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O desporto e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Contribuição ao estudo do direito desportivo

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05/10/2010 às 15:47
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4.a contribuição da doutrina e da jurisprudÊncia ao estudo do direito desportivo

O Direito é entendido como a soma de princípios, normas e leis, que, em algumas hipóteses, podem admitir sanções, regendo as relações individuais e coletivas. Como define Emile Boudens [43]:

O fim do Direito é a manutenção da harmonia dos interesses gerais e a implantação da ordem jurídica. Direito Desportivo, então, pode ser definido como o conjunto das normas reguladoras da atividade desportiva, referentes à sua pratica, organização e administração, cabendo à Justiça Desportiva regular, com igualdade, os direitos e dirimir conflitos de interesses surgidos nas relações desportivas

Como demonstrado desde anteriormente, o desporto é um fenômeno social, que o Direito não deve ignorar e sim regulamentar. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki Moon [44], assim expressou a importância do esporte para a sociedade:

O desporto é cada vez mais reconhecido como uma ferramenta importante para ajudar as Nações Unidas para alcançar os seus objectivos, nomeadamente de Desenvolvimento do Milénio. Com a inclusão do esporte no desenvolvimento de programas de paz e de uma forma mais sistemática, as Nações Unidas podem fazer uso pleno desse custo-eficiente ferramenta para nos ajudar a criar um mundo melhor.

4.1.A Doutrina

Como expressa o Dr. Rizzatto Nunes [45] sobre a função e a importância da doutrina como fonte do direito:

A doutrina tem um papel fundamental, como auxiliar para entendimento do sistema jurídico em seus múltiplos e complexos aspectos.

A questão da doutrina como fonte do direito não é pacifica. Há aqueles que entendem que ela não pode ser fonte, porque apenas descreve a autêntica fonte do direito, que são as normas jurídicas, ou porque forma esquemas e modelos que explicam o ordenamento jurídico por construções teóricas; ou, ainda, porque, quando muito, ela inspira o legislador para e na produção de normas jurídicas.

A doutrina é uma necessidade para o estudo do direito e para a implementação das suas fontes originárias, as leis. Quanto mais leis existirem, mais doutrina haverá e, como consequência, o aperfeiçoamento da própria lei ou a criação de novas normas, instituindo assim um ciclo constante de renovação e evolução do Direito.

A doutrina desportiva surgiu de uma necessidade própria, única e peculiar, visando à aplicação para os entes que participam desse universo "paralelo". Como expõe Oliveira Viana [46]

O direito desportivo organizou instituições suas peculiares, que velam pela regularidade e exação dos seus preceitos e dispõe de uma constituição própria – clubes, ligas, federações e confederações – cada qual com administração regular, de tipo eletivo e democrático, além de um código penal seu, com a sua justiça vigilante e os seus recursos, agravos e apelações, obedecidos uns e outros, na sua atividade legislativa ou repressiva, como se tivessem ao seu lado o poder do Estado (...) Quanto mais profundo e mais extenso o movimento do desporto, mais vivo o direito desportivo (SENGER, 2006, APUD VIANA. P. 13)

Até mesmo o professor André Franco Montoro [47], expôs como via o direito desportivo:

Um direito esportivo estatal, representado pelas leis ou normas estatais que disponham sobre a atividade esportiva; um direito social esportivo, constituído de normas reguladoras do esporte, elaboradas e aplicadas pelas próprias organizações esportivas. (SENGER, 2006, APUD MONTORO. P. 14)

4.2.A Jurisprudência dos Tribunais

A jurisprudência, segundo Rizzatto Nunes [48] é assim definida:

Define-se jurisprudência como o conjunto das decisões dos tribunais a respeito do mesmo assunto. Alguns especificam "conjunto de decisões uniformes dos tribunais" e outros falam apenas em "conjunto de decisões", sem referência à uniformidade

A jurisprudência sobre desporto produzida pelos tribunais brasileiros tem sua autorização expressa no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, ao dispor que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito", permitindo que algumas matérias sejam levadas à apreciação do Judiciário. Mas esse permissivo deve ser lido em consonância com outro dispositivo constitucional, o artigo 217, § 1º, para alguns, parcial exceção ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Parcial porque, segundo a dicção constitucional, a jurisdição não deixa de incidir totalmente, na medida em que "o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, reguladas em lei", prevendo-se o prazo de sessenta dias para que a mesma profira decisão final (§ 2º, do mesmo artigo).

