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Abolição da escravatura e princípio da igualdade no pensamento constitucional brasileiro.

Reflexos na legislação do trabalho doméstico

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06/04/2011 às 06:09
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O trabalho em regime de escravidão é um tema que ainda desperta interesse dos pesquisadores, consideradas as profundas marcas deixadas na sociedade.

SUMÁRIO: Introdução; 1 A escravidão no Brasil colonial e imperial; 1.1 Breve visão histórica da escravidão; 1.2 O trabalho dos negros escravos como sustentáculo do Brasil Imperial; 1.3 A desigualdade e a questão central da escravidão; 1.4 O liberalismo e o discurso abolicionista; 1.5 Alguns agentes do abolicionismo; 1.6 A abolição da escravatura no Brasil: um processo legislativo-progressivo e paulatino; 2 O pensamento constitucional brasileiro e a desigualdade de direitos trabalhistas do doméstico; 2.1 O legado escravagista das funções do trabalho doméstico; 2.2 A regulamentação do trabalho doméstico; 2.3 A desigualdade de direitos do trabalhador doméstico: a visão discriminatória; 2.4 A igualação de direitos do trabalhador doméstico: um processo lento e gradual, a exemplo da abolição da escravidão negra; Conclusão; Referências.


INTRODUÇÃO

O trabalho em regime de escravidão que serviu de sustentáculo econômico, social e político à elite, formada por grandes proprietários rurais, e ao governo no Brasil, até 1888, quando foi abolido, é um tema que ainda desperta interesse dos pesquisadores, consideradas as profundas marcas deixadas na sociedade, nos costumes, na cultura e no próprio pensamento constitucional brasileiro, responsável pela fundamentação do ordenamento jurídico nacional.

O iluminismo forneceu inspiração teórica para a condenação da escravidão adotada pelo antigo regime, mas não se mostrou forte o suficiente no Brasil para apressar o fim da exploração da mão de obra servil. Os ideais de igualdade e liberdade que ecoaram da Revolução Francesa penetraram na intelectualidade brasileira de forma lenta e com pouca intensidade, a ponto de tolerar a ambiguidade de apregoar o discurso liberal, mas praticar e apoiar-se no trabalho escravo.

O pensamento constitucional brasileiro de então, mormente no período imperial, emergiu de juristas que formavam uma elite incumbida, também, de prestar aconselhamento ao imperador, conselhos estes que refletiam as ideias de índole conservadora, própria de quem tinha interesse em manter o estado de coisas que favorecia a classe dominante.

O colapso econômico do sistema escravista decorreu, primeiramente, da Revolução Industrial, em suas duas etapas (1760 e 1880); seguiu-se a queda do preço da reprodução, na própria Europa, dos homens brancos, decorrente dos benefícios de ordem sanitária e farmacológica trazidos pela própria Revolução Industrial; e, ainda, pela elevação dos custos da mão de obra escrava, a ponto de tornar-se mais cara do que a contratação assalariada dos brancos. Acresça-se que, no fundo, o interesse na abolição da escravidão, com substituição pelo trabalho assalariado, iria fazer surgir um novo segmento de compradores, expandindo os negócios e os mercados.

O presente artigo científico tem o objetivo geral de analisar o processo de abolição da escravatura no Brasil, cotejando-o com o princípio da igualdade - cuja desconsideração representou seu problema central - procurando identificar suas características à luz do pensamento constitucional nacional. E, como objetivo específico, busca localizar, nesse processo legislativo-progressivo e lento de libertação dos escravos, traços de semelhança com o processo de reconhecimento da profissão e de igualação de direitos dos empregados domésticos contemporâneos, relativamente aos demais trabalhadores, tendo em vista a diferenciação que ainda pesa contra os primeiros.

Nesse contexto, indaga-se qual o papel do pensamento constitucional brasileiro na abolição da escravatura e os reflexos desse regime de servidão no processo de reconhecimento e de igualação dos direitos do trabalhador doméstico, considerado o princípio da igualdade.

A pesquisa é de natureza qualitativa, realizada na legislação e na doutrina, com fins descritivos. Quanto ao resultado, é pura ou destinada ao conhecimento, sem pretender transformar o objeto apreciado. Adota-se, portanto, o método qualitativo.

São tratados, no primeiro capítulo, após resumida visão histórica, a situação da escravidão no Brasil e sua importância econômica à época da colônia e do império; a desigualdade como sua questão central e a convivência com os ideais liberais, além da indicação dos principais atores no processo de libertação, bem como este se desenvolveu. No segundo capítulo analisa-se o trabalho doméstico como herdeiro de uma das atividades exercidas pelos negros do período de servidão, e o tratamento discriminatório que vem recebendo do legislador brasileiro, em comparação com o referido itinerário demorado e legislativo-progressivo que se impôs para a abolição, concluindo-se pela existência de reflexos daquele processo na situação jurídica dos trabalhadores domésticos.


1 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLONIAL E IMPERIAL

Os portugueses lançaram mão do trabalho escravo dos negros traficados da África como forma de explorar as terras coloniais no Brasil, apropriadas à cultura extensiva da cana de açúcar, inicialmente, e, depois, para a cultura do café.

1.1 Breve visão histórica da escravidão

Para Montesquieu [01], "a escravidão propriamente dita é o estabelecimento de um direito que torna um homem tão próprio de outro homem, que este é o senhor absoluto de sua vida e de seus bens".

São várias as origens da escravidão apontadas por Montesquieu. A mais propalada - e por ele refutada, uma vez que insensata - oriunda dos jurisconsultos romanos, explica que

"O direito das gentes quis que os prisioneiros fossem escravos, para que não fossem mortos. O direito civil dos romanos permitiu que devedores que podiam ser maltratados por seus credores vendessem a si mesmos; e o direito natural determinou que crianças que um pai escravo não podia mais alimentar se tornassem escravos como seu pai" [02].

A escravidão dos negros africanos, pelos europeus, é creditada a razões de necessidade visando à exploração das colônias na América, notadamente a cultura da cana de açúcar, diante do extermínio dos nativos. A tais motivos somam-se outros pertinentes aos traços físicos, dúvidas quanto à sua identidade humana e à existência de uma alma dentro deles, bem como a ausência de senso comum [03]. Não seria, então, injusto, nesse contexto, submetê-los à escravidão.

O ressurgimento da escravidão no mundo ocidental não guarda semelhança com a lógica da antiguidade, posto que orientado, desta vez, marcadamente, pelo interesse econômico.

Os portugueses, no Brasil colonial, primeiramente tentaram utilizar a mão de obra indígena na cultura da cana de açúcar, mas não lograram êxito, seja pela forte resistência oferecida pelos jesuítas que se dedicavam à catequização dos silvícolas, seja porque era difícil a sua captura, seja, ainda, pela redução dessa população, devastada que foi pelos germes trazidos pelo homem branco [04].

A escravidão dos negros no Brasil recebeu o impulso dos altos lucros propiciados pelo tráfico, a partir da segunda metade do Século XVI, estabelecendo uma rota do crescente comércio negreiro entre a África e o Brasil, inicialmente com desembarque nos portos do Recife, Salvador, Belém, São Luís e Rio de Janeiro, para abastecer a demanda da força de trabalho em uma economia voltada para o mercado externo [05], fundada na lavoura de extensão.

As grandes fortunas que se formaram graças ao comércio negreiro eram majoritariamente portuguesas, e, não, brasileiras - como observa Buarque de Holanda [06] - de sorte que os lusitanos não tinham interesse na modificação da situação, mormente do tráfico.

Independente de Portugal em 1822, o império brasileiro herdou dos lusitanos a escravidão dos negros, formada por um contingente daqueles trazidos da África e outros aqui nascidos - como observa Valladão [07] - restando-lhe o desafio de com ela conviver por mais sessenta e seis anos, até a abolição total da servidão.

1.2 O trabalho dos negros escravos como sustentáculo do Brasil Imperial

Desde a época colonial, a sociedade brasileira se achava estruturada no meio rural, constituindo não apenas uma civilização agrícola, mas, propriamente, uma civilização de raízes rurais, conforme Buarque de Holanda [08], assim permanecendo até a abolição.

Durante o período monárquico, no Brasil a riqueza se assentava na utilização da mão de obra escrava "e na exploração extensiva e perdulária das terras de lavoura", concentrando-se em mãos dos "fazendeiros escravocratas" [09].

A política era dominada, sem contestação, por esses fazendeiros e seus filhos, também educados para as profissões liberais, diretamente ou através de pessoas por eles eleitas, de modo a ocuparem parlamentos, ministérios e demais postos de comando, dando, assim, o tom e a estabilidade das instituições [10]. O domínio econômico, social e político dessa classe foi de tal modo tranquilo que lhe permitia até incursões liberais, contrariando as próprias tradições e expondo suas fragilidades - o que, depois, propiciaria a abolição da escravatura.

A sociedade desse período imperial se concentrava no "binômio senhor/escravo" e tal significava, além dos próprios extremos, sua "marca mais característica, o que não implicava a inexistência de uma camada intermediária" [11]. Mas, nesse universo em que preponderava a escravidão, ao homem livre que não fosse senhor de escravos restava um diminuto papel, relegado à vadiagem ou à atividade de caçador de servos foragidos.

O proprietário das terras concentrava, assim, desde o período colonial, uma autoridade incontestável, às "vezes caprichosa e despótica", e nessas propriedades auto-suficientes se encontravam capelas, escolas primárias, produção de alimentação e de móveis, enfim, tudo o que era necessário à sobrevivência, observada, ainda, uma estrutura familiar inspirada no modelo clássico romano-canônico, sob a autoridade do pater-famílias [12].

Logo no primeiro reinado iniciaram-se as mudanças econômicas, tendo em vista a expansão da lavoura do café. No entanto, continuava o Brasil servindo-se da mão de obra escrava e prosseguia sua economia voltada para o comércio exterior. Apesar da crise nas exportações do açúcar, deflagrada pela queda do preço do produto no mercado externo, as tentativas de extinção do tráfico de escravos e as ideias de abolição eram fortemente resistidas, considerada a necessidade do trabalho forçado para garantir a prosperidade do setor cafeeiro.

Nesse contexto do predomínio do trabalho escravo, sobressaiu-se a função do Estado imperial - alimentado financeiramente pelos recursos alfandegários do produto desse trabalho e pelos empréstimos obtidos no exterior - assim resumida:

"Um outro dado de importância foi o papel central do Estado imperial na manutenção da escravidão. Cabia ao Estado não só a tarefa de vigilância das senzalas, combatendo suas fugas, os quilombos e esmagando as revoltas. O Estado efetuou também a legalização do sistema escravista mediante a instauração de uma ordem jurídica que, defensora da propriedade privada, não hesitava em definir os negros escravizados como objetos da propriedade dos escravistas, portanto, protegidos pela lei" [13].

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Era a mão escrava quem também obrava no meio urbano, incorporando-se ao sistema produtivo, onde os negros assumiram, além dos afazeres domésticos, trabalhos variados de vendedores no comércio, marinheiros, estivadores, entre outros ofícios [14].

Nesse contexto, como resume Carvalho [15], "o escravo era, até pelo menos a Lei do Ventre Livre, a mão de obra quase exclusiva da grande lavoura de exportação que, por sua vez, era a geradora das principais receitas do Estado".

1.3 A desigualdade e a questão central da escravidão

A produção no período imperial, como visto, organizava-se "sob a égide do escravismo, que proporcionava alta lucratividade e por isto era impossível se empreender a defesa ou sequer concordar com argumentos em prol dos direitos individuais à liberdade" [16].

As idéias revolucionárias do Século XVIII, produzidas pelo Iluminismo, haviam abalado as antigas razões que sustentavam a escravidão, apregoando, principalmente, conforme Costa [17], "a supremacia das leis e os direitos naturais do homem, entre os quais o direito de propriedade, liberdade e igualdade de todos perante a lei". Repousam nessas idéias as origens da teoria abolicionista, que influenciou os movimentos pela libertação dos escravos, no Brasil, notadamente a Inconfidência Mineira.

Conciliar o direito de propriedade dos senhores de escravos com o direito à liberdade e à igualdade desses servos passou a ser, então, a grande contradição que alimentava os debates e as ideias em torno do regime escravista.

No entanto, no Brasil, nenhum movimento revolucionário nos Séculos XVIII e XIX expressou a preocupação com a questão da igualdade e da liberdade, exceto a Conjuração Baiana, ao pretender a abolição da escravatura. E, embora tenha sido pouco provável a manutenção de algum contato com a obra dos autores ilustrados, em 1798 os revoltosos na Bahia - escravos, mulatos e negros livres - foram condenados "por defenderem os 'abomináveis princípios franceses'" [18].

A proclamação da independência em 1822 absteve-se de considerar o direito à igualdade relativamente aos escravos, e não correspondeu às expectativas de abolição para aquele momento. Mas, por outro lado, possibilitou que os homens livres participassem mais do jogo político, aliando liberdade e propriedade mínima, nada obstante o exercício da maioria dos cargos legislativos continuasse fora do alcance de grande parte desses homens livres, pois, ainda, sob o domínio dos grandes proprietários [19].

A Constituição Imperial de 1824 também ignorou o problema da desigualdade enraizado no regime escravagista brasileiro. As ideias de José Bonifácio de Andrada e Silva levadas à Assembléia Nacional Constituinte de 1823 condenavam explicitamente a "escravidão, em nome dos direitos individuais e do progresso do império nascente" [20], mas nem chegaram a ser efetivamente debatidas, ante a dissolução dessa Assembléia por D. Pedro I.

Importante, porém, registrar que o projeto de constituição discutido na frustrada Assembléia Nacional Constituinte, como descreve De Roure [21], no artigo 5º, parágrafo 6º, reconhecia o "status" de cidadão brasileiro aos escravos que obtivessem carta de alforria, e tivessem emprego ou ofício. Isso gerou debates que revolviam o próprio sistema escravista. O deputado Munis Tavares, por um lado, relembrou os efeitos sobre os negros da Ilha de São Domingos, produzidos por oradores da Constituinte francesa, representando tal assunto, por si, um perigo capaz de deflagrar revoltas sangrentas também no Brasil. O deputado Alencar, por seu turno, sustentou que deveriam ser cidadãos brasileiros todos os alforriados, inclusive os negros vindos da África. O certo é que "a Assembléia tinha tendencias abolicionistas e lamentava a escravidão, manifestando verdadeiros sentimentos de humanidade e justiça" [22].

Informa De Roure que houve "um debate prolongado, no qual a escravidão foi condemnada em these e os pretos foram maltratados de facto, lembrando-se o odio das raças nos Estados Unidos" [23]. Nesse debate destacou-se o deputado Silva Lisboa, "que defendeu os pretos com calor, protestando contra o systema de perpetuar a irritação dos africanos e seus oriundos e de tratal-os com desprezo e odio", de sorte que apresentou um substitutivo, a final aprovado, que considerava brasileiros "os libertos que adquirissem sua liberdade por qualquer titulo legitimo" [24]. Assim, arremata De Roure, saiu vencedora a doutrina do Decalogo, defendida pelo deputado Silva Lisboa, "no sentido de evitar que o preto, cidadão brazileiro por ter nascido no paiz, desdenhasse e desobedecesse a seus paes, não os honrando só porque estes, nascidos na África, não podiam ser cidadãos como os filhos" [25].

Mas a Carta Imperial outorgada por D. Pedro I, apesar de transcrever quase que literalmente disposição da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, sobre o direito inalienável à liberdade, veio a ignorar os cativos e manteve "escravizada quase a metade da população brasileira" [26].

