Artigo Destaque dos editores

A Convenção OIT nº 169 e a participação das comunidades indígenas e quilombolas no licenciamento ambiental

15/11/2010 às 10:46
Leia nesta página:

Resumo: O licenciamento ambiental, em decorrência do princípio constitucional da publicidade exposto no artigo 225, § 1º, inciso IV, da Constituição, deve conter instrumentos aptos a conferir a participação coletiva, inclusive das populações indígenas e quilombolas afetas pelo empreendimento analisado. A Convenção OIT nº. 169 busca disciplinar a questão, merecendo, todavia, análise e interpretação adequada à realidade legislativa e institucional do Estado brasileiro.

Palavras-chave: Licenciamento ambiental. Participação pública. Indígenas e quilombolas. Convenção OIT nº. 169. Audiências públicas.


INTRODUÇÃO

O licenciamento ambiental, instrumento essencial da política nacional do meio ambiente [01], ao exercer sua função de analisar a viabilidade ambiental de determinado empreendimento ou atividade, deve contemplar toda a gama de impactos por ele causada, sob a perspectiva de uma visão holística de meio ambiente.

Assim, não apenas as questões relativas ao meio ambiente natural são consideradas, mas, com destacada relevância, a análise dos impactos sócio-econômicos insere-se no contexto da avaliação de impactos ambientais. Nesse seara, imprescindível se mostra apreciar os prejuízos e benefícios incidentes sobre as comunidades indígenas e quilombolas atingidas.

Visando regulamentar a questão, surgiu no plano do direito internacional a Convenção OIT nº. 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, assinada em 27 de junho de 1989, e posteriormente incorporada ao arcabouço jurídico pátrio pelo Decreto nº. 5.051/04, cujas prescrições merecem a devida análise, a fim de – identificando sua correta interpretação – conferir-lhe plena aplicabilidade.


DA APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO OIT Nº. 169

O ponto fulcral do presente trabalho volta-se à análise dos dispositivos da Convenção n° 169/OIT, especialmente em relação à interpretação que imponha ao órgão licenciador a obrigação de promover – no bojo dos processos administrativos de licenciamento ambiental de sua competência – procedimentos especiais de consulta às comunidades indígenas e populações quilombolas eventualmente presentes na área de influência do empreendimento.

Dispõe a citada convenção, no que interessa ao tema em apreço, em seus artigos 6° e 7°, in verbis:

"Artigo 6o

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

Artigo 7o

1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente." (g.n.)

A compreensão dos Direitos Humanos como um tema de Direito Internacional, constitui um movimento extremamente recente na história jurídica, surgindo, a partir do Pós-Guerra, como resposta aos abusos cometidos especialmente durante o nazismo. Este é o pano de fundo que a nova perspectiva dos direitos humanos busca conferir um paradigma ético para a sociedade internacional [02].

Nesse sentido, uma das principais preocupações desse movimento foi converter os direitos humanos em tema de legítimo interesse da comunidade internacional, o que implicou nos processos de universalização e internacionalização desses mesmos direitos.

Cada Estado, ao aderir às regras internacionais de direitos humanos, não apenas introduz e reafirma em seu ordenamento jurídico interno os preceitos ético-jurídicos aceitos no campo internacional, mas também se torna responsável pelos atos cometidos em seu território perante a comunidade internacional.

Esse importante movimento, todavia, ao buscar universalizar direitos fundamentais de proteção à dignidade humana, não implica o objetivo de uniformizar mundialmente o tratamento conferido ao tema, de forma a força a aplicação idêntica dos dispositivos em todos os Estados signatários, haja vista que cada país possui suas particularidades sociais, históricas e jurídicas que impõem a adequação das regras à identidade local.

Assim, a aplicabilidade de qualquer convenção internacional de direitos humanos – como sói ocorrer com a Convenção n° 169/OIT – não pode prescindir do respeito às regras internamente colocadas, as quais, ao passo de obrigadas a respeitar os paradigmas axiológicos referendados pelo Estado no plano internacional, mantém sua vigência enquanto compatíveis com o diploma internacional.

Tal assertiva, decorrência da impossibilidade fática de aplicação uniforme do direito em todos os Estados, é expressamente afirmada na Convenção n° 169/OIT, como se observa do preceito abaixo colacionado:

Artigo 34

A natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para por em efeito a presente Convenção deverão ser determinadas com flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada país."(g.n.)

Transpondo-se o preceito acima para o licenciamento ambiental, observa-se que a interpretação dos preceitos que impõem a consulta aos"povos interessados, mediante procedimentos apropriados" e o estabelecimento de "meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente (...) na adoção de decisões" (itens 1, "a" e "b", do art. 6° da convenção) devem guardar compatibilidade com as regras postas para a condução do procedimento, no plano interno.

