Em 28 de fevereiro de 2011, foi publicada a Lei ordinária federal n. 12.382 que dispõe sobre o valor do salário mínimo em 2011 e a sua política de valorização de longo prazo, mas também disciplina a representação fiscal para fins penais nos casos em que houve parcelamento do crédito tributário, alterando a Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996.
O legislador federal, mais uma vez, instado pelo Poder Executivo, deliberou e aprovou a inclusão de regras tributárias no bojo de instrumento normativo que versa sobre outros temas. Neste caso, a Lei n. 12.382/11 tem como principal mote a fixação do salário mínimo federal de 2011, bem como dos critérios para o seu reajuste nos próximos anos.
Esse procedimento de inclusão de assuntos diversos no contexto da mesma norma legal, não me parece ser a melhor técnica de criação de fontes formais de Direito, contudo, é importante salientar que tal medida não encontra bloqueio no Ordenamento Jurídico, conforme inclusive se pode depreender da leitura da Lei Complementar n. 95/98.
Todos devem saber que além do salário mínimo, a Lei n. 12.382/11 traz em seu texto um dispositivo que certamente trará consequências para milhares de contribuintes que estão inadimplentes com o Fisco, seja este federal, estadual, distrital ou municipal, pois a regra é nacional.
Para deslinde da questão, se faz necessário transcrever o artigo 6º da Lei 12.382/11:
"Art. 6º O art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 1º a 5º, renumerando-se o atual parágrafo único para § 6º:
‘Art. 83. ...........................................................
§ 1º Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento.
§ 2º É suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal.
§ 3º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
§ 4º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento.
§ 5º O disposto nos §§ 1º a 4º não se aplica nas hipóteses de vedação legal de parcelamento.
§ 6º As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz’."
Então, até 1º de março de 2011, o texto do artigo 83 da Lei 9.430/96, era o seguinte:
"Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.
Parágrafo único. As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz."
Diante do cotejo dos dispositivos legais supracitados, é possível perceber que as inovações constam nos parágrafos 1º ao 5º do novo artigo 83 da Lei 9.430/96. Vejamos, portanto, cada um deles.
No parágrafo primeiro, o legislador estabelece uma verdadeira garantia para o contribuinte que parcelou sua dívida com o Fisco. Agora, concedido o parcelamento do crédito tributário, o Fisco só poderá encaminhar a representação fiscal para fins penais para o Ministério Público, após a exclusão do contribuinte do parcelamento. É importante ressaltar que tal garantia já era reconhecida pelo Poder Judiciário, conforme comprova a Súmula Vinculante n. 24, publicada em 11.12.2009: "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1o, incisos I a IV, da Lei no 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo."
Entendo que essa garantia do contribuinte, deve ser aplicada imediatamente a todas as obrigações tributárias, mesmo que sejam decorrentes de fatos geradores anteriores a 1º de março de 2011. Ademais, já existia a Súmula Vinculante supracitada.
No parágrafo segundo, o legislador consignou um comando que altera sobremaneira a praxe atual dos Tribunais. Agora, se o pedido de parcelamento for ultimado após o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, o contribuinte, mesmo que esteja adimplente com as parcelas, será julgado e, possivelmente, condenado pelos crimes contra ordem tributária, pois não fará jus a extinção da punibilidade.
Vale lembrar que o texto do parágrafo segundo é um aperfeiçoamento do disposto no artigo 34 da Lei n. 9.249, de 27.12.1995: "Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia."
A diferença é que o artigo 34 da Lei n. 9.249/95 versa sobre a quitação total da dívida tributária antes do oferecimento da denúncia. Já o parágrafo segundo do artigo 83 da Lei 9.430/96, se refere ao parcelamento (inicio de pagamento). Em verdade os efeitos são complementares, pois, seguindo uma interpretação literal dos dispositivos, é fácil perceber que um contribuinte inadimplente, denunciado por crime contra a ordem tributária, não fará jus a hipótese de excludente de punibilidade. O contribuinte, portanto, deverá parcelar ou quitar integralmente a dívida, antes do recebimento da denúncia.
O parágrafo terceiro, não trouxe qualquer novidade, apenas estampou no texto legal a praxe dos Tribunais. Neste sentido, se o contribuinte inadimplente, firmou parcelamento, antes da denúncia, não verá a prescrição criminal correr a seu favor. Enquanto durar o parcelamento, ficará suspenso o prazo prescricional.
O parágrafo quarto está diretamente ligado ao parágrafo segundo, pois determina que será extinta a punibilidade dos crimes contra a ordem tributária desde que o contribuinte efetue o pagamento integral da dívida tributária objeto do parcelamento ultimado, antes do recebimento da denúncia. Neste sentido, se um contribuinte fizer um parcelamento, após o recebimento da denúncia, quitando integralmente o seu débito, ainda assim poderá ser condenado pela prática de crime contra a ordem tributária.
O parágrafo quinto é redundante, pois afirma que os parágrafos 1º ao 4º do artigo 83, não podem ser aplicados nas hipóteses de vedação legal de parcelamento. Ora, se são hipóteses que o próprio legislador afastou o parcelamento, por obra do óbvio, não são aplicados os parágrafos anteriores.
Essas são as novidades inseridas na nova redação do artigo 83, da Lei n. 9.430/96, pela Lei n. 12.382/11, que passam a ter eficácia a partir de 1º de março de 2011.
Ocorre, contudo, que, salvo melhor juízo, a intenção de impedir que contribuintes inadimplentes parcelem suas dívidas após o recebimento da denúncia, restará infrutífera, já que existem em vigor outros dispositivos legais que versam sobre a possibilidade do contribuinte parcelar suas dívidas tributárias a qualquer momento, seja antes ou durante a ação penal, ou, até mesmo, após o trânsito em julgado de sentença condenatória.