No Tribunal de Justiça do Paraná existiu no ano de 1993, uma tentativa por parte de alguns competidores promoverem uma Medida Cautelar Inonimada para que o Poder Judiciário apreciasse a matéria.

TJRJ - APELACAO: APL 4430 RJ 1993.001.04430

Relator(a): DES. JORGE LORETTI

Julgamento: 26/10/1993

Órgão Julgador: QUINTA CAMARA CIVEL

Publicação: 08/11/1993

Ementa

Medida Cautelar Inominada requerida em relacao a competicao desportiva patrocinada pela Confederacao Brasileira de Automobilismo. Preliminar acolhida, no sentido de que antes da Justiça comum deve pronunciar-se a desportiva, em face do que estabelecem os pars.1. e 2., IV, do artigo 217, da Constituição Federal. Apelacao conhecida para extinguir-se o processo sem julgamento do merito. (DP)

Acordão

ACOLHIDA PRELIMINAR, PARA EXTINGUIR-SE O PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MERITO, MANTIDAS AS PENAS DA SUCUMBENCIA, IMPOSTAS NA SENTENCA.

Resumo Estruturado

DESPORTO, MEDIDA CAUTELAR INOMINADA

Referências Legislativas

ART. 217 PAR.1 PAR.2 INC. IV CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 EXTINCAO DO PROCESSO.

O dispositivo constitucional abre a possibilidade de a justiça comum adentrar no mérito de julgamentos da desportiva, no que tange à disciplina e às competições desportivas, após a extinção do prazo constitucional de 60 dias, da instância administrativa de curso forçado. Entretanto, conforme pesquisa realizada, não foram localizados precedentes nesse sentido, no período pós Constituição. Há de se considerar, também, que o recurso à justiça comum é desestimulada pelas sanções duríssimas aplicadas pelos entes internacionais de administração do desporto.

A propósito, expõe o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes [49]:

As normas da FIFA permitem a exclusão de todos os que recorrerem à justiça comum, segundo o artigo 57, do regulamento da entidade maior do futebol mundial. Mas há que se ponderar que o recurso à justiça, na verdade, nada mais é do que a consolidação de uma proteção judicial efetiva, a exclusão é aceita por todos os participes; se não impugnaram a exclusão, logo, aceitaram-na.

Decisões de entidades como a FIFA coíbem a aplicação do dispositivo constitucional do artigo 217, parágrafo 1º, por essa razão merecendo censura.

A competência da Justiça Desportiva é relativa apenas a questões de infrações disciplinares das competições. Entretanto em período anterior a CF/88, ela foi competente para julgar as causas referentes às questões trabalhistas, da relação empregatícia entidade esportiva/atleta. Após a promulgação da Constituição Federal a competência do assunto passou a ser da Justiça do Trabalho. Já existe, inclusive, precedente judicial nesse sentido:

DIREITOS TRABALHISTAS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. "Compete à Justiça do Trabalho conhecer e dirimir controvérsia derivante da relação de emprego entre clube e atleta de futebol, envolvendo direitos típicos trabalhistas, nos termos do inc. I do artigo 114 da CF/1988, sendo o imperativo da lei inderrogável pela vontade das partes, ou pela competência prévia da Justiça Desportiva, que, a teor do par. 2º do art. 217 da Constituição da República, limita-se a questões de natureza disciplinar e administrativa relativas às competições de desporto." Ementa² - "CESSÃO DO ATLETA. EXTINÇÃO DO PASSE. VIGÊNCIA DO INSTITUTO JURÍDICO. EFEITOS. Nos termos do par. 2º do art. 13 da Lei n. 6.354/1976, o atleta de futebol que teve o passe negociado entre clubes até 25.03.2001 faz jus à percepção de 15% do seu valor, eis que a extinção do instituto jurídico somente ocorreu em 26.03.2001, por força do art. 93 da Lei n. 9.981/2000 c. c. o art. 28 da Lei n. 9.615/1998". (DATA DE JULGAMENTO: 11/05/2006 RELATOR (A): LUIZ CARLOS NORBERTO ACÓRDÃO Nº: 20060329771PROCESSO Nº: 01207-2001-045-02-00-0 ANO: 2003 TURMAS: 7ª DATA DE PUBLICAÇÃO: 23/06/2006)