Nesse contexto, os estudos de avaliação ambiental realizados como base para a análise da viabilidade ambiental do empreendimento levam em consideração a noção ampla de meio ambiente, abarcando – além dos aspectos puramente ecológicos/naturais – a apreciação sócio-econômica do projeto, "destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos" (artigo 6°, inciso I, "c", da Resolução CONAMA n° 01/86).

Aqui, serão analisados e ponderados os impactos ambientais que o empreendimento eventualmente causará aos povos indígenas, populações quilombolas e tradicionais.

Todavia, a realização desse importante estudo não pode se dar ao arrepio da repartição institucional de competências entre os diversos entes da Administração Pública, imputando aos entes licenciadores atribuições funcionalmente afetas a outras entidades de Direito Público.

Essa é a razão pela qual o procedimento de licenciamento ambiental – a despeito de conduzido fundamentalmente pelo órgão competente do SISNAMA – conta com a efetiva participação dos chamados órgãos intervenientes, cabendo a cada um, em suas respectivas esferas de competência, contribuir para que seja alcançada a melhor gestão ambiental do empreendimento licenciado, conforme prescreve a Resolução CONAMA n° 01/86:

"Artigo 11 - Respeitado o sigilo industrial, assim solicitando e demonstrando pelo interessado o RIMA será acessível ao público. Suas cópias permanecerão à disposição dos interessados, nos centros de documentação ou bibliotecas da SEMA e do estadual de controle ambiental correspondente, inclusive o período de análise técnica,

§ 1º - Os órgãos públicos que manifestarem interesse, ou tiverem relação direta com o projeto, receberão cópia do RIMA, para conhecimento e manifestação.

(...)" (g.n.)

No mesmo sentido, prescreve a Instrução Normativa Ibama n° 184/08, responsável pela definição do procedimento de licenciamento no âmbito do órgão federal:

"Art. 21. Aos órgãos envolvidos no licenciamento será solicitado posicionamento sobre o estudo ambiental em 60 dias e no que segue:

• OEMAs envolvidas - avaliar o projeto, seus impactos e medidas de controle e mitigadoras, em consonância com plano, programas e leis estaduais;

• Unidade de conservação - identificar e informar se existe restrições para implantação e operação do empreendimento, de acordo com o Decreto de criação, do plano de manejo ou zoneamento;

• FUNAI e Fundação Palmares - identificar e informar possíveis impactos sobre comunidades indígenas e quilombolas e, se as medidas propostas para mitigar os impactos são eficientes;

• IPHAN - informar se na área pretendida já existe sítios arqueológicos identificados e, se as propostas apresentadas para resgate são adequadas.

§ 1º Os OEMAs intervenientes deverão se manifestar em 30 dias após a entrega do estudo, a não manifestação será registrada como aprovação das conclusões e sugestões do estudo ambiental.

§ 2º Os órgãos intervenientes deverão se manifestar em 30 dias após a entrega do estudo, a não manifestação será convertida em condicionante da licença prévia, neste caso a licença de instalação não será emitida até a definitiva manifestação dos órgãos federais intervenientes informando sobre os locais onde o RIMA estará disponível, abrindo prazo de quarenta e cinco dias para o requerimento de realização de Audiência Pública, quando solicitada."

Destarte, observa-se que a legislação pátria concretiza a participação das comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais por meio dos entes públicos institucionalmente responsáveis pela tutela dos interesses desses segmentos especiais da sociedade, cujas detrimento histórico pela sociedade autoriza a realização uma discriminação positiva, com amparo no princípio da isonomia.

Dito preceito, longe de contrariar o espírito da Convenção n° 169/OIT, encontra-se expresso no artigo 6°, item 1, "a", quando afirma que a consulta aos povos deve ocorrer por meio de procedimento apropriados, "e, particularmente, através de suas instituições representativas", dispositivo que guarda perfeita consonância com o regramento vigente para o licenciamento ambiental.

Assim, cada um dos órgãos intervenientes – especialmente a FUNAI e Fundação Palmares – tem a obrigação de legitimar sua participação no procedimento de licenciamento por meio do estabelecimento de instrumentos que permitam aos povos protegidos expor suas ponderações, dúvidas e anseios, a fim de que estes sejam internalizados no procedimento de licenciamento através de suas instituições de apoio.

Ao ente licenciador, portanto, não é imputada a obrigação de promover oitivas específicas para cada população indígena, tradicional ou quilombola presente da área de influência do empreendimento, sendo suficiente que se assegure a participação dos respectivos entes públicos representativos, bem como promova as audiências públicas, cuja participação é a todos oportunizada.

Pensar de forma contrária significa desnaturar as atribuições funcionais das entidades ambientais, ao passo de esvaziar as competências dos órgãos intervenientes.

