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Desenvolvimento e evolução da hermenêutica jurídica no Brasil República.

Da dogmática jurídica tradicional ao pós-positivismo

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4. DA NECESSIDADE DE LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JURISDICIONAIS NO CONTEXTO DO ATUAL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

No contexto dessa transição atualmente em curso na jurisdição constitucional brasileira, cumpre destacarmos a evolução na aplicação e interpretação das normas jurídicas que tem passado por discursos baseados na necessidade de legitimação dos provimentos estatais.

Dentre as diversas questões envolvendo a legitimidade das decisões judiciais, encontra-se a necessidade de fundamentação destas decisões. Nesse sentido ganha força o discurso em torno de sua efetivação à luz do paradigma atual do Estado Democrático de Direito.

Não é, pois, sem motivo o fato de ordens jurídicas que refletem dito paradigma determinarem, sob pena de nulidade, que as decisões jurisdicionais sejam fundamentadas, no quadro de um devido processo legal. Tal é o caso da Carta Magna brasileira:

"Art. 93- Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

IX-Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes". (BRASIL, 2007, p.57)

Acerca desta legitimidade, o jurista Robert Alexy disciplina que a exigência de fundamentação das decisões judiciais, deve dar-se através de uma argumentação racional, capaz de estender-se a todos os casos em que os membros de uma comunidade jurídica argumentam:

"A questão do que seja argumentação racional ou argumentação jurídica racional não é, portanto um problema que deva interessar somente aos teóricos ou aos filósofos do Direito. Esse problema é colocado com a mesma urgência para o jurista prático, e interessa ao cidadão que participa da coisa pública. Que seja possível uma argumentação jurídica racional depende não só o caráter científico da Jurisprudência, senão também a legitimidade das decisões judiciais." (ALEXY, 2005, p.19)

Ao contrário da teoria da interpretação, proposta por Hans Kelsen, que via na aplicação do Direito o exercício de um poder eminentemente discricionário, como dito anteriormente, o Direito, sob o Estado Democrático de Direito, não é indiferente às razões pelas quais um juiz ou tribunal toma suas decisões. O Direito, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, cobra reflexão acerca dos paradigmas que informam e conformam a própria decisão jurisdicional.

A garantia de certeza nas relações jurídicas deve se dar por meio de padrões normativos, que se manifestem no exercício da jurisdição de forma a fazer com que as decisões judiciais sejam coerentes com o Direito vigente, e adequadas aos casos submetidos à apreciação judicial. Nos dizeres de Jürgen Habermas:

"A tarefa de julgar, para que realize a função socialmente integradora da ordem jurídica e a pretensão de legitimidade do Direito, deve simultaneamente cumprir as condições de uma decisão consistente e da aceitabilidade racional". (HABERMAS, 1996, p.198)

O problema da legitimidade consiste, pois, em como a aplicação de um direito pode-se dar de forma consistente e em conformidade com o quadro normativo vigente, à luz de uma racionalidade fundada no caso concreto, de tal modo que os cidadãos possam aceitá-las como decisões racionais.

Isso significa que estas decisões devem ser tomadas tendo como base o paradigma atual do Estado Democrático de Direito, na medida em que o Poder Público deve viabilizar o exercício da cidadania através da participação discursiva legitimada pelo processo das decisões judiciais que dizem respeito, direta ou indiretamente, aos interesses de um número indeterminado de pessoas.

É nesse sentido que temos o desenvolvimento da denominada Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy e sua proposta de atribuir legitimidade e racionalidade às decisões judiciais.

Essa, portanto, a transição pela qual vem passando a jurisdição constitucional brasileira, de uma perspectiva positivista clássica para uma abordagem que irá trabalhar com valores, princípios e regras, no contexto da denominada Nova Hermenêutica Constitucional.


5. A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA DE ROBERT ALEXY

Ao longo de aproximadamente dois séculos, a subsunção foi tida como única fórmula para compreender a aplicação do Direito. Não há dúvida de que este raciocínio sempre foi de suma importância para a dinâmica do Direito. No entanto, diante do aprimoramento da ciência jurídica, com a conseqüente evolução dos princípios à categoria de normas, a dogmática jurídica deu-se conta de que a subsunção tem limites, não sendo por si só suficiente para lidar com situações que, pelo nível de complexidade, exigem uma maior sofisticação do intérprete na aplicação do direito. Tal argumento pode ser facilmente demonstrado neste exemplo citado pelo professor Luís Roberto Barroso:

