5. Limites de atuação das guardas municipais
Sempre ressalvando-se que as guardas municipais não podem efetuar policiamento ostensivo, atribuição das polícias militares (art. 144, §5º, CF/88), qual seriam os limites da atuação das primeiras na proteção do patrimônio e dos serviços dos municípios?
Façamos uma breve análise sobre em que consiste o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, missões outorgadas pela Carta Magna às polícias militares. É de definir-se também qual o alcance dessas atribuições, a fim de chegarmos a uma conclusão sobre a presença ou não de exclusividade em relação a cada uma delas e, enfim, ao que interessa ao nosso tema principal, formular uma questão. Poderiam as guardas municipais exercer policiamento ostensivo e atuar na preservação da ordem pública?
Sobre o tema diz o Prof. Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
"A polícia ostensiva, afirmei, é uma expressão nova, não só no texto constitucional, como na nomenclatura da especialidade. Foi adotada por dois motivos: o primeiro, já aludido, de estabelecer a exclusividade constitucional e, o segundo, para marcar a expansão da competência policial dos policiais militares, além do ‘policiamento’ ostensivo. Para bem entender esse segundo aspecto, é mister ter presente que o policiamento é apenas uma fase da atividade de polícia. A atuação do Estado, no exercício de seu poder de polícia, se desenvolve em quatro fases: a ordem de polícia, o consentimento de polícia, a fiscalização de polícia e a sanção de polícia (...) o policiamento corresponde apenas à atividade de fiscalização; por esse motivo, a expressão utilizada, polícia ostensiva, expande a atuação das Polícias Militares à integralidade das fases do exercício do poder de polícia. O adjetivo "ostensivo" refere-se à ação pública da dissuassão, característica do policial fardado e armado, reforçada pelo aparato militar utilizado, que evoca o poder de uma corporação eficientemente unificada pela hierarquia e disciplina". [07]
O Desembargador Álvaro Lazzarini é categórico: "...as atividades de polícia ostensiva admitem perfeitamente a condição de exclusividade, cabendo integral e privativamente às Polícias Militares" [08].
De fato, outra não pode ser a leitura da Constituição. A nenhum outro órgão é atribuída a missão de exercer o policiamento ostensivo. É mister exclusivo das polícias militares. Razão pela qual a nenhuma guarda municipal poderá ser outorgada, por meio de lei, a incumbência de efetuar esse policiamento. Há situações, como veremos, em que a atividade das guardas municipais pode ser confundida com policiamento ostensivo, como a utilização de viaturas, efetuação de rondas e utilização de armamento. Não há razão de ser dessa confusão. Trata-se de mero exercício das funções das guardas com os recursos existentes a fim de fazer frente à atuação dos criminosos.
E quanto à preservação da ordem pública, seria ela atribuição exclusiva das polícias militares? A resposta se faz negativa. O art. 144, §5º da CF/88 atribui às polícias militares a missão de preservar a ordem pública. Ora, o caput do mesmo artigo afirma: "A segurança pública (...) é exercida para a preservação da ordem pública (...) através dos seguintes órgãos: (...)".
Não apenas as polícias militares devem preservar a ordem pública, mas também os demais órgãos previstos na Constituição, como a polícia federal, as polícias civis, etc. Tal afasta qualquer pretensão de exclusividade nesse mister por parte das polícias militares. E como afirmei no início do texto, sendo integrantes do sistema de Segurança Pública constitucional, as guardas municipais, dentro de suas atribuições, possuem responsabilidade pela preservação da ordem pública.
O Desembargador Lazzarini novamente nos socorre, com uma observação final sobre o tema: "A preservação abrange tanto a prevenção quanto a restauração da ordem pública, no caso, pois seu objetivo é defendê-la, resguardá-la, conservá-la íntegra, intacta, daí afirmar-se agora com plena convicção que a polícia de preservação da ordem pública abrange as funções de polícia preventiva e a parte da polícia judiciária denominada de repressão imediata, pois é nela que ocorre a restauração da ordem pública (...) [09]"
Tal proteção da ordem pública requer uma postura ativa das guardas municipais. Em que pese lhe seja vedado o policiamento ostensivo, não se exigirá das guardas a inércia, enquanto o patrimônio municipal é dilapidado de forma cada vez mais criativa por larápios, e os serviços são ameaçados por resistências injustificadas, desobediências e desacatos, em total desrespeito à autoridade pública.
Dentro da sua atuação as guardas podem e devem patrulhar as ruas do município a fim de reprimir agressões ao seu patrimônio e serviços, planejando sua atuação com as técnicas modernas utilizadas por outros entes policiais, disponibilizando e alocando seus recursos materiais e humanos (sempre escassos diante das crescentes necessidades de segurança) de forma a maximizar sua atuação e atender às prioridades. Tal inclui o uso de qualquer meio de locomoção disponível.
