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Estado, capitalismo e Direito.

Uma análise das concepções marxistas de Lênin e O’Donnell

26/09/2010 às 14:07
Leia nesta página:

1. Introdução:

Estamos cercados por ele. Nossas relações profissionais, por menos influência que queremos que ele tenha, estão pautadas nele. Todas as diversas formas de relação estão incrivelmente conectadas a esse sistema econômico que alimenta, organiza e ditas os rumos da grande maioria da população mundial. Esteja ela ciente disso ou não.

Ao sair de casa para trabalhar, divertir-se, e até descansar temos que, de uma forma ou de outra, lidar com essa construção humana que dita rumos, faz revoluções, integra e desintegra os homens. E influencia a construção de normas jurídicas: É capitalismo.

É inegável hoje que esse sistema econômico prevaleceu como realidade no mundo. Inegável também que, como qualquer fruto da humanidade, possui qualidades e falhas que só fazem crescer a discussão se estamos no caminho certo para encontrar uma forma de construir nossa relação com o dinheiro da melhor maneira possível. Relação com o dinheiro que na verdade sobrepõe-se a verdadeira relação que deve ser construída: a relação entre os homens.

Cercado de defensores o capitalismo estabeleceu-se de tal forma que suas crises são tratadas como se não houvesse outra alternativa para ele. "Novas formas" de capitalismo surgem para equilibrar as distorções criadas pelo próprio sistema, na esperança de que esses "remédios" primeiro curem e depois lapidem, aprimorem esse sistema econômico que é praticado desde os primórdios das relações humanas e é sistematizado desde Adam Smith em 1776 em sua obra a Riqueza das Nações.

Há um, parece, sentimento de inevitalidade para com o capitalismo. Um sentimento de realidade posta e irrecusável.

Mas essa é uma falsa impressão. Diversas correntes de estudiosos há mais de um século estudam e procuram alternativas para o capitalismo. Buscam compreender esse sistema para que, ao identificar suas mazelas, construam novas formas de pautar as relações econômicas do homem.

Os grandes expoentes desse grupo de filósofos são Karl Marx e Friedrich Engels que, através de uma série de estudos, construíram uma doutrina alternativa ao capitalismo que ficou conhecida como comunismo.

Muito difundida, essa doutrina teve diversos seguidores que, cada um fazendo uma leitura particular, apropriou-se da idéias desses autores e construiu sua doutrina. Essas diversas visões aproximam-se e afastam-se na medida em que interpretam Marx e Engels dentro de um contexto particular marcado pelo seu momento histórico e sua visão de mundo.

Essas diversas contribuições à leitura dos fundadores da maior doutrina antagônica ao capitalismo são fundamentais para que consigamos, ao realizarmos uma interface entre elas, entender o Estado como é, e as diversas alternativas para a construção de um novo tipo de relação social e até o papel fundamental do Direito dentro desse contexto.

Esse trabalho tem como objetivo compreender as visões do comunismo através dos olhares de dois autores, Vladimir Lênin e Guilhermo o’Donnell, encontrando pontos de convergência e divergência entre ambos para que consigamos, através deles, estabelecer uma compreensão da visão marxista de Estado e do papel do Direito no contexto capitalista. Não tem, por óbvio, o objetivo de exaurir o tema, mas de iniciar o debate.


1.Restauração através da Revolução: Lênin interpreta Marx

Não há conciliação. A mudança só poderá ser feita, se o povo (proletário) ocupar o poder e destruir o Estado burguês. Essa pode ser tida como uma das principais lições de Lênin em seu livro "o Estado e a Revolução". Há uma inconciliável relação entre as classes que ocupam o território denominado de Estado que somente a revolução é capaz de restabelecer de forma efetivamente justa.

Para Lênin "o Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes" (LÊNIN,1987, p.9) e a própria existência deste Estado é a prova viva de que ambas as classes não poderão relacionar-se de forma pacífica. Prova viva, Lênin recorre a Marx, que sustenta a dominação da classe burguesa através da utilização do Direito que se ocupa em atuar como um instrumento de legalização/legitimação da submissão "amortecendo a colisão dessas classes".

Diante dessa realidade terrível onde os instrumentos de pacificação social são, ao invés de armas na busca de um bem-comum, institutos legitimadores de dominação somente um reestruturação absoluta do Estado pode equilibrar o jogo. Nem que para isso seja necessária a utilização da força: A revolução.

Para Lênin é claro que o Estado é utilizado como meio para a exploração da burguesia. A construção de uma idéia de "Estado acima da sociedade" não significa outra coisa senão a manutenção das desigualdades criadas pela exploração. E mais, a justificação de todo um sistema que só tema privilegiar uma parcela já dominante da sociedade. Essa perspectiva também é observada em O’Donnell como veremos posteriormente.

O fato é que, ao invés da busca tão divulgada até então da mudança gradual e lenta do capitalismo ao comunismo, para Lênin é na ruptura violenta, total e urgente que se encontra a saída para uma sociedade plena e igual. Leciona Lênin "A substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem a revolução violenta. A abolição do Estado proletário, isto é, a abolição de todo e qualquer Estado, só é possível pelo definhamento" (LÊNIN,1987, p.27).

E o Direito, como se comporta? Para a corrente de pensadores marxistas, o Direito não passa de um instrumento eficaz de legitimação da exploração. Ao construir um arcabouço jurídico que fundamenta as relações, a burguesia nada fez senão colocar como "ponto de referência do justo" suas convicções liberais que somente fazem sustentar o status quo. Arremata E B.Pachukanis:

" Deste modo o desenvolvimento dialético dos conceitos jurídicos fundamentais não nos oferece somente a forma jurídica no seu completo desenvolvimento e em todas suas articulações, mas reflete igualmente o processo de evolução histórica real, que é justamente o processo de evolução da sociedade burguesa" (PACHUKANIS,1988, p.25.)

Esse status quo, é sempre bom lembrar, foi construído durante um momento histórico chamado pelo historiador inglês Eric Hobsbawm de "dupla revolução", notadamente pós-revoluções burguesas, com o intuito de manter a liberdade econômica que tinham como principais beneficiários os vencedores da mesma revolução. Assim nos alerta Victor Nunes Leal, sobre o Estado liberal tão questionado pelos Marxistas:

"Esse tipo de Estado era o que mais convinha à burguesia, porque essa classe estava em plena expansão e era requisito essencial do seu desenvolvimento progressivo a liberdade econômica. Desde que a liberdade em todos os sentidos fosse garantida (incluída a liberdade econômica), e uma vez que a propriedade fosse respeitada na sua integridade, ter-se-ia atingido o objetivo da sua luta, estaria realizado o ideal político e social da burguesia" (LEAL,1955, p.105)

Estabelecido como Estado, legitimado como Direito pela classe dominante, o capitalismo embrenha-se de forma notável dentro da realidade social só restando então sua violenta destruição para que a curva da história mude.

E essa destruição é construída pelo povo e para o povo. Expurga-se o dominador, retira dele seus instrumentos de dominação (que iniciam nos meio de produção e alcançam o Direito e o Estado) e estabelece aquilo que foi chamado de ditadura do proletariado, uma concepção de supremacia política que se aproxima daquela criada por Maquiavel do "povo em armas" e inaugura, nas palavras de Lênin "um poder proletário exercido sem partilha e apoiado diretamente na força da massa em armas" (LÊNIN, 1988, p.33). Para isso se faz necessário o surgimento de uma "Democratura", "um Estado democrático (para os proletários e os não-possuidores em geral) e inovador e um Estado ditatorial (contra a burguesia) igualmente inovador." (LÊNIN,1988, p.44)

Mudanças como o pagamento igual para os funcionários do Estado e os operários, direção e controle do operariado armado no Estado são partes da proposta de Lênin. Outra conseqüência inevitável é a substituição dessa máquina jurídica que sustenta o sistema. Uma das mais extremas mudanças é a supressão do "parlamentarismo burguês", visto como ambiente onde o representante da classe dominante "representa" o povo, contrapondo-se a isso Lênin propõe a sua versão de Assembléia de trabalhadores escolhidos pelo povo que exerce uma função não só parlamentar, mas também executiva. São as comunas. Finaliza Lênin: "...destruir sem demora a velha máquina administrativa, para começar imediatamente a construir a nova,(...)isso não é utopia, é a experiência da Comuna, é a tarefa primordial e imediata do proletariado revolucionário" (LÊNIN,1988, p.60).

Todas essas mudanças, construídas a partir de uma violenta ruptura com a classe dominante, expulsa de sua posição através de uma revolução conduzida pelo povo e para o povo só reafirmam a inevitável seqüência histórica que levará a destruição completa do Estado, já prevista por Marx, que culminará na ausência dessa ficção jurídica através da organização do proletário como classe dominante.