A jurisprudência dos tribunais é de suma importância para o desenvolvimento e evolução do direito, uma vez que ela deve ser considerada uma fonte do direito, pois sempre se aprende com a prática.

4.2.A Jurisprudência da Justiça Desportiva

A Justiça Desportiva, regulamentada nos artigos 49 a 55 da Lei Pelé, tem por princípio essencial a celeridade processual, como disposto no art. 217, § 2º, da CF/88. E para alcançar esse objetivo constitucional, foi adotado um rito parecido com o rito sumaríssimo, onde a conciliação, instrução e julgamento se dão na mesma sessão. Entretanto, vale ressaltar que o processo desportivo segue um rito próprio e especifico por meio da Procuradoria Desportiva e relatório do árbitro da competição. Na audiência existe o espaço para o contraditório e a ampla defesa, além de o defensor ainda contar com o recurso da sustentação oral.

A preocupação com o tempo de duração dos processos é uma constante nos tribunais de justiça desportiva, como expõe Álvaro Melo Filho [50]:

A Justiça Desportiva é contemplada no art. 217, §§1º e 2º do Texto Constitucional, porquanto desempenha relevante função educacional-disciplinadora no contexto desportivo, sobretudo em face de dois aspectos:

a) a especificidade da codificação desportiva e as peculiaridades das normas e regras promanadas dos entes desportivos, aliadas à impreparação e insensibilidade dos tribunais comuns para a sua adequada compreensão;

b) as exigências de celeridade decisória no âmbito das competições e o receio da inexistência de pronta e tempestiva resposta dos órgãos da Justiça Comum

Para viabilizar a celeridade do processo, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva deu ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva a competência de editar súmulas, com o seu entendimento predominante (art. 25, IV).

Como exemplo de agilidade, cita-se essa sentença que condenou dois atletas da A.A. Ponte Preta, um por prática de jogo violento e outro por jogada desleal:

Data da sessão:

19/10/2009 - 17:00h

Processo: 115/2009

Jogo: E.C. Juventude (RS) x A.A. Ponte Preta (SP) – categoria profissional, realizado em 02 de outubro de 2009 – Campeonato Brasileiro – Série B. Denunciados: Edilson Mendes Guimarães, atleta da A.A. Ponte Preta, incurso no Art. 254 do CBJD; Manoel Almeida Junior, atleta da A.A. Ponte Preta, incurso no Art. 250 do CBJD.AUDITOR-RELATOR: DR. DIEGO MENDES ECHEBARRENA.

RESULTADO: "Por unanimidade de votos, suspender por 03 partidas o atleta Edilson Mendes Guimarães, por infração ao Art. 254 do CBJD; por maioria de votos, suspender por 01 partida com o voto de qualidade do Presidente, o atleta Manoel Almeida Junior, por infração ao Art. 250 do CBJD, contra os votos dos Auditores Relator e Dr. Laerte Marzagão que absolviam, ambos pertencentes à Associação Atlética Ponte Preta. Considerando para abatimento da penalidade a suspensão automática, caso já cumprida." 

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A evolução e modernidade da justiça desportiva são visíveis e servem de exemplo, mas ainda tem muito a evoluir esse ente "jurisdicional privado", com novas medidas para a promoção do esporte. A tendência é que se tenha um aumento significativo na demanda, e as jurisprudências estarão à disposição dos defensores e procuradores esportivos para servirem de base em suas defesas e teses.