Outrossim, tampouco se pode confundir a necessidade de participação das comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais com a realização de audiências públicas – sob os ditames da Res. CONAMA nº 09/87 – no interior de suas terras.

Isso porque, como o próprio nome já indica, a audiência deve ser espaço coletivo, sendo facultado o ingresso e participação de todos aqueles que se colocarem como interessados na questão.

É evidente que uma terra demarcada especialmente para garantir a manutenção das características culturais específicas de um povo – cuja natureza e função impõem a restrição de acesso – não é o local apropriado para a realização de audiências públicas, cuja realização, como o próprio nome já indica, impõe a ampla possibilidade de acesso.

Assim, impossibilitada se mostra a realização de audiências públicas no interior dos espaços indígenas e quilombolas protegidos, sendo diversos os instrumentos de participação popular.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Noutro giro, inviável se mostra qualquer interpretação da Convenção OIT nº. 169 no sentido de que as expressões "conseguir o consentimento acerca das medidas propostas", "direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento" ou "controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural" (artigos 6°, item 2, e 7°, item 1) impliquem a obrigatoriedade do assentimento integral das comunidades para a realização do empreendimento.

A República Federativa do Brasil tem como princípio fundamental a organização política sob a forma de democracia (artigo 1° da Constituição [03]), cujo conceito, apesar de plurívoco, inegavelmente não se compatibiliza com a possibilidade de qualquer grupo social deter a prerrogativa de decidir, sponte propria, a possibilidade de realização de uma dada atividade.

Entender que às populações indígenas, tradicionais ou quilombolas é dado obstar a continuidade do procedimento pela sua simples vontade, sob o pretexto de que seu consentimento é requisito essencial, equivaleria a referendar a "ditadura das minorias", conferindo tratamento anti-isonômico em relação a todo o mosaico de outros interesses que envolvem qualquer empreendimento.

O regramento da convenção, portanto, deve ser compreendido no sentido de concretizar o princípio participativo-popular ínsito à gestão solidária do meio ambiente (artigo 225 da Constituição), impondo-se o acesso à informação, a garantia de manifestação – in casu, especialmente por meio dos entes intervenientes –, bem como o não emprego de "nenhuma forma de força ou de coerção que viole os direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos interessados" (artigo 3° da Convenção n° 169/OIT).

A análise da viabilidade do empreendimento, portanto, com a consequente manifestação quanto à possibilidade, ou não, de sua realização, será realizada exclusivamente pelo órgão ambiental tecnicamente competente para tanto, sendo as ponderações dos órgãos intervenientes e das populações representadas incorporadas ao processo, mas sem a prerrogativa de obstar, por si só, a continuidade do procedimento.


CONCLUSÃO

A participação das comunidades indígenas e quilombolas potencialmente afetadas pelos empreendimentos e atividades sujeitas à licenciamento é elemento essencial para a realização do direito fundamental à participação, corolário do princípio democrático.

A interpretação das regras da Convenção OIT n. 169, todavia, não pode ignorar o arcabouço jurídico e institucional vigente no Estado brasileiro, a fim de impor não apenas a obrigatoriedade de realização de audiências públicas específicas, mas ainda – com maior gravidade – considerar a anuência desses relevantes segmentos sociais como condição de validade do licenciamento ambiental.

A internalização das demandas, questionamentos e dúvidas dos povos protegidos deverá ocorrer, fundamentalmente, em conformidade com o texto da própria convenção, por meio dos órgãos públicos institucionalmente destinados a tutelar tais interesses, respeitando-se não apenas as atribuições regulares dos órgãos licenciadores, mas ainda o procedimento inscrito na Resolução CONAMA nº. 01/86.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 26 set. 2010.

BRASIL. Lei de Política Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm>. Acesso em: 28 set. 2010.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

PIOVESAN, Flávia. Perspectivas para uma justiça global. Disponível em: <http://norbertobobbio.wordpress.com/2010/04/18/perspectivas-para-uma-justica-global/>. Acesso em: 28 out. 2010.


Notas

  1. BRASIL. Lei de Política Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm>. Acesso em: 28 set. 2010.

  2. PIOVESAN, Flávia. Perspectivas para uma justiça global. Disponível em: <http://norbertobobbio.wordpress.com/2010/04/18/perspectivas-para-uma-justica-global/>. Acesso em: 28 out. 2010.

  3. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 26 set. 2010.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Bernardo Monteiro Ferraz

Bacharel em Direito. Procurador Federal. Subprocurador Chefe Nacional do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERRAZ, Bernardo Monteiro. A Convenção OIT nº 169 e a participação das comunidades indígenas e quilombolas no licenciamento ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2693, 15 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17828. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos