Resumo: Trata-se de estudo relativo à permissão do artigo 889, § 3º, do Código Civil para a emissão eletrônica de títulos de crédito típicos em contraponto ao princípio da cartularidade. O trabalho contempla, também, o fenômeno da descartularização. A abordagem da legislação possui um cunho teórico, porém sem se afastar da aplicação prática da norma, especialmente no que concerne à assinatura, à circulação e à executividade dos títulos emitidos eletronicamente. O caso das Duplicatas, título em que mais se vê o princípio da cartularidade mitigado, recebe uma análise pormenorizada. Além da apreciação da legislação aplicável ao tema, a jurisprudência dos tribunais também é concisamente examinada.
Palavras-chave: Títulos de crédito. Emissão eletrônica.
Sumário: 1. Intróito - 2. As bases cambiárias - 2.1. Princípio da literalidade - 2.2. Princípio da autonomia - 2.3. Princípio da cartularidade - 2.4. Princípio da formalismo - 3. A informatização e o Direito Cambiário - 3.1. O fenômeno da descartularização - 3.2. A evolução dos conceitos relacionados à matéria - 3.3. Disciplina jurídica da emissão eletrônica de títulos de créditos - 3.4. O alcance da norma contida no artigo 889, § 3º, do Código Civil - 3.5. Elementos fundamentais sobre documento eletrônico e assinatura digital - 4. A circulação e a executividade dos títulos de crédito emitidos eletronicamente - 4.1. A questão das duplicatas - 5. Conclusão - 6. Referências
Abstract: It is about a relative study to the permission of the 889, § 3° article from civil code for an electronic credits titles emission typical in confrontation to the beginning that requires the presentation of a document that allows the exercise of the Right contained Title. Also the work rewards the Dematerialization phenomenon. The legislation’s approach has a theoretical aspect but without running out of the practical application of the rule, especially when it is about signatures, circulation and the enforceability of the sent electronically titles. The case of Duplicates, Title that most see the principle of the dematerialization decreased gets a detailed analysis.
Keywords: Electronic credit titles emission.
1 Intróito
Os títulos de crédito consistem em documentos que materializam o crédito como um direito literal e autônomo, e que, por sua natureza, faz a riqueza circular na sociedade. Foi exatamente na Idade Média que surgiu esse instituto, com a exigência de que ele circulasse de forma rápida e segura, devido ao aumento das atividades mercantis. Aperfeiçoou-se, nesse contexto, a letra de câmbio como o primeiro documento representativo do direito de crédito tal como se conhece hodiernamente. (REQUIÃO, 2005, p. 368)
Em um primeiro momento, os títulos de crédito eram utilizados apenas por aqueles que traziam nele o seu nome. Posteriormente, passaram a circular com mais liberdade em razão de se transferir a titularidade da cártula e os direitos nela contidos pela transferência da posse da mesma. (MARTINS, 2000, p. 15)
Como salientado, com a letra de câmbio nasceu o que hoje denominamos títulos de crédito. Segundo Wille Duarte Costa (2003, p. 3), não se pode afirmar qual o momento preciso da criação dos títulos de crédito. Contudo, é certo que o primeiro título de crédito com as características dos que se concebe atualmente surgiu na Idade Média, e foi, de fato, a letra de câmbio.
Na sua linha de evolução, os títulos de crédito chegaram ao ápice quando da uniformização da legislação em matéria cambiária no ano de 1930. Em Genebra, a Lei Uniforme orientou a legislação interna dos países signatários do Tratado, proporcionando igualdade no tratamento da matéria, igualando conceitos e princípios nos ordenamentos internos dos países envolvidos.
Hodiernamente, com o fenômeno da desmaterialização de dados e a inserção destes em meio eletrônico, os títulos de créditos, como cártulas representativas de direitos creditícios, encontram-se na lindeira de sua existência. Tema que mereceu atenção do legislador do Código Civil de 2002, e pelo qual ora se ocupa, foi a possibilidade de emissão eletrônica dos títulos como forma de se possibilitar sua circulação no meio virtual.