"Imagine-se uma hipótese em que mais de uma norma possa incidir sobre o mesmo conjunto de fatos, como no caso clássico da oposição entre liberdade de imprensa e de expressão, de um lado, e os direitos à honra, à intimidade e à vida privada, de outro. Como se constata singelamente, as normas envolvidas tutelam valores distintos e apontam soluções diversas e contraditórias para a questão. Na sua lógica unidirecional (premissa maior – premissa menor), a solução subsuntiva para esse problema somente poderia trabalhar com uma das normas, o que importaria na escolha de uma única premissa maior, descartando-se as demais". (SAMPAIO, 2003, p.482)

O ponto chave elaborado pela chamada teoria da argumentação jurídica pode ser facilmente visualizado neste contexto: se há diversas possibilidades interpretativas acerca de uma mesma hipótese, qual delas é a correta? Ou ainda, qual delas apresenta o melhor argumento? Como verificar se uma determinada argumentação é melhor do que outra?

É justamente nesse contexto que Alexy apresenta sua proposta, como uma alternativa para limitar o positivismo crítico Kelseniano. É uma teoria que atualmente tem sido muito aplaudida, muito estudada e que encontra vários adeptos junto ao colendo Supremo Tribunal Federal.

A proposta de Alexy trabalha com o princípio da proporcionalidade, que para ele envolve a idéia de limite dos limites. Este princípio consistiria em um instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela inserido ou decorrente do sistema.

Assim, tal princípio permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode ainda, operar no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto.

Pois bem, vencidos esses sub-princípios o aplicador da norma poderia inclusive limitar direitos e garantias fundamentais à luz de uma proporcionalidade. Em uma análise mais atenta desta proposta verifica-se que essa perspectiva de limitação da discricionariedade, na verdade, aumenta a discricionariedade, já que investe o juiz na condição de legislador.

No que tange ao sub-princípio da adequação, Alexy vai sustentar que os meios devem ser adequados aos fins, ou seja, o juiz é quem vai analisar se os meios usados pelo Legislativo ou pelo Executivo são adequados aos fins.

Pelo sub-princípio da necessidade, verifica-se se não haveria outro meio menos gravoso de resolver a questão, ou seja, o juiz passa a analisar se aquela norma realmente deve ser aplicada àquele caso concreto, trabalhando numa perspectiva muito mais prospectiva.

E por fim, encontramos a proporcionalidade em sentido estrito, que vai dizer que uma norma para vencer os sub-princípios tem que ser proporcional, ou seja, tem que passar por um critério de balanceamento, qual seja, o ônus é maior ou menor que o bônus. O juiz passa a julgar com preferência de valores.

Nesse ponto não podemos deixar de citar algumas críticas, em especial no que concerne ao notório aumento da atividade discricionária por parte do magistrado, na medida em que o aplicador passa a atuar fora de uma perspectiva normativa, e sim dentro de uma perspectiva política, pragmática, analisando ônus e bônus.

Segundo Marcelo Andrade Cattoni:

"Bens e interesses, assim como valores, podem ter negociada a sua "aplicação", são algo que se pode ou não optar, já que se estará tratando de preferências otimizáveis. Já direitos não. Tão logo os direitos sejam compreendidos como bens ou valores, eles terão que competir no mesmo nível que esses pela prioridade no caso individual. Essa é uma das razões pelas quais, lembra Habermas, Ronald Dworkin haver concebido os direitos como "trunfos" que podem ser usados nos discursos jurídicos contra os argumentos de políticas". (SAMPAIO, 2003, p.536)

A problemática que envolve a teoria de Alexy, portanto, é justamente a de se confundir normas com valores. O Direito, ao contrário do que defende uma jurisprudência dos valores, possui um código binário, ou você aplica ou não aplica, e não um código gradual, onde se aborda princípios como mandados de otimização. É importante ressaltar que normas delimitam o que é correto para todos, são universalizadas, obrigatórias, já os valores dizem o que é bom para mim ou o que é bom para nós, são preferíveis, sendo específicos de pessoas que comungam esses mesmos valores.

Ademais, um provimento jurisdicional baseado única e exclusivamente no princípio da proporcionalidade, sem estabelecer qualquer vínculo com os valores inseridos no texto constitucional, pode gerar a indesejável impressão de ter sido proferido mais por considerações políticas do que jurídicas, o que representa enorme desprestígio para a Justiça.


6. CONCLUSÃO

Não restam dúvidas de que a distinção qualitativa entre regras e princípios, com estes sendo alçados à categoria de normas, constitui um dos pilares da moderna dogmática constitucional, tendo sido indispensável para a superação do positivismo legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas.

