5.A POSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI OU ATO NORMATIVO POR TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS FISCAIS.
Com a edição da MP 449/09, e sua posterior conversão na Lei nº 11.941/09, que alterou diversos dispositivos do Decreto 70.235/72, inclusive unificando o 1º, 2º e 3º Conselho de Contribuintes sob a égide do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (v. 3.2 supra), esta discussão se reavivou, tanto em sede doutrinária quanto jurisprudencial, não obstante esta ultimamente ter se inclinado fortemente, mesmo antes da introdução do Art. 26-A no Decreto nº 70.235/72 pela referida Lei nº 11.941/09, no sentido de falecer à competência dos tribunais administrativos fiscais negarem vigência à lei ou decreto sob a alegação de inconstitucionalidade, sem que tenha se pronunciado neste sentido o STF.
O principal argumento daqueles que afirmam não ter os tribunais administrativos fiscais, para conhecer de questões constitucionais é de que esta seria uma atribuição exclusiva do Poder Judiciário, e que por estarem vinculados às estruturas fazendárias do Poder Executivo, os tribunais administrativos fiscais estariam usurpando atribuição de outro poder, e, portanto violando cláusula fundamental da república, qual seja, a que estabelece a separação e independência dos poderes (Art. 2º CRFB/88), bem como por estarem exercendo cargos no Poder Executivo, os julgadores administrativos deveriam homenagem ao princípio da presunção da legalidade e da constitucionalidade.
A impossibilidade da revisão judicial das decisões administrativas desfavoráveis à Administração Pública, também é utilizado, pelos que sustentam a impossibilidade do conhecimento de questões constitucionais pela instância administrativa tributária.
Argumentam ainda, aqueles que são contra aos tribunais administrativos exercerem controle de constitucionalidade que seria vedado aos julgadores administrativos interpretar Lei ou ato normativo, eis que a função hermenêutica também seria exclusiva do Poder Judiciário.
Em que pese à abalizada doutrina que defende as posições acima descritas tais argumentos não se sustentam. Senão vejamos:
Desde que Montesquieu cunhou a teoria da tripartição dos poderes estatais, esta separação jamais foi absoluta, bem como nunca se cogitou a impossibilidade do repúdio às normas que ofendessem princípios maiores [19].
Neste, sentido a própria Constituição autoriza que os três poderes exerçam funções que não são as primordiais e que em tese seriam afetas aos outros poderes, é assim quando a Carta Magna atribui competência para o Senado Federal julgar o Presidente da República por crime de responsabilidade (Art.52, I); quando autoriza o Presidente da República a legislar através de Medidas Provisórias (Art. 62) e quando autoriza os tribunais a elaborar os seus regimentos internos. (art. 96, I, "a"). Neste sentido é a lição de GILMAR FERREIRA MENDES [20]:
"Inicialmente formulado em sentido forte- até porque assim o exigiam as circunstâncias históricas- o princípio da separação dos poderes nos dias atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz das diferentes realidades constitucionais (...)
Neste contexto de "modernização", desse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas Medidas provisórias- que são editadas com força de lei- bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é freqüente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por estes supertribunais em sede de controle de constitucionalidade"
Portanto, é assente na doutrina constitucional que a separação de poderes não é absoluta, se é que um dia foi, e é o próprio texto constitucional que elabora os temperamentos e ajustes necessários citados pelo eminente ministro do STF, á este basilar princípio da democracia.
Não é por outra razão que os founding fathers norte-americanos, ao importarem o princípio da separação de poderes para a sua Constituição, em 1787, o fizeram temperado com outro princípio, qual seja o do checks and balances, no qual os três poderes se fiscalizam mutuamente, através de canais institucionais, bem como um limita o outro, prevenindo a supremacia de um poder sobre o outro, e impondo, em última análise, a cooperação de ambos.
Portanto, o argumento de que a apreciação de inconstitucionalidade de Lei ou ato normativo pelos tribunais administrativos fiscais violaria o princípio da separação de poderes não se sustenta, eis que: esta separação não é absoluta, e deste modo, os três poderes podem exercer funções atípicas às suas funções institucionais primordiais, e então não seria usurpação da competência do Poder Judiciário a declaração de inconstitucionalidade em controle concreto por tribunais administrativos fiscais.