Para comprovar a assertiva acima, é importante trazer ao conhecimento do leitor dois instrumentos legais em vigor. Vejamos.
O primeiro dispositivo é o artigo 9º da Lei n. 10.684, de 31 de maio de 2005 (conhecida como lei do parcelamento especial PAES):
"Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
§ 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
§ 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios."
O segundo conjunto de regras que versa sobre o tema, está estampado nos artigos 68 e 69, da Lei n. 11.941, de 28 de maio de 2009 (conhecida como lei do Refis da Crise):
"Art. 68. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, limitada a suspensão aos débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, enquanto não forem rescindidos os parcelamentos de que tratam os arts. 1º a 3º desta Lei, observado o disposto no art. 69 desta Lei.
Parágrafo único. A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
Art. 69. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento.
Parágrafo único. Na hipótese de pagamento efetuado pela pessoa física prevista no § 15 do art. 1º desta Lei, a extinção da punibilidade ocorrerá com o pagamento integral dos valores correspondentes à ação penal."
É importante observar que nos dispositivos supracitados não há referência ao marco temporal, isto é, o legislador não condicionou a suspensão ou a posterior extinção da punibilidade, ao recebimento ou não da denúncia. Neste sentido, a jurisprudência vinha aplicando tranquilamente o entendimento de que o parcelamento da dívida fiscal poderia ser ultimado em qualquer momento da persecução penal, inclusive após o trânsito em julgada da sentença condenatória. Vejamos um exemplo de decisão neste mesmo sentido:
"EMENTA: HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. LEI Nº 10.684/03. PAGAMENTO DOS DÉBITOS PREVIDENCIÁRIOS APÓS O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. 1. O pagamento integral dos débitos oriundos da falta de recolhimento de contribuição à Previdência Social descontada dos salários dos empregados, ainda que posteriormente à denúncia e incabível o parcelamento, extingue a punibilidade do crime tipificado no artigo 168-A do Código Penal (Lei nº 10.684/03, artigo 9º, parágrafo 2º). 2. Precedentes do STF e do STJ. 3. Ordem concedida." (HC 36628/DF. Ministro HAMILTON CARVALHIDO. Julgamento: 15/02/2005. DJ 13.06.2005. Votação Unânime. Sexta Turma do STJ)
A intenção do legislador parece clara. Visa afastar a interpretação jurisprudencial aplicada aos dispositivos legais supracitados. Ocorre, contudo, que a Lei n. 12.382/11 alterou o sentido do artigo 83 da Lei n. 9.430/96, mas não revogou os artigos 9º da Lei n. 10.684, de 31 de maio de 2005 e os artigos 68 e 69, da Lei n. 11.941, de 28 de maio de 2009.
Acredito que o fisco defenderá a tese de que o novel dispositivo revogou tacitamente os artigos 9º da Lei n. 10.684, de 31 de maio de 2005 e os artigos 68 e 69, da Lei n. 11.941, de 28 de maio de 2009. Não concordo com este raciocínio, pois, acredito que, após a Lei Complementar n. 107, de 26.04.2001 que alterou o artigo 9º da Lei Complementar n. 95 de 26.02.1998, o legislador deve indicar com exatidão quais são as regras revogadas.
Ademais, a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei n. 4.657, de 04.09.1942, com nova redação dada pela Lei n. 12.376, de 30 de 12.2010), em seu artigo 2º deixa evidenciado que a alteração do artigo 83 da Lei n. 9430/96, não é capaz de revogar tacitamente os artigos 9º da Lei n. 10.684, de 31 de maio de 2005 e os artigos 68 e 69, da Lei n. 11.941, de 28 de maio de 2009, haja vista que não regula integralmente a matéria.
Diante de tal constatação, acredito que os magistrados manterão o entendimento de que, na pior das hipóteses, o novel dispositivo só será aplicável aos créditos tributários constituídos a partir de 1º de março de 2011.
Convém destacar aqui que a regra que trata de extinção de punibilidade dos crimes contra a ordem tributária é de direito material, e, por isso, deve ser observada a legislação vigente na data do fato, porquanto a aplicação da lei penal no tempo é regida pelos princípios do tempus delicti commissi regit actum – segundo o qual a lei penal incide sobre os fatos ocorridos durante a sua vigência – e o da irretroatividade da lei penal mais gravosa.
Vale destacar que o Supremo Tribunal Federal, em diversos julgamentos de Habeas Corpus, já consolidou o entendimento de que é inconstitucional a aplicação da novatio legis in pejus, isto é, lei nova mais gravosa (lex gravior) não pode atingir atos praticados anteriores a sua vigência. Neste mesmo raciocínio, há de ser aplicada a ultratividade da lex mitior (lei mais benéfica) que possui força normativa residual, ao fato delituoso cometido no período de vigência temporal da lei revogada. Essa é a eficácia ultrativa da lex mitior, por efeito do que impõe o artigo 5º, inciso XL da Constituição Federal de 1988.
Em síntese, mesmo que se entenda que o disposto no novo artigo 83 da Lei n. 9.430/96 revogou tacitamente os artigos 9º da Lei n. 10.684, de 31 de maio de 2005 e os artigos 68 e 69, da Lei n. 11.941, de 28 de maio de 2009, estes dispositivos terão eficácia ultrativa, pois são lex mitior e, portanto, regerão os atos praticados sob sua vigência pelos contribuintes.