A revolução nada mais é então, conclui Lênin, que uma inexorável conseqüência lógica da necessidade de uma nova realidade das relações sociais já desgastadas pela exploração de uma classe (burguesia) que controla um ambiente sócio-político (Estado) defasado e construído para justificar essa exploração. É a restauração do equilíbrio social através da revolução.

O povo, liderado pelo povo, mas através do partido – e é aí onde a doutrina leninista sofre algumas de suas críticas mais contundentes, na tomada do poder constituinte por parte do partido, reorganiza e restaura o Estado [01]

Mas não só a doutrina revolucionária de Lênin buscava a restauração. A restauração também era o objetivo de outro marxista, o argentino Guillermo O’Donnell, como veremos a seguir.


2.A Restauração pela democratização: O’Donnell revisita Marx.

O grande desafio para o argentino Guillermo O’ Donnell é claro: como entender o Estado capitalista autoritário que dominou as Repúblicas Latino-americanas nas ditaduras dos idos de 1960/70. Como o sistema se estruturou, adquirindo "corpo e alma" até, numa simbiose impressionante, construir uma vinculação com esses Estados de tal forma que a exploração econômica e o autoritarismo político dominassem durante mais de uma década essas nações.

Através de seu texto "Anotações para uma teoria do Estado" o autor deixa claro sua intenção de entender esse tipo de Estado e sobretudo, "os processos históricos penetrados por lutas que assinalam a implantação, os impactos e o colapso deste Estado" (O’DONNELL, 1980, p.71)

Para isso é fundamental entender as bases da dominação capitalista. Essa base se escora em diversos tipos de controle identificados pelo autor, o controle dos meios de coerção física, dos recursos econômicos, dos recursos de informação e até o controle ideológico. Para O’Donnell é no controle ideológico que se atua com mais eficiência, mas a condição de possuidor de qualquer um desses controles "permite o exercício da coerção, consistindo em submeter o dominado a severas sanções" (O’DONNELL,1980, p 73). Esses recursos, é evidente, são a base de toda a dominação que o autor que entender.

E é no acesso a esses recursos de dominação que o estudioso identifica o cerne da dominação. Não há acesso de todas as classes que compõe um Estado a esses recursos. Ao contrário, numa sociedade capitalista onde a grande relação estabelecida é aquela realizada pelo trabalhador assalariado e o capitalista, a apropriação do "valor trabalho" evidência mais que a desigualdade, expondo a exploração. Não há, entre essas classes por si só desiguais condições de oportunidade para possuir os recursos de dominação é mais, a construção do Estado coator com o objetivo de institucionalizar as relações, apaziguar os ânimos e garantir a estabilidade coaduna com essa relação de exploração dando legitimidade a exploração e, incrível, participando dela. Conclui O’Donnell:

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" (...) a fiança prestada pelo Estado a certas relações sociais, inclusivas as relações d produção, que são o coração de uma sociedade capitalista e de sua articulação contraditória em classes sociais, não é ima garantia externa nem a posteriori dessas relações. É parte intrínseca e constitutiva das mesmas, tanto como outros elementos – econômicos, de informação e controle ideológico (...). E isto significa, por sua vez, que as dimensões do Estado, ou do especificamente político, não são – como tampouco o é Econômico- nem uma coisa, instituição ou "estrutura": são aspectos de uma relação social" (O’ DONNELL,1980, p.75)

A participação do Estado como sujeito isento as relações sociais, – construção inédita desenvolvida pelo próprio capitalismo – mas que atua sempre quando algo no sistema "falha" para garantir a estabilidade do mesmo é, talvez, o ponto mais interessante da análise de O’Donnell.

O simples fato de o Estado ser o legítimo portador da coação ao mesmo tempo que o responsável pela garantia da ordem (que é capitalista) nos faz desnudar uma das maiores expressões da dominação: A ideológica. Ao supor isenção Estatal o indivíduo não enxerga o quanto o sistema é construído para a manutenção dessa relação. Assim, "supõe que o Estado seja a expressão de um interesse mais geral que o dos sujeitos sociais de cuja relação emana. Mas esse interesse não é neutro ou igualitário; é o da reprodução de uma relação social que articula desigual e contraditoriamente a sociedade" (O’DONNELL,1980, p.77)

Encontramos, nesse momento, uma interseção no pensamento de Marx, Lênin e O’Donnell, que cientes da importância do Estado e, consequentemente, do Direito como instrumento legitimador do capitalismo buscam, cada um de seus modo, esclarecer ao leitor a necessidade de um olhar mais profundo na relação do Estado com os indivíduos que o compõe.