Outro argumento a favor da competência dos tribunais administrativos para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo no caso concreto é que a Administração Pública tem o poder de autotutela, ou seja, pode revogar os seus próprios atos, tanto por motivo de conveniência ou oportunidade, quanto por estes estarem eivados de vícios que o tronem ilegais ou inconstitucionais, tal prerrogativa é reconhecida pelo próprio STF, nos termos da Súmula nº 473. In verbis:
A ADMINISTRAÇÃO PODE ANULAR SEUS PRÓPRIOS ATOS, QUANDO EIVADOS DE VÍCIOS QUE OS TORNAM ILEGAIS, PORQUE DELES NÃO SE ORIGINAM DIREITOS; OU REVOGÁ-LOS, POR MOTIVO DE CONVENIÊNCIA OU OPORTUNIDADE, RESPEITADOS OS DIREITOS ADQUIRIDOS, E RESSALVADA, EM TODOS OS CASOS, A APRECIAÇÃO JUDICIAL.
Este poder decorre do dever de o Poder Executivo observar às Leis e principalmente a Constituição, inclusive órgãos não pertencentes ao Poder Judiciário, a reafirmar esse princípio a jurisprudência pacífica do STF afirma ser possível que o Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Poder Legislativo, que, portanto não exerce jurisdição, faça o controle de constitucionalidade, conforme dicção da Súmula nº 347:
O TRIBUNAL DE CONTAS, NO EXERCÍCIO DE SUAS ATRIBUIÇÕES, PODE APRECIAR A CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E DOS ATOS DO PODER PÚBLICO.
Assim, é contraditório o entendimento do STF ao permitir que as Cortes de Contas apreciem a constitucionalidade de atos do Poder Executivo vede este mesmo "direito" aos Tribunais Administrativos Fiscais [21], até mesmo porque o lançamento tributário é em última analisa ato administrativo complexo e vinculado, e como tal, as cortes incumbidas de apreciar a sua legalidade deveriam também apreciar a constitucionalidade da lei que o ensejou.
A submissão da Administração Pública ao princípio da legalidade, obviamente impõe a esta o dever de cumprir normas inconstitucionais, eis que falece à sua competência expelir do ordenamento jurídico tais normas, contudo, no caso concreto esta pode deixar de cumprir dispositivo legal, que contrarie expressamente a Carta Magna.
A lição de LUIS ROBERTO BARROSO [22]:
"Mas a interpretação da Constituição, ou antes, a observância da Constituição, não é evidentemente monopólio do Poder Judiciário. Também o executivo tem o poder, e mais ainda, o dever de impedir que ela seja violada, e deverá abster-se da prática de qualquer ato que importe em desrespeito à Lei Maior."
E segue, citando JOSÉ FREDERICO MARQUES [23]
"A lei inconstitucional é inconstitucional para todos os Poderes e não apenas para o judiciário. Este último tem sem dúvida a palavra definitiva, pois lhe cabe exercer o controle da legitimidade da lei em face da Constituição. Isso, todavia, não quer dizer que aos demais Poderes seja defeso o exame da validade de uma norma. As autoridades administrativas, o Poder Executivo, quando se deparam com uma lei inconstitucional, têm, da mesma maneira que o judiciário, de resolver o problema de saber se cumprem a lei ou a Constituição. E naturalmente terão de optar pela última".
Porém boa parte da doutrina entende que com a ampliação do rol dos legitimados para a proposição de Ação Direta de Inconstitucionalidade (v. 5 supra), que incluiu entre eles o Presidente da República e os Governadores de Estado, esta "anomalia" do Poder Executivo descumprir intencionalmente lei que reputasse inconstitucional, se esgotou, eis que a partir da Carta de 1988 teria o Pode4r Executivo instrumento hábil a manejar para ver declarada inconstitucionalidade de determinada lei.
ALBERTO XAVIER [24] comunga deste pensamento:
"Ora, se o Presidente da República e os governadores dos Estados podem propor ação direta de inconstitucionalidade autonomamente, sem dependerem do Procurador- Geral da República, mudam radicalmente os termos em que se colocava a questão de saber se o Poder Executivo poderia deixar de cumprir, espontaneamente, lei que reputasse inconstitucional.
Tal poder só era considerado legítimo, pela doutrina mais moderada, como ultima ratio, na inexistência de outro meio adequado (...). "Essa legitimidade não pode, porém subsistir, se é agora facultado pelo ordenamento um mecanismo constitucional de reação à suposta inconstitucionalidade".
Para nós, o advento da ampliação dos legitimados para a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade para aos chefes dos Poderes Executivos Federal e Estadual não extinguiram esta possibilidade, pelo menos no que tange aos tribunais administrativos fiscais.