Nesse sentido, questiona-se a suposta permissão do Código Civil para emissão eletrônica dos títulos de crédito, uma vez que o artigo 889, § 3º, do aludido diploma prevê tal possibilidade. O que se objetiva com o estudo em tela é confrontar a legislação mencionada com o princípio cambiário da cartularidade para, então, confirmar ou não a viabilidade jurídica da norma.
2 As bases cambiárias
O título de crédito encontrou nas palavras de Cesare Vivante (1914, p. 154-155) a sua perfeita definição, segundo a qual constitui um documento necessário para o exercício de um direito literal e autônomo nele mencionado.
Tal definição do professor italiano é de plena aceitação por encerrar em poucas palavras os princípios elementares em matéria cambiária. Extrai-se da assertiva que título de crédito é um documento, sobretudo, necessário para o exercício de um direito nele mencionado e, ainda, que esse direito é literal e autônomo.
2.1 Princípio da literalidade
A literalidade mencionada por Vivante diz respeito ao conteúdo do título, pois, somente o que está escrito e delimitado no título é tido em consideração. Apenas o que está expresso na cártula tem valor, nem mais nem menos. Tudo o que não está no título, ainda que esteja em documento separado, ao título não se une. Em resumo, cabem as palavras de Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. (2004, p. 60) que aduz "Assim, só existe para o mundo cambiário o que está expresso no título."
2.2 Princípio da autonomia
A autonomia do direito mencionado pelo título, como explicitado por Vivante, existe porquanto o possuidor exercita um direito próprio, desvinculado das relações existentes entre o devedor e os possuidores que o antecederam. Rubens Requião chama atenção para o fato de que a autonomia não é em relação causa do título, mas em relação aos anteriores possuidores e o devedor. (2005, p. 370)
Decorre do princípio da autonomia o subprincípio da abstração por meio do qual se torna desnecessária a verificação do negócio jurídico que originou o título, ressalvando que esse subprincípio não se aplica a todos os títulos de créditos.
Outro subprincípio que advém do princípio da autonomia é o da inoponibilidade das exceções ao terceiro de boa-fé. Segundo esse subprincípio, o título de crédito, quando em circulação, desvincula-se da relação obrigacional que lhe deu origem. Nesse sentido, quando ocorre a transferência para terceiros de boa-fé, dá-se a ruptura entre o documento cambial e a relação em que teve origem, de tal sorte que o devedor não pode eximir-se da obrigação cambial em razão de vícios ou nulidades do negócio originário. Portanto, o terceiro de boa-fé, adquirente do título cambial, tem seu direito protegido pelo princípio da inoponibilidade, cujo escopo é assegurar a circulação dos títulos cambiais, logo, não são oponíveis as exceções pessoais do emitente contra o terceiro.
2.3 Princípio da cartularidade
Quando Vivante mencionou a expressão documento, estava ele se referindo a um documento, evidentemente, escrito, o que para muitos doutrinadores, especialmente os ortodoxos, seria um documento escrito em um papel, em uma cártula. Como asseverado por Fran Martins (2000, p. 5) "(...) para ser um título de crédito, é indispensável que exista um documento, isto é, um escrito em algo material, palpável, corpóreo."
Além de ser material, o documento é indispensável para o exercício do direito de crédito nele mencionado. Isso implica dizer que, apenas quando apresentado o título, o direito nele contido pode ser satisfeito. Decorre disso a razão de se dizer que o título de crédito é título de apresentação, comumente compreendido como um direito cartular.
Portanto, o título, que é literal e autônomo, materializa o direito. Como lembrou a professora Ana Paula Gordilho Pessoa, o jurista Savigny chegou a dizer que o direito se incorpora ao título, cabendo esclarecer que, em alguns casos, o título que venha a perecer não faz com que o direito nele mencionado também pereça, sendo possível a substituição do título por outro dotado do direito que o anterior mencionava. (PENTEADO et al, 2004, p. 40)
A concepção de um direito cartular, mencionado em um papel, vigorou em sua plenitude por muito tempo. Porém, com o advento da informática e os seus reflexos, impõe-se uma mudança nos paradigmas do Direito Cambiário e nos seus institutos.
Notadamente a célebre lição de Vivante estava embasada em conceitos e padrões que não presumiam a informática. Dessa forma, diante de uma nova realidade dos tempos atuais, há de se refletir quanto aos títulos de crédito, especialmente no que diz respeito ao princípio da cartularidade.