Tal patrulhamento, é bom que se ressalte, não deve servir para desviar as guardas municipais de suas funções. As rondas dos integrantes das guardas e as viaturas devem priorizar a proteção dos bens e serviços dos municípios. Verificando qualquer agressão aos bens que tem por missão constitucional proteger, os guardas municipais devem agir a fim de reprimir a infração, estando plenamente autorizados a se utilizaram da força e dos recursos necessários a fim de impedir a prática delituosa.
E qual seria a postura a ser adotada pelos guardas municipais em caso de presenciarem delito cometido em face de pessoa diversa do município, como, por exemplo, um roubo tendo por vítima um transeunte ou uma agressão a bem de propriedade privada ou de ente federativo diverso?
Ousamos dizer que os guardas municipais, dentro das suas possibilidades e recursos, poderão reprimir o ilícito, estando autorizados também nesse caso a se utilizarem da força, podendo efetuar a prisão em flagrante, como qualquer do povo, nos termos do art. 301 do Código de Processo Penal. Em conseqüência, ao agirem, não lhes é vedado realizar busca pessoal e a apreensão de armas e objetos utilizados na prática de crime ou destinado a fim delituoso, nos termos dos arts. 240 e 244 do mesmo Código.
Como integrante do sistema de Segurança Pública da Constituição, as guardas tem uma parcela de responsabilidade pela manutenção da ordem pública. Em não sendo possível a repressão do ilícito, devem atuar de forma a comunicar a ocorrência imediatamente às forças policiais e coletando e preservando dados que auxiliem na investigação futura, inclusive preservando a cena do ilícito até a chegada da polícia judiciária. A comunicação, a cooperação e a coordenação entre as forças de preservação da segurança pública se faz necessária, para o bem dos próprios munícipes.
Sempre é bom lembrar da lição de Pedro Luís Carvalho de Campos Vergueiro, à época Procurador do Estado de São Paulo:
"Assim, tais vigilantes do patrimônio municipal, quando no exercício de suas funções, estarão – mediatamente de fato e não por força de obrigação legal, sem ser atividade inerente às suas atribuições – dando, como qualquer cidadão, proteção aos municípios. A sua mera presença nos locais designados, junto a logradouros públicos ou próprios municipais, prestar-se-á como força psicológica em prol da ordem, beneficiando, assim, de forma indireta, os munícipes. Ou seja, essa vigilância do patrimônio municipal, por via de conseqüência, implicará proteção para os munícipes: aquela como atribuição decorrente da norma jurídica, e essa como um plus empírico resultante daquela" [10]
Acresce ainda José Hermínio Rodrigues, então Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo: "A Polícia Militar da capital paulista, por uma questão humanitária, soma 25% a mais de suas ocorrências em atendimentos de caráter sócio-assistencial, que deveriam ser atendidas pelo Município, tais como: parturientes, migrantes desprotegidos, mendigos, alcoólatras, pessoas localizadas, crianças desamparadas, acidentes pessoais, etc." [11]
Como visto, as guardas municipais não precisam ser desvirtuadas de suas funções para bem servir aos anseios da população por segurança. Bastaria o atendimento da sua missão constitucional e o atendimento das ocorrências ditas "sociais" da polícia militar, e que na verdade são o atendimento de carências referentes ao interesse local, municipal.
Nesse sentido, cabe citarmos o ensinamento do Prof. Diógenes Gasparini [12] sobre a atuação e as prioridades dos municípios na preservação da ordem pública:
"De outro lado, temos o aspecto econômico, e aqui cumpre lembrar que a Constituição de 1988 beneficiou os Municípios, carreando-lhes mais recursos do que recebiam anteriormente. Mas isso, para revertê-los nas atividades sociais básicas de saúde, educação, transporte, moradia e saneamento básico, conforme a própria Carta determina. Essas são as prioridades do Município, e, se atacadas de rijo, proporcionarão, indiretamente, maior segurança pública, porque evitarão a conduta delitiva, originária justamente da falta dessas condições primárias de sobrevivência digna. Além do que, cabe aos órgãos públicos municipais evitar que regiões da cidade se deteriorem, quer pelo abandono, quer pelo uso indevido do espaço público, devendo, outrossim, cuidar da limpeza, da iluminação, da eliminação de vielas, devastar matagais, conservar parques e jardins, sem o que, darão condições favoráveis para o cometimento do crime.
