em que pese nossos iniciais estudos sobre o tema, estampados no ensaio "Monitoramento eletrônico de presos: liberdade vigiada" (Mariath, 2007), sustentarem a possibilidade do monitoramento eletrônico em inúmeras hipóteses, hoje, diante do aprofundamento na matéria, revemos antigos conceitos para discordar da lei em vigor.

Pelo caminho foram "esquecidas" as hipóteses destinadas aos presos provisórios, bem como o prévio consentimento prévio do sujeito para seu monitoramento, conferindo a utilização do equipamento eletrônico junto ao corpo, independentemente do desejo do monitorado.

Em suma, a lei asfixiou um potencial instrumento de alternativa ao cárcere, transmutando-o em simples ferramenta de expansão do poder de vigilância do Estado. Pior, tanto uma (prisão domiciliar) quanto outra (saída temporária) hipótese cindem o pacto de confiança estabelecido entre o Estado e a pessoa presa. Vejamos.

Conforme dispõe a exposição de motivos da Lei de Execução Penal, a progressão de regime é uma conquista do condenado pelo seu mérito, devendo este demonstrar aptidão, capacidade e merecimento no curso da execução. Especificamente, as saídas temporárias são "etapas da progressão em favor dos condenados que satisfaçam determinados requisitos e condições".

Ora, apenas em situações específicas (maior de 70 (setenta) anos; acometida de doença grave; com filho menor ou deficiente físico ou mental; gestante), a pessoa que cumpre pena em regime aberto (que, pelos seus antecedentes ou pelo resultado dos exames a que foi submetida, apresentar fundados indícios de que irá ajustar-se, com autodisciplina e senso de responsabilidade, ao novo regime) faz jus à prisão domiciliar (art. 117, LEP).

Na mesma linha, a saída temporária no regime semiaberto (art. 122 e segs., LEP) ocorre por merecimento, ou seja, desde que a pessoa alcance alguns requisitos (comportamento adequado, cumprimento mínimo de parte da pena, compatibilidade do benefício com os objetivos da pena, manifestações favoráveis do Ministério Público e da Autoridade Penitenciária).

Assim, ao invés de se debruçar sobre o aprimoramento dos requisitos para a concessão da prisão domiciliar ou da saída temporária, e a criação de condições favoráveis para a efetiva avaliação da pessoa presa (leia-se, capacitação de servidores, contratação de pessoal, aquisição de recursos matérias, disponibilização de infraestrutura, etc.), o Estado subverte a lógica, depositando suas esperanças em uma ferramenta de vigilância à distância como se solução mágica fosse.

Nesse contexto, o legislador cria uma norma querendo fazer crer que a fiscalização eletrônica do pernoite em casa e/ou da proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres garantiriam a ausência de cometimento de crime. Delírio puro!

Por derradeiro, as hipóteses da lei nova, ao contrário do que se almeja quando se busca uma solução tecnológica de alternativa ao cárcere, não diminuem o inchaço carcerário e, pior, aumentam os custos com a execução da pena.

Enfim, a lei em tela, no que se refere ao monitoramento de presos, em nada contribui para a reversão do quadro atual.


3 CONCLUSÃO

A nosso sentir, o monitoramento eletrônico cunhado pela Lei 12. 258/2010 está em total descompasso com as orientações de países que já enfrentaram o problema. A solução apresentada não se trata de uma alternativa para a superpopulação carcerária, vez que não se dedica ao preso provisório tampouco à antecipação de retorno do condenado para a sociedade.

E mais, a lei, ao impor a utilização de equipamento eletrônico junto ao corpo sem prévio consentimento do monitorado, estaria a afrontar a dignidade da pessoa humana.

Em outro giro, diante da relação de mérito e confiança cultivada pela Lei de Execução Penal, a utilização da "monitoração eletrônica" em situações até então reservadas a aferir o grau de responsabilidade de pessoas privadas de liberdade se trata de incremento da intervenção estatal desprovida de qualquer compromisso com uma política transformadora.

Com efeito, a ausência do perfeito entendimento sobre o fim, possibilidades e limitações da via eleita revelou uma ferramenta inócua, desprovida de suporte social, ou seja, incapaz de promover o retorno do preso condenado, ou ainda, a manutenção do preso provisório no meio social.

A efetividade da solução tecnológica somente é afiançada quando esta se encontra atrelada a um programa de reinserção apto a auxiliar o monitorado no cumprimento das obrigações que lhe foram impostas.

Caso contrário, seus efeitos poderão ser danosos, podendo inclusive agravar (se é que isto seja possível) o cenário atual, aumentando as "quebras" das condições impostas e, por seu turno, o número de presos em estabelecimentos penais ou de regressões de regime.

Assim, por entender que não há qualquer mérito em vigiar por vigiar, a "monitoração eletrônica" brasileira não carreia qualquer valor positivo para o sistema penitenciário, não sendo, portanto, um caminho a ser trilhado.


REFERÊNCIAS

BAIONA, Catarina e JONGENELEN, Inês. "Prisões sem grades": factores para o sucesso da medida. Ousar Integrar – Revista de Reinserção Social e Prova, nº 06. Lisboa: Direção-Geral de Reinserção Social, 2010, p. 79-95.

CAIADO, Nuno. Breve apresentação do caso português. Vigilância Electrónica 2002-2004. Lisboa: Instituto de Reinserção Social, 2005, p. 91-96.

CAIADO, Nuno. Vigilância electrónica em Portugal: contributos para história do primeiro ciclo da vigilância electrónica (2002-2005) – 1ª parte. Ousar Integrar – Revista de Reinserção Social e Prova, nº 01. Lisboa: Direção-Geral de Reinserção Social, 2008, p. 79-95.

MARIATH, Carlos Roberto. Monitoramento eletrônico: liberdade vigiada. Ministério da Justiça. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ57DC54E2PTBRIE.htm>. Acesso em: 08 ago. 2010.

WHITEFIELD, Dick. As experiências internacionais da vigilância electrónica. Vigilância Electrónica 2002-2004. Lisboa: Instituto de Reinserção Social, 2005, p. 71-87.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Mariath

Agente de Polícia Federal. Professor de Investigação Criminal da Academia Nacional de Polícia. Especialista em Ciências Penais - Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. Especialista em Execução de Políticas de Segurança Pública - Academia Nacional de Polícia - ANP. Especialista em Ciência Policial e Investigação Criminal - Escola Superior de Polícia - ESP/DPF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARIATH, Carlos Roberto. Monitoramento eletrônico: os caminhos tortuosos da Lei nº 12.258/2010. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2633, 16 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17413. Acesso em: 21 nov. 2024.

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