Nesse contexto, o reconhecimento dos princípios enquanto disposições normativas implicaram na modificação do papel do julgador, especialmente no controle de constitucionalidade das leis. A função desempenhada pelas cortes constitucionais é então modificada, pois todas as questões podem ser potencialmente constitucionais, bastando para isso que sejam apreciadas com base em um princípio constitucional amplo.

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Assim, com o abandono da teoria tradicional do positivismo jurídico, o trato com os princípios na solução de casos constitucionais passa a exigir uma nova explicação hermenêutica e uma argumentação jurídica capaz de justificar racionalmente o processo de decisão destas cortes.

Esse novo contexto interpretativo constitucional está diretamente ligado a um movimento denominado de pós-positivismo ou neoconstitucioanlismo que tem como principal tarefa equacionar as dimensões do direito, da moral e da política, ao tentar estabelecer de forma racional, as suas formas de entrelaçamento.

Essa mudança de paradigma tem ocorrido no seio do Supremo Tribunal Federal influenciando significativamente a técnica de compreensão e interpretação das normas jurídicas por parte do Guardião da Constituição, que tem de lidar com uma sociedade democrática, pluralista e multicultural, onde coexistem vários grupos ou comunidades formadas e determinadas por fatores raciais, religiosos ou sexuais, todas elas submetidas ao princípio fundamental da igualdade.

Esse, portanto, o desafio atual da jurisdição constitucional brasileira, já que a diversidade cultural de sua sociedade influencia diretamente o processo de consecução dos seus valores constitucionais, na medida em que as técnicas utilizadas nas decisões judiciais, bem como na interpretação dos princípios constitucionais, trabalham esses valores tendo como base normas e diretrizes políticas que se encontram permeadas por conceitos jurídicos fluídos ou imprecisos, tais como segurança jurídica, justiça social, interesse público, enfim, conceitos estes que podem facilmente ser objeto de uma série de manipulações.

É nesse contexto que ganha destaque a teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy com sua proposta de atribuir racionalidade a este novo papel da jurisdição constitucional, conferindo algum nível de objetividade às decisões judiciais, de forma a submetê-la a uma instância de conhecimento e controle.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. A Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2005.

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.

BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.168p.

BRASIL. Constituição. In: Vade Mecum. Org.: Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº279.889/AL – Relator Ministro Francisco Peçanha Martins.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GUNTHER, Klaus. The sense of appropriateness. Trad. Jonh Farell. New York: State University of New York, 1993.

HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms. Cambridge: MIT Press, 1996.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebneichler. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1998.

HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: Ensaios Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. 6ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SAMPAIO, José Adércio Leite, coordenador. Crise e desafios da constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.


Notas

  1. COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República. 8. ed., rev. e ampl.. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 2007, p. 391.
  2. Idem, p. 395.
  3. Idem, p. 415.
  4. BELLO, José Maria. História da República. 6. ed.. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972, p. 20-21.
  5. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. República e federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 46.
  6. Idem, p. 56.
  7. Idem, p. 57.
  8. Paulo Bonavides demonstra que "O povo, fonte constitucional do poder, entra formalmente nas cartas políticas do País desde 16 de julho de 1934, quando se decretou e promulgou a Constituição que introduziu o Estado social brasileiro. O texto de 1891 era omisso a esse respeito, abstendo-se de declarar o fundamento da soberania do poder político, ao contrário da Carta do Império, que explicitamente reconheceu e proclamou todos os poderes representativos como delegações da nação, fruto, portanto, da doutrina da soberania nacional, vigente ainda na organização constitucional da Primeira República, mas substituída desde 1934 pela doutrina nova da soberania popular, que chegava às instituições brasileiras com atraso sem dúvida considerável, cotejado com sua introdução no sistema constitucional de outros países." (BOVANIDES, 2004, p. 309)
  9. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 5. ed., rev. e ampl.. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 326.
  10. Idem, p. 328-329.
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Sobre os autores
Luiz Márcio Siqueira Júnior

Mestrando em Direito Público pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).Advogado.

Rodrigo Alves Pinto Ruggio

Pós-graduado em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da Faculdade de Santa Luzia (FACSAL). Advogado.

Michelle Abras

Pós-graduada em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva. Professora da Faculdade Minas Gerais (FAMIG). Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA JÚNIOR, Luiz Márcio ; RUGGIO, Rodrigo Alves Pinto et al. Desenvolvimento e evolução da hermenêutica jurídica no Brasil República.: Da dogmática jurídica tradicional ao pós-positivismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2643, 26 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17470. Acesso em: 16 abr. 2024.

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