Com efeito, os órgãos da Administração Pública, que exercem função de julgamento só agem, tal como o Poder Judiciário, mediante provocação, assim não se trata in casu, de recusa espontânea de descumprimento de lei reputada inconstitucional, mas de exercício de poder judicante, nos termos da própria Constituição ex vi art. 5º LV, assim, por força deste dispositivo, a Administração Pública, enquanto órgão judicante tem a legitimidade para invocar a inconstitucionalidade de lei, o que não ocorre quando esta atua como aplicadora ex officio do ordenamento jurídico.
O caráter definitivo das decisões administrativas desfavoráveis à Fazenda, uma vez que é defeso a esta se socorrer do Poder Judiciário para reverter tais julgados também tem sido utilizado como fundamento, por aqueles que entendem ser vedado aos tribunais administrativos fiscais o conhecimento de questões constitucionais. Entendem estes que não faria sentido que os tribunais administrativos declarassem, ainda que em sede de controle difuso, inconstitucional uma determinada lei, e esta se tornasse definitiva, sem que o Poder Judiciário pudesse analisá-la, entendem que ou admite-se a possibilidade da Fazenda ir à juízo quando as decisões administrativas lhe forem contrárias, e aí sim os órgão judicantes administrativos teriam esta competência de declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou então se mantém o sistema vigente e seria defeso aos tribunais administrativos julgar matéria constitucional.
Não há a tal propalada incompatibilidade, o caráter das decisões definitivas dos tribunais administrativos fiscais é de coisa julgada formal, eis que têm força vinculante para todo o órgão da Administração Pública, portanto a eventual declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais administrativos fiscais teriam obviamente caráter difuso, com efeito limitado às partes, e incidenter tantum.
Neste diapasão falta o liame lógico entre a impossibilidade de o Poder Judiciário rever as decisões administrativas que lhe são desfavoráveis e a possibilidade destes mesmos tribunais administrativos declararem inconstitucionalidade de lei, até porque os riscos da definitividade das decisões administrativas são os mesmos em qualquer caso, não só naqueles em que se trata da adequação de determinada norma à Lei Maior.
O último argumento contrário à possibilidade da declaração de lei ou ato normativo por tribunais administrativos fiscais é de que seria vedado a estas cortes interpretar a lei, eis que a atividade hermenêutica seria exclusiva do Poder Judiciário.
A primeira vista tal argumento carece de maior supedâneo doutrinário, eis que é impossível, à luz do conceito de norma aplicar qualquer lei, seja ela constitucional ou infraconstitucional sem que se efetue em algum grau a interpretação, uma vez que o próprio conceito de norma implica a formulação de um juízo hipotético [25].
PAULO DE BARROS CARVALHO [26] ensina que norma jurídica é "a significação que obtemos a partir da leitura dos textos do direito positivo", ou seja, a norma jurídica é se estabelece pela formação do juízo daquele que a lê, hipoteticamente, a partir da apreensão sensorial de um objeto in casu, as normas de direito positivo.
Assim, estabelecido o conceito de norma é fácil, perceber que é impossível o julgador administrativo, não interpretar o aquilo que está posto para o seu julgamento. Desta forma, insubsiste o argumento que em razão do princípio da legalidade, seria vedado aos órgãos administrativos incumbidos de julgar administrativamente as lides tributárias, interpretar o direito positivo e, por conseguinte, declarar a inconstitucionalidade de determinada lei ou regulamento.
Segundo PAULO DE BARROS CARVALHO [27]:
"A norma jurídica é exatamente o juízo (ou pensamento) que a leitura do texto provoca no nosso espírito. Basta isso para nos advertir que um único texto pode originar significações diferentes, consoante as diversas noções que o cognoscente tenha dos termos empregados pelo legislador. Ao enunciar os juízos, expedindo as respectivas proposições, ficarão registradas as discrepâncias de entendimento dos sujeitos, a propósito dos termos utilizados"
A lição acima é lapidar, e põe por terra a idéia de que o princípio da legalidade implica uma cega e mecânica acomodação dos preceitos do direito positivo aos casos submetidos aos julgadores administrativos, ao enunciar que a aplicação de uma norma jurídica perpassa por um juízo mental do julgador.
Portanto, se a mera aplicação da lei já implica em interpretação, não é defeso aos tribunais administrativos fiscais o fazerem à luz da Carta Magna, e negarem vigência aquelas que contrariarem os seus preceitos.
São estes, em suma, os argumentos que autorizam a declaração inconstitucionalidade de lei ou ato normativo por tribunais administrativos fiscais.