2.4 Princípio do formalismo
Cabe dizer, ainda sobre os princípios, que a despeito dos citados anteriormente, há um requisito que para Fran Martins (2000, p.11) é um "elemento preponderante para a existência do título de crédito", que é o formalismo.
Para que um documento se erga ao status de título de crédito, é necessário o cumprimento de certos requisitos elencados em lei. Só terá validade como título de crédito aquele documento que se revestir das formalidades legais, sendo que cada lei de regência de um título enumera os seus requisitos.
3 A informatização e o Direito Cambiário
Desde a Revolução Industrial a sociedade se encontra em constante e acelerado processo de evolução. Remontam ao início do século XVIII as primeiras inovações industriais que aperfeiçoou e potencializou a escala de produção, tornado o processo produtivo em um processo de produção em série.
Ao reboque das inovações industriais ao longo dos séculos estiveram as inovações tecnológicas, posto que o maior patrocinador e consumidor de tecnologia é a iniciativa privada, isto porque as tecnologias são aplicadas no processo produtivo, bem como nos produtos e serviços oferecidos ao mercado.
O avanço da tecnologia foi tamanho que, no século XX, o mundo se desenvolveu mais do que já havia se desenvolvido até então. A ciência protagonizou, em todos os seus campos, uma verdadeira revolução no conhecimento que havia se sedimentado até aquele século.
Porém, foi com a tecnologia da informática que o mundo começou a sofrer rápidas transformações. O surgimento tímido dos primeiros computadores na década de 40 do século XX não se compara à extensão do uso dessas máquinas nos dias atuais. Com efeito, no início da década de 90 é que as mudanças na vida do homem, provocadas pela informática, foram sentidas em larga escala. As distâncias foram encurtadas, as barreiras culturais e sociais foram flexibilizadas, o mundo, em linhas gerais, globalizou-se, tornou-se mais dinâmico, interativo e virtual.
A era digital colocou em xeque padrões e conceitos, visto que a realidade se confunde com a virtualidade. Os computadores pessoais invadiram os lares e os campos de trabalho, muitas vezes substituindo o próprio homem e criando uma relação potencialmente conflituosa entre ele e as máquinas.
Para se ter uma idéia da presença da informática na vida dos brasileiros, em particular, uma estatística apresentada por Lucca e Filho (2000) demonstra que em junho de 2000 havia, no Brasil, seis milhões de usuários de Internet. Aproximadamente seis anos depois, esse número subiu para quinze milhões, o que deixa o Brasil em 11º lugar no mundo em quantidade de usuários da rede. (BBC Brasil, 2007)
Fato é que existe o conflito provocado pela inserção de hadwares e sofwares no cotidiano dos indivíduos. Contrariamo-nos ao ver os nossos antigos conceitos serem postos à lona. O universo jurídico, sobretudo o ordenamento jurídico, sucumbe à velocidade com que os atos e fatos se dão na realidade tão dinâmica dos dias atuais. Não é raro se deparar com um instituto do direito padecendo pela inaptidão de se amoldar à nova e diversa sociedade.
3.1 O fenômeno da descartularização
O Direito Cambiário não está imune à revolução tecnológica. A cibernética propõe um repensar em vários de seus institutos, especialmente no tocante ao princípio da cartularidade.
A informática permitiu que dados alocados em suporte físico como o papel fossem armazenados em arquivos eletrônicos, diminuindo custos, celerizando e otimizando o armazenamento de informações. (BARBOSA, 2004, p. 70)
O reflexo disso é a adoção por diversas instituições de meios magnéticos de armazenar informações. Com a crescente magnetização de dados provocada pela informatização, particularmente, no meio empresarial e bancário, os créditos mercantis não se encontram totalmente cartularizados em suporte de papel, pois os títulos de créditos, usados para esse fim, estão sendo paulatina e irremediavelmente substituídos por fitas ou outros meios magnéticos, suprimindo-se a cártula.