A participação do Direito que, apóia a propriedade, atua como sujeito "isento" que "impõe" a todos uma sociedade aparentemente justa, livre e igual, na contribuição da manutenção e solidificação da sociedade capitalista é muito bem exposta pelo autor. Senão vejamos:

"Esse direito é a cristalização mais formalizada da contribuição do Estado à sociedade qua capitalista. Isto, não apenas porque cria o sujeito ideal descarnado, implícito nas relações capitalistas e na apropriação privada dos meios de produção. Mas também porque, como formalização cogniscível,ensina preventivamente às partes os limites de seus direitos e deveres, diminuindo, portanto, a necessidade de intervenção ostensiva para invocar em última instância a fiança coercitiva do Estado; graças a iss, tal intervenção aparece movida não pelos agentes de um sistema de dominação, mas por sujeitos juridicamente iguais, que "apenas" limitam-se a exigir o cumprimento do que contrataram livremente e na base de situações abstratamente tipificadas nas normas legais" (O’DONNELL,1980,, p. 82)

O que diferencia, afinal, os estudos do revolucionário Lênin e do teórico O’Donnell?

A identificação de ambos os autores dos diversos instrumentos de dominação coincidem em diversos pontos mas, por outro lado, é na forma de reverter essa exploração que notamos a diferença crucial entre ambos.

Para Lênin é na revolução que encontraremos a mudança tão pretendida. Para O’Donnell também encontramos no povo o motor da alteração. Mas não no povo em armas. É através do esclarecimento, da redemocratização, da substituição dos indivíduos que possuem em suas mãos a maquina legitimadora da exploração que, substituídos por pessoas comprometidas com a democracia e com o fim das desigualdades que poderemos acabar com tal dicotomia social.

Reparem bem, ambos os autores não possuem divergências de conteúdo, mas sim de forma. Ambos buscam a substituição dos agentes que compactuam com essa submissão do proletário utilizando do Estado para esse fins por indivíduos que tem o compromisso com a maioria da população.

Enquanto para O’ Donnell a libertação está no esclarecimento que desconstroi idéias arraigadas como cidadania, nação. Que culminará numa redefinição da estrutura estatal através da redemocratização. Em Lênin encontramos a revolução como único instrumento eficaz para a restauração do Estado.

Esta é, sem sombra de dúvidas, umas das diferenças mais notáveis entre esses dois estudiosos na leitura de Marx.


3.Conclusão:

A palavra de ordem é restaurar. Tomar para si aquela estrutura construída e comandada por um grupo de indivíduos que utilizam do Estado e do Direito para a manutenção de interesses pessoais. É essa a grande preocupação dos estudiosos que analisamos. Conhecer, compreender e construir alternativas para o capitalismo. Entender como o Direito legitima esse sistema e buscar rupturas – cada um ao seu modo - na busca por uma reestruturação verdadeira legítima.

Seja através da revolução, seja através da democratização, Lênin e O’Donnell nos oferecem novas visões do Estado e da participação do Direito na busca por um novo sistema que seja verdadeiramente mais legítimo e, porque não, mais humano.

Através desses autores marxistas conhecemos não só as alternativas do capitalismo, mas elucidamos de forma inequívoca o próprio capitalismo, seus meandros, sua estrutura. Talvez seja esta a maior contribuição de Marx e de seus discípulos: o esclarecimento da realidade.


Bibliografia:

HOBSBAWN, Eric J. A Era das Revoluções. 24 ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009;

LEAL, Victor Nunnes. "A divisão de Poderes no quadro Político da Burguesia", em Cavalcanti, T. e outros. Cinco Estudos. Rio de Janeiro: FGV, 1955, p.92-113;

LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec,1987;

NEGRI, Antônio. Poder constituinte – ensaio sobre alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002;

O’DONNELL, Guillermo. "Anotações para uma Teoria do Estado (II e II)". Dados, Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Iuperj, 1980, p.71-92 e 71-82;

PACHUKANIS, E.B. Teoria Geral do Direito E Marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988.


Nota

01 Para todos ver: NEGRI, Antônio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, 2002, p.376.

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Sobre o autor
Deo Campos Dutra

Especialista em Direito Econômico pela UFJF. Professor de Direito Administrativo e Internacional das Faculdades Doctum e Facsum na cidade de Juiz de Fora / MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUTRA, Deo Campos. Estado, capitalismo e Direito.: Uma análise das concepções marxistas de Lênin e O’Donnell. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2643, 26 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17467. Acesso em: 21 nov. 2024.

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