(...) Aos Municípios cumpre atacar as causas da criminalidade, não as suas conseqüências. Não se pode pensar em solucionar os problemas sociais criando mais e mais polícia. É sabido que os Municípios enfrentam limitações orçamentárias a ponto de não terem recursos suficientes para o atendimento da demanda de equipamentos urbanos capazes de contribuir para uma melhor qualidade de vida e bem-estar da população. Assim, reafirmamos que não nos parece conveniente, nem lógico, carrear parcela razoável de seu orçamento, para a criação e manutenção de uma estrutura policial, de alto custo, concorrendo com o Estado e a União. (...) Para concluir, sustentamos não caber ao Município destinar recursos visando atividades policiais voltadas à ordem pública, mas, sim, empregar as verbas orçamentárias na melhoria das condições sociais da população, contribuindo, dessa forma, para que haja considerável decréscimo no índice de criminalidade, vez que ela é um fato social, transcendendo o quadro repressivo-policial."
Não é preciso que se diga, os municípios brasileiros tem muitas carências. Uma guarda municipal bem estruturada e treinada, que priorize sua missão constitucional, o que por conseqüência traz segurança aos seus munícipes, agindo em conjunto com as demais forças de segurança, e cuidando os administradores municipais de priorizar o atendimento das necessidades sociais, será uma peça importante no bem-estar de um dado município. Tal afasta qualquer necessidade de deturpação das funções das guardas e de sua transformação em uma "polícia do município" ou da criação futura de uma instituição nesses moldes, como previsto em inúmeros projetos de lei e emendas à Constituição que aguardam votação no Congresso Nacional.
6. Guardas municipais e policiamento preventivo
A priori, cabe apontar no que difere a polícia preventiva da polícia ostensiva. Tendo já analisado no que consiste a polícia ostensiva, trago em adição a definição sucinta de Lazzarini, que a define como sendo a "...ação policial em que são empregados homens ou fração de tropa engajados, que possam ser identificados de relance, quer pela farda, quer pelo equipamento, armamento ou viatura" [13].
Tal definição contrasta com a definição de polícia preventiva, que no dizer do mesmo autor é a polícia administrativa por excelência, regida que é pelos princípios jurídicos do Direito Administrativo, incidindo sobre bens, direitos ou atividades. A linha divisória é a ocorrência ou não de ilícito penal. Estando um órgão no exercício da atividade policial preventiva e ocorrendo a infração penal, pode este passar a desenvolver a atividade policial repressiva, fazendo atuar as normas de Direito Processual Penal, inclusive, se necessário, com a prisão em flagrante do infrator, colheita de provas, etc [14].
Pode, enfim, as guardas municipais exercer funções de polícia preventiva? A resposta é positiva, em termos.
O ex-delegado Bismael B. Moraes, acertadamente a nosso ver, nota que não há impedimento constitucional para que se atribua poder para o exercício de polícia preventiva às guardas municipais (ou a qualquer outro órgão) [15]. Não há qualquer órgão responsável pela segurança pública que possua exclusividade nesse mister, ao contrário do policiamento ostensivo, a cargo das polícias militares.
Ensina Bismael Moraes: "Logo se vê que, caso haja interesse numa exegese jurídica que mais convenha à comunidade (destinatária efetiva do serviço público), as ruas, praças, estradas, os edifícios e estabelecimentos do Município podem ser objeto de proteção pelas Guardas Municipais. E, nesse seu mister, havendo risco para a segurança pública, periclitando a harmonia social ante possível infração penal, poderia o integrante da GM deixar de realizar ato de polícia preventiva e evitar o delito, em defesa da sociedade, ou deveria quedar-se inerte, como a dizer ‘isso é tarefa da polícia ostensiva?’".
Ousamos responder, coerentes com o que temos defendido, que na proteção dos bens, serviços e instalações do município, e, de forma mediata, de sua população, sem a qual suas funções não teriam o menor sentido, as guardas municipais devem agir de forma preventiva, e, na eventualidade de seus integrantes presenciarem um ilícito, podem e devem agir de forma a impedir qualquer delito (mesmo os que não atentem de forma direta ao objeto material que defendem) que presenciem, com a utilização da força necessária, comunicando a ocorrência às forças policiais, com a efetuação de prisão em flagrante (tal pode justificar-se por um dever legal ou na qualidade de "qualquer do povo") e podendo colher provas e preservar a cena do crime.
O limite a se observar é que as guardas municipais não serão substitutas sejam das polícias militares ou das polícias civis. Numa ocorrência policial, por exemplo, a atuação das guardas na preservação de uma cena de crime se dá em colaboração com a Polícia Civil ou Federal, que por sua vez atuam como polícia judiciária nos termos da Constituição, até porque são um dos órgãos com o dever de Estado de zelar pela Segurança Pública. Isso não significa que um membro da guarda municipal será o encarregado de instaurar e presidir o inquérito policial, o que seria absurdo e inconstitucional.