Isso é o que podemos chamar de "fenômeno da descartularização". Esse fenômeno colide de tal forma com os padrões do Direito Cambiário que Fábio Ulhoa chega a cogitar o fim dos títulos de créditos, assim pondera:
Após terem cumprido satisfatoriamente a sua função, ao longo dos séculos, sobrevindo às mais variadas mudanças nos sistemas econômicos, esses documentos entram agora em período de decadência, que poderá levar até mesmo ao seu fim como instituto jurídico. No mínimo, importantes transformações, já em curso, alterarão a substância do direito cambiário. O quadro é provocado pelo extraordinário progresso no tratamento magnético das informações, o crescente uso dos recursos da informática no cotidiano da atividade de administração de crédito. (ULHOA, 2004, p. 384-385)
Nesse contexto, a descartularização passou a ser elemento de recorrentes discussões na doutrina nacional e estrangeira. Além disso, o tema é objeto das mais avançadas proposições legislativas, como veremos adiante.
3.2 A evolução dos conceitos relacionados à matéria
Alguns conceitos relativos aos títulos de créditos estão à mercê de sofrer mutações. É o que acontece com o princípio da cartularidade, tão atacado pela doutrina. Não faltam proposições, interpretações e posições doutrinárias no sentido de mitigar a cartularidade, o que promove uma verdadeira mudança no seu conceito.
A cartularidade propugnada pela teoria de Vivante como elemento essencial dos títulos de crédito é perfeitamente cabível quando nos atemos à definição clássica dos referidos títulos.
Com as inovações da informática, já exaltadas alhures, há de se ponderar que a legislação deveria caminhar a par das transformações ocorridas na seara dos títulos de crédito. Isso implica dizer que o legislador de 2002 foi conservador quanto à questão da cartularidade. O legislador do Código Civil de 2002, repetindo a notável lição de Vivante, que embora seja de incomensurável valor, está sendo colocada à prova pelo Direito Cambiário hodierno, e, adicionando o elemento formalismo, conceituou título de crédito como o documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, que somente produz efeito quando preenche os requisitos da lei. Eis o texto do artigo 887 da Lei nº 10.406/02: "Art. 887. O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei." (BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. DOU: 11/01/2002)
Ora, se já não havia, até então, lei conceituando títulos de crédito, não há razão para que o legislador o conceituasse, deixando passar a oportunidade de contemplar, no todo, o fenômeno da descartularização, caminhando na contramão da sociedade que em voz uníssona reclama por uma definição mais moderna e atual. Em outras palavras, a substituição das cártulas por meios magnéticos poderia e deveria ser amplamente legislada, mas ficou relegada a um único parágrafo. No entanto, o ensinamento de Vivante, que já era sedimentado, foi reforçado, quando deveria ser reformulado.
Muitos doutrinadores lamentam o fato de o legislador engessar o conceito de título de crédito e se furtar a enfrentar o fenômeno da descartularização, como exarou Francisco de Paula Eugênio Jardim de Souza Brasil:
Infelizmente, a exigência de cártula representa a mais retrógrada ótica acerca dos títulos de crédito. Uma lástima trazida pelo legislador totalmente contrária à realidade moderna que prima pela dinâmica e praticidade. (BRASIL, 2006, p. 105)
Com efeito, o conservadorismo do legislador impede a construção de uma teoria aprimorada acerca do tema.
3.3 Disciplina jurídica da emissão eletrônica de títulos de créditos
Torna-se importante frisar que a interpretação da norma contida no art. 889, § 3º, do Código Civil, por ser demasiadamente enxuta, demanda uma análise sistemática da legislação pertinente, como faz a grande massa dos doutrinadores.
O embrião da emissão eletrônica de títulos de créditos estava no Projeto de Lei Complementar nº 118/84, e foi posteriormente sancionado com a Lei nº 10.406/02, que instituiu o Código Civil Brasileiro.
Seguindo o exemplo de países como a França, a Alemanha e os EUA, o Brasil, pela sugestão do professor Mauro Rodrigues Penteado, também tratou de legislar, de forma tímida, aquilo que chamaremos de títulos de créditos eletrônicos.
O Projeto de Lei Complementar nº 118/84 que deu origem ao Código Civil de 2002, abriu a possibilidade, em seu artigo 889, § 3º, para a emissão de títulos a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente. O artigo 889 insculpido na Lei nº 10.406/02 assim dispõe:
Art. 889. Deve o título de crédito conter a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente.
§ 1º É à vista o título de crédito que não contenha indicação de vencimento.
§ 2º Considera-se lugar de emissão e de pagamento, quando não indicado no título, o domicílio do emitente.
§ 3º O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo. (BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. DOU: 11/01/2002)
O professor Mauro Rodrigues Penteado, justificando a inserção do dispositivo na lei, ponderou:
(...) é de todo recomendável que a lei geral de regência dos títulos de crédito não perca a oportunidade de contemplar o fenômeno verificado mais recentemente na praxe negocial, de propagação inevitável em virtude da informática e das modernas técnicas de administração, relativo à chamada "descartularização", mais freqüente no campo de utilização das duplicatas, embora já reconhecido, limitadamente, em lei (Lei 6.404/76, art. 34)". (...) "Por certo colidiria com as premissas gerais do Projeto (item 2.3, supra) a pretensão de disciplinar por inteiro o fenômeno, ainda não de todo sedimentado; mas a sua regulação parcial, no que já tem de estável e bem experimentado na prática, servirá de ponto de partida para uma futura elaboração mais completa." (PENTEADO, 1995, p. 39-41)
Com efeito, era premente a necessidade de uma legislação que regulasse a prática empresarial e bancária na qual é utilizada a emissão e a circulação dos chamados títulos de créditos eletrônicos. O Código Civil foi, então, aprovado com a redação do artigo 889, § 3º, sem alterações. Contudo, o legislador poderia e deveria ter ido mais a fundo no tema, sem esperar por uma maior sedimentação, tendo em vista que a França iniciou sua elaboração legislativa no que diz respeito à magnetização de dados na década de 70. (PENTEADO et al, 2005, p. 10)
Não se justifica, portanto, a espera que o professor alega ser necessária para uma melhor contemplação legislativa dos títulos de créditos emitidos eletronicamente.
Diante das mais variadas incertezas pertinentes ao tema, são numerosos os apontamentos críticos que a doutrina faz em relação ao já citado dispositivo do Código Civil. Há, porém, de se selecionar a crítica embasada, bem fundamentada, de críticas pífias, de forma que o debate tenha o maior rigor científico.
O professor Gladston Mamede (2005, p. 87) ao interpretar o § 3º do artigo 889, não concebeu que se tratava de uma norma que aludia à existência dos títulos em meio eletrônico, mantendo-se intacto o princípio da cartularidade, e concluiu: "A norma, portanto, apenas permite a impressão da base física por meio eletrônico, mas não chega a abolir a base física e, assim, dispensar a cartularidade cambiária." O posicionamento do professor não parte de uma interpretação teleológica da lei e é dissonante do contexto social, posto que o mesmo não concebe o 889 § 3º, como norma atinente à existência eletrônica de um título de crédito.
Para sustentar seu posicionamento, o citado professor Mamede (2005, p. 87) assevera que "A cartularidade das obrigações cambiais é princípio ainda elementar do regulamento próprio dos títulos de crédito." Contudo, não se pode afirmar, por esse motivo, que o § 3º do artigo 889 apenas permite a impressão da base física por meio eletrônico, tendo em vista que é notória a intenção do legislador em contemplar a emissão e circulação eletrônica dos títulos de crédito, como se observa nas palavras de Mauro Rodrigues Penteado:
(...) é de todo recomendável que a lei geral de regência dos títulos de crédito não perca a oportunidade de contemplar o fenômeno verificado mais recentemente na praxe negocial, de propagação inevitável em virtude da informática e das modernas técnicas de administração, relativo à chamada "descartularização". (PENTEADO, 1995, p. 39)
Destarte, não há como sustentar a posição do professor Gladston Mamede, uma vez que nos parece óbvio que o intuito do poder legislativo foi, realmente, de disciplinar a existência e validade dos títulos de crédito em ambiente eletrônico. Há parte da doutrina que sustenta, tal qual o faz Mamede, que a cartularidade ainda é princípio básico dos títulos de crédito, contudo sustenta com fundamento em lei e doutrina, não apenas em meras afirmativas abstratas.
Certo é que a norma em questão veio contemplar o fenômeno da descartularização, porém, de forma incompleta. Não parece razoável dizer que a norma apenas permite a impressão da base física por meio eletrônico, ainda que a disposição legal seja, de certa forma, incompleta.
3.4 O alcance da norma contida no artigo 889, § 3º, do Código Civil
Tratando-se, pois, de uma questão de ordem, o alcance da norma contida no art. 889, § 3º, do Código Civil é uma tormenta na doutrina cambiária, constituindo matéria de calorosos debates. Há posições altamente contrastantes entre si que demonstram a dificuldade e importância do tema na atualidade.
O artigo 903 do Código Civil preceitua que salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto no Código, abrindo, assim, discussão sobre a aplicabilidade do artigo 889, § 3º, sobre os títulos de crédito já existentes, ainda que de forma supletiva.
Para alguns doutrinadores o Código é tido como fonte supletiva secundária para todos os títulos de crédito, como atestou José Virgílio Lopes: "Ora, no silêncio da lei de regência e da própria lei por ela eleita como fonte supletiva ‘de primeiro grau’, não pode haver dúvida quanto à aplicação do novo Código Civil como fonte supletiva secundária." (PENTEADO et al, 2004, p.153) Isso levaria à aplicabilidade do artigo 889, § 3º, sobre os títulos de crédito típicos já existentes.
Há, porém, quem entenda de forma diversa, como é o caso do professor Wille Duarte, que assim ponderou:
Mas, nos termos do art. 903 as disposições da lei especial sobrepõem às normas do Código Civil. Havendo lei especial sobre determinado título de crédito, como ocorre com as duplicatas, são inaplicáveis as disposições do Código, como na hipótese. Se pela letra do art. 903 as disposições do Código só se aplicarão não havendo disposição em contrário em lei especial, seria contraditório pensar que determinado artigo do Código Civil permitisse a criação de um título de crédito eletrônico chamado duplicata escritural, eletrônica ou virtual, por exemplo. Assim, a duplicata é título de crédito, regulado por lei especial e não pode ser regulado pelo Código Civil. Menos ainda por essa doutrina pequena que quer mudar o nome e modelo da duplicata, quando há lei especial dizendo o contrário e regulando expressamente o assunto em sentido contrário." (COSTA, 2007, p. 3)
De fato, se a lei de regência dos títulos de crédito típicos atuais os tratam como títulos de papel, fazendo, inclusive, menção ao verso e dorso da cártula, como exemplo o art. 8º do Dec. Nº 2.044, à aposição de assinaturas próximas umas das outras, conforme art. 14 do Dec. Nº 2.044. Assim, não há como imaginar que se possam emitir tais títulos eletronicamente, posto que é patente o tratamento diverso que as leis especiais dos títulos de crédito já existentes dão aos mesmos, afastando assim a aplicabilidade do Código Civil nesse aparte. Há, contudo, a possibilidade de que venham a existir títulos de créditos em que a lei de sua regência não exija ou o trate de forma a prescindir uma cártula, quando, em tese, poderá ser aplicado o Código Civil, no que toca à emissão eletrônica.
O professor Wille Duarte Costa (2007, p. 2), com o seu rigor científico ao analisar a questão, foi enfático "Antes de tudo, no nosso entender não existe título de crédito eletrônico." O jurista enfatiza a inexistência do título de crédito eletrônico porquanto não há lei no ordenamento jurídico que o criou e, se existem tais títulos, esses são meros títulos inominados, longe do status de título de crédito. Nesse sentido, o professor Costa (2007, p. 5) asseverou: "(...) no Código Civil não há permissão alguma para a criação de ‘títulos de crédito eletrônico’ o que só será possível com lei especial. O que existe é criação da mente de certos autores, sem qualquer base científica."
De fato, o Código Civil não criou um título de crédito denominado título de crédito eletrônico. O que o Código trouxe foi a possibilidade de se emitir eletronicamente títulos de crédito, segundo o seu artigo 889, § 3º, quando a sua lei de regência não imperar em sentido contrário, segundo o seu artigo 903, ou seja, exigindo a cártula e, ainda, respeitados os requisitos previstos no artigo 889, inclusive a assinatura.
3.5 Elementos fundamentais sobre documento eletrônico e assinatura digital
O pensamento do Doutor Wille Duarte Costa (2007, p. 2) que nega a existência do título de crédito eletrônico é embasado na teoria de Vivante e na disposição do artigo 887 que claramente expressa que título de crédito é um documento necessário para o exercício de um direito e que tal documento deve ser material, tangível.
Wille Duarte Costa sustenta, ainda, que o artigo 889 do Código Civil exige a assinatura do emitente para que o título se torne autêntico e produza efeitos. O título eletrônico, para o professor, não comporta assinatura do emitente como disposto na lei, não sendo dispensada a assinatura, ou mesmo substituída, como o professor Costa (2007, p. 15) pontua: "Agora, não me venham com essa de que a assinatura legítima e de próprio punho pode ser substituída pela assinatura digital ou criptografada."
Outra parte da doutrina pugna pela existência e validade dos títulos de crédito emitidos eletronicamente. O próprio professor Mauro Rodrigues Penteado é defensor tenaz dos referidos títulos, seguido de vários outros autores.
Essa corrente da doutrina tem como superadas algumas das dificuldades que a doutrina contrária levanta. No que diz respeito ao artigo 887 preconizar que título é um documento necessário ao exercício de um direito, os juristas que admitem a existência e validade dos títulos eletrônicos trazem à baila o conceito de documento de Carnelutti, como o cita Ana Paula Gordilho Pessoa, explicando o que vem a ser documento:
O verbete dedicado ao documento no Novíssimo Digesto Italiano reproduz o texto de Francisco Carnelutti, anteriormente incluído no Nuovo Digesto Italiano, com a ressalva de que apesar do tempo transcorrido e da edição do novo Código Civil, se (sic) conserva válido e eficaz. O mestre da Universidade de Milão leciona que documento corresponde a uma coisa que faz conhecer um fato (allá cosa che fa conoscere um fatto), que tem a virtude de fazer conhecer. (PENTEADO et al, 2005, p. 36)
Tendo por base esse conceito do mestre italiano, os doutrinadores acreditam que é perfeitamente viável a concepção de um documento eletrônico no âmbito do Direito Cambiário, e mais:
A emissão do documento, seja sob a forma de cártula, seja por meio eletrônico importa em um ato que não é constitutivo do direito creditório, mas sim representativo dele através da declaração contida na cártula ou no meio eletrônico. (PENTEADO et al, 2005, p. 21)
Além da doutrina do professor italiano há no ordenamento jurídico a MP nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, transformou o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação em autarquia e deu outras providências. Extrai-se do seu artigo 10 o fundamento legal para documento eletrônico, que assim dispõe: "Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória." Com apoio na citada MP, torna-se mais sustentável a teoria de Carnelutti, além de confirmar a legalidade de um documento eletrônico.
Em que pese as posições divergentes da teoria de Carnelutti, fato é que ela se apresenta razoável e aplicável à espécie, sem se falar na MP 2.200-2 que põe uma pá de cal na legalidade dos documentos eletrônicos. Porém, em se tratando de título de crédito, insta salientar que estaríamos sob um novo prisma do Direito Cambial se concebêssemos a ausência plena do princípio da cartularidade. Para adotar a concepção de Carnelutti, devemos abandonar a teoria clássica de cartularidade e conceber a nova realidade da desmaterialização dos títulos de crédito.
Não obstante ao ensinamento da lição de Carnelutti, e do advento da MP 2.200-2, o enfrentamento da questão dos títulos eletrônicos nos leva a indagar, ainda, sobre a assinatura no título.
O § 3º do artigo 889 impera dizendo que o título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo. Entretanto, a cabeça do artigo dispõe que o título deve conter a assinatura do emitente. Portanto, estamos diante de um delicado problema.
Fato é que a lei não dispôs sobre a forma ou meio que a assinatura se daria nos títulos emitidos eletronicamente. Não houve qualquer menção. Esse silêncio leva alguns doutrinadores a entender que é inviável ou mesmo imprestável tal mandamento legal. Nesse sentido, Francisco de Paula Eugênio Jardim de Souza Brasil (2006, p. 107), argumenta que, em verdade, "(...) a dificuldade encontra-se no próprio artigo 889, 3º, quando, ao final, determina a observância dos requisitos mínimos previstos no próprio artigo, dentre eles assinatura do emitente." E, ainda, Wille Duarte (2007, p. 6) "Fica claro que a vontade do emitente só se manifesta após sua assinatura legítima que, no caso, deve ser do próprio punho do emitente ou do seu do seu procurador bastante, após a formalização do papel".
A outra parte da doutrina, para superar a exigência da assinatura do emitente no título, baseia-se na idéia de assinatura digital, tão bem analisada por Ligia Paula Pires Pinto. (PENTEADO et al, 2004, p.187) A assinatura em um documento, tanto a digital quanto a física, prestam-se a identificar o seu autor, a vinculá-lo ao documento assinado e a atestar, provar a autoria e conteúdo do documento.
A MP 2.200-2 instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.
Tal diploma legal conferiu validade às assinaturas digitais [01] apostas em documentos eletrônicos. Se, portanto, alguém dotado de uma assinatura digital, confecciona um documento eletrônico e nele apõe sua assinatura digital criptografada, não há, em uma primeira análise, como negar a legalidade do documento e da assinatura, tendo por base a MP 2.200-2. Em conseqüência disso, pode se dizer, também em uma análise preliminar, que o conteúdo da declaração contida nesse documento eletrônico é veraz e que a autoria é perfeitamente identificável, vinculando, assim o documento ao seu subscritor.
Assim, pode se afirmar que a assinatura digital, caso se admita os títulos de crédito em sua forma eletrônica, presta-se a idêntico ou melhor papel que as assinaturas ológrafas nos documentos cartulares.
Cumpre dizer que existem proposições de renomados professores que enfrentam a questão das assinaturas digitais, entre os quais destacamos a proposta do professor vanguardista em matéria de Direito Virtual, Carlos Alberto Rohrmann, que em seu Instituto Online para o Direito Virtual [02] publica inúmeros trabalhos e pesquisas sobre o Ciberdireito. A proposta do professor gira em torno da Nota Promissória emitida eletronicamente, cuja assinatura se dá de modo digital. Concluindo sobre o tema, o professor arrazoou:
O modelo de legislação proposto para a L.U.G. também se baseia no conceito de que o ciberespaço é diferente do mundo real. O ciberespaço é diferente a ponto de requerer um novo conjunto de regras para, efetivamente, realizar sua regulação. Essas novas regras, algumas vezes, poderão ser usadas não somente para regular as relações no próprio ciberespaço, mas também servirão para regular a interface legal entre o ciberespaço e o mundo real. As leis do ciberespaço realizariam esses dois papéis, pois regulariam como os documentos eletrônicos seriam assinados digitalmente no ciberespaço; por outro lado, também regulariam a maneira pela qual esses documentos eletrônicos, assinados digitalmente, seriam trazidos ao mundo real. As leis sobre assinaturas digitais poderiam estabelecer parâmetros legais para regular a maneira como os documentos eletrônicos seriam convertidos de bits do ciberespaço para documentos escritos, em papel, com validade legal. As leis sobre assinaturas digitais são exemplo de uma espécie que somente encontrará aplicação se as relações jurídicas envolverem o ciberespaço. Tais leis realizam duas funções: a regulação do próprio ciberespaço e a regulação da interface entre o ciberespaço e o mundo real. Essas leis pertencem a uma nova disciplina jurídica: o Direito Virtual, também conhecido como Ciberdireito. (ROHRMANN, 2007, p.63)
Depreende-se da conclusão do professor que há uma questão que merece consideração quando se trata assinatura digital, que é exatamente a sua interface entre o mundo virtual e o mundo real, ou seja, o reconhecimento no mundo real de que uma assinatura digital pertence a uma determinada pessoa. Tal problemática se apresenta ainda mais tormentosa se imaginarmos que um título emitido eletronicamente possa vir a ser executado. Esse fato nos leva a indagar como retiraríamos o título emitido eletronicamente do ambiente virtual, para o mundo real, de forma a instruir uma execução judicial.