4.3.O Direito Desportivo: Ramo Autônomo do direito?

Há alguns anos, o direito desportivo vem se consolidando como a área jurídica que mais cresce no país. Apesar de essa área ter começado a evoluir há pouco, ela já não é tão recente. Inclusive existem obras da década de 1950, como a de João Lyra Filho, "Introdução ao Direito Desportivo", que é datada do ano de 1959. Entretanto, durante muito tempo esta área foi tratada de forma desmembrada como Direito Desportivo do Trabalho, Contratos Desportivos, Administração e Gestão Desportiva, Justiça Desportiva, Doping e outras áreas.

Seu crescimento expressivo se deu posteriormente à aprovação da Lei Pelé, que regulamentou a Justiça Desportiva, trouxe novidades para a costumeira relação que havia entre os clubes, inclusive modificações no modo de atuação, que deixariam obrigatoriamente de ser associações para se tornarem sociedades civis com fins lucrativos.

Em vista da crescente demanda da área, no ano 2000 a Ordem dos Advogados do Brasil organizou a primeira comissão temática sobre o assunto. Como expõe Monguilhott [51]

Foi justamente com o intuito de fortalecer este novo ramo da advocacia que surgiu, no ano de 2000, entre Advogados catarinenses a idéia de criar uma comissão dentro da OAB de Santa Catarina dedicada ao Direito Desportivo. Logo que eleito, o Presidente Adriano Zanotto encampou a idéia e criou a Comissão de Estudos do Direito Desportivo, destacando mais uma vez o pioneirismo desta Seccional que logo foi seguida por outras e recentemente pelo Conselho Federal tendo, aliás, o tema sido incluído na próxima Conferência Nacional dos Advogados a realizar-se em setembro de 2005 em Florianópolis.

No entanto, para que um ramo do Direito seja identificado como autônomo ele deve preencher os requisitos que nos ensinam a doutrina. Requisitos esses que se condicionam em ter princípios inter-relacionados, normas próprias e sistematização. Nas normas próprias podemos adicionar legislações, doutrinas e jurisprudências.

Existe corrente de doutrinadores que defendem o direito desportivo como autônomos e outra, contrária, que defende não haver necessidade dessa autonomia. Como cita Luiz Roberto Martins Castro [52], aqueles que acham desnecessário o reconhecimento, classificam-no como uma ramificação do direito administrativo ou constitucional, necessitando, pois, que fosse criado "um corpo legislativo específico e independente de ingerência de outros ramos do Direito e que seja de aplicação exclusiva a assuntos desportivos".

Já os doutrinadores que reconhecem e entendem ser o Direito Desportivo um ramo autônomo do Direito, argumentam que "o Direito Desportivo é oriundo da necessidade de regulamentação do desporto além de suas regras básicas de competição". [53]

Todavia uma terceira corrente sufraga que o Direito Desportivo ainda tem muito a se fortalecer no que se refere às legislações que permeiam o ramo, mas a tendência caminha no sentido da autonomia em um futuro próximo. Uma característica que demonstra essa evolução do Direito Desportivo é a eficácia das normas constitucionais que tratam do desporto, bem como a presença de legislação, doutrina e jurisprudência específicas.

Entretanto ainda falta cumprimento de normas constitucionais importantes, como o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional, que precisa de uma lei para diferenciá-los, hoje tratados de forma análoga. Há a necessidade de criação de legislações específicas para outras modalidades esportivas, uma vez que boa parte das normas é dirigida para o futebol, sendo estendida para as demais. Quando a legislação tratar os "iguais igualmente e os diferentes na medida de suas diferenças" acreditaremos que o Direito Desportivo finalmente terá se tornado um ramo autônomo.

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Sobre o autor
Danilo Araujo Gomes

Bacharel em Direito. Assistente Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Danilo Araujo. O desporto e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Contribuição ao estudo do direito desportivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2652, 5 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17563. Acesso em: 19 abr. 2024.

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