A primeira Constituição do Brasil nem sequer reconhecia a existência desse contingente [27] e, obviamente, a ele não destinava suas garantias, mas, nada obstante isso, adotou princípios liberais que viabilizaram a "formação de uma consciência crítica em relação ao sistema escravista" [28], assumindo, a mesma Carta, uma importância histórica, na medida em que assegurou a evolução nos aspectos políticos, econômicos e sociais, tais "a supressão do tráfico de escravos, o início da industrialização e a própria Abolição em 1888" [29].

Observa-se, portanto, que a desigualdade não foi devidamente considerada como questão central da escravidão. Optou-se pela convivência da contradição entre a adoção dos princípios iluministas, notadamente a igualdade e a liberdade, e a servidão, tida, então, como um mal necessário ao desenvolvimento do País.

1.4 O liberalismo e o discurso abolicionista

O Brasil que se seguiu a 1822 estruturou-se sobre os pressupostos liberais, apesar da sociedade dominante escravagista. Os ideais liberais, aqui, no entanto, não alcançaram a mesma expressão obtida na Europa, posto que nem sequer havia uma burguesia formada que empunhasse essa bandeira, esbarrando, de mais a mais, nos interesses preponderantes do sistema de servidão.

Os princípios liberais encaravam a escravidão não mais sob o ângulo religioso, e, sim, como um desrespeito ao direito à liberdade [30] - ignorado no País.

Após a independência, então, como observa Prado [31]

"a problemática da escravidão no Brasil assumia uma dimensão maior. Afinal, o império nascente precisava conviver com a ambiguidade proveniente de ter sido seu estabelecimento efetuado com base nos pressupostos liberais e não terem sido essas ideias utilizadas para romper a ordem escravista, além do que a vigência da escravidão inviabilizava que este Estado se constituísse por meio de um pacto liberal e/ou democrático".

Optou-se, então, por conciliar as ideias liberais e o regime da escravidão no Brasil imperial, como explica Costa [32]:

"A elite brasileira, composta predominantemente por grandes proprietários e por comerciantes envolvidos na economia de exportação-importação, estava interessada em manter as estruturas tradicionais. Escolheram cuidadosamente os aspectos da ideologia liberal que se adequassem à sua realidade e atendessem a seus interesses. Purgando o liberalismo de seus aspectos radicais adotaram um liberalismo conservador que admitia a escravidão e conciliaram liberalismo e escravidão da mesma forma que seus avós haviam conciliado a escravidão com o cristianismo".

E o processo de abolição foi submetido aos interesses do sistema escravista, que corrompeu, também, as ideias liberais.

1.5 Alguns agentes do abolicionismo

A resistência negra teve seu papel no processo abolicionista: não foram os negros tão submissos nem dóceis diante da servidão, como, não raramente, se costuma asseverar na história mal contada do Brasil.

É certo que, diferentemente de outros países, como registra Valladão [33], a abolição da escravatura brasileira não foi precedida de uma guerra sangrenta, como a da Secessão, nos Estados Unidos da América, nem de indenização aos senhores de escravos, tal como ocorrido na Inglaterra.

No entanto, registraram-se reações ao estado servil e à violência praticada contra os escravos, que iam desde o suicídio às fugas. Essas fugas - as mais comuns das reações - levaram à formação dos quilombos, com destaque para Palmares e seus líderes Ganga Zumba e Zumbi, este último convertido "em símbolo da resistência negra e de todos aqueles que lutam pela dignidade do homem, livre e senhor dos seus atos, sem abdicar de direitos iguais para os demais homens" [34].

Mas, segundo Costa [35], a fase, propriamente, de insurreições em prol da abolição iniciou-se somente por volta de 1880, ocasião em que surgiram sociedades secretas a exemplo do Clube do Cupim (Recife) e os caifazes em São Paulo, com a finalidade de fomentar a rebelião nas senzalas e as fugas dos escravos. Os caifazes - sociedade organizada por Antonio Bento e que reunia pessoas de várias profissões, brancos, negros e mulatos - empenhavam-se em combater a escravidão, especialmente através da imprensa, da mobilização social, realização de atos públicos, patrocínio da defesa judicial de escravos, compra de alforrias, proteção aos negros em fuga e sabotagem das ações de caça aos foragidos [36].

A par dessas atitudes de rebeldia, inclusive mediante esforço físico - que não poderiam deixar de ser mencionadas neste artigo ainda que de modo resumido - o processo abolicionista teve sua política, com fases bem delimitadas e personagens proeminentes, até o êxito em 1888.

Esse processo se iniciou com o combate ao tráfico negreiro, cuja luta foi deflagrada em 1807, como observa Carvalho [37], desde quando a Inglaterra proibiu a prática por seus súditos e iniciou extensa campanha para extingui-lo em outros países, inclusive Portugal e, depois, o Brasil - cujo reconhecimento da independência e a celebração de tratados comerciais foram condicionados ao fim desse tráfico.

Às exigências inglesas resistiu o governo brasileiro, inclusive na voz de políticos do jaez de José Bonifácio, que, nada obstante fosse declaradamente contrário à escravidão, entendia que a abolição imediata do tráfico significaria "autêntico suicídio político" [38].

Carvalho [39] registra, aliás, que, ressalvada a revolta dos malês, nenhuma rebelião deflagrada até 1830, nem mesmo as que contavam com a participação de escravos, postulava a imediata abolição da escravatura.

Apesar da edição da lei contra o tráfico de 1831 - que nunca foi cumprida na prática, pelo contrário - incrementou-se a importação de escravos. Diante disso, abolicionistas e escravagistas passaram a debater suas posições com maior intensidade no cenário político, sob os olhos indecisos do Governo imperial. Com receio de que a revolta levada a efeito por escravos baianos no mesmo ano replicasse no Rio de Janeiro, ergueu-se a voz do liberal Evaristo da Veiga, para propor o fim do tráfico e que fossem expulsos do Brasil os "libertos perigosos". Advertência feita em vão: o tráfico prosseguia sem repressão, até que a Inglaterra voltou a pressionar o Governo brasileiro em 1839, inclusive com apreensões de navios do Brasil e portugueses, o que provocou a reação de parte da população e da imprensa, mormente o jornal ministerial "O Brasil", de Justiniano José da Rocha, que, considerando "a continuação do tráfico um mal necessário para sustentar a agricultura" [40], efetuou forte campanha pelo fim do tratado antitráfico de 1842.

A ascensão política dos liberais em 1844 não mudou muito esse quadro, prosseguindo-se com o discurso da defesa da soberania nacional perante a Inglaterra, enquanto aqui se tolerava o tráfico negreiro, discurso esse que reunia até figuras de posturas distintas quanto à importação de escravos, como Paula Souza e Vasconcelos [41]. Em 1850, precipitado por ações inglesas de invasão dos portos brasileiros, com apreensão e afundamento de seus navios - afrontando, efetivamente, a soberania nacional - o Governo conservador, finalmente, aprovou a Lei Euzébio de Queiroz, abolindo o tráfico e punindo seus agentes, de sorte que no ano seguinte somente 3.278 escravos foram desembarcados [42].

Nesse percurso abolicionista, sempre resistido pelos políticos ligados aos interesses dos proprietários rurais, merece destaque a iniciativa do deputado Silva Guimarães, que, em 1850, apresentou projeto que dispunha sobre a liberdade dos nascidos de mãe escrava, rejeitado, porém, em duas ocasiões [43].

Também de ser posta em relevo a atuação do Instituto dos Advogados do Brasil, nas figuras de "Joaquim Nabuco, Saldanha Marinho, Montezuma, Carvalho Moreira, Caetano Alberto Soares, Urbano Pessoa, Perdigão Malheiro", os quais, em um tempo "em que o princípio da escravidão era acatado por todos como um mistério sagrado", "representam o protesto solitário do Direito" - como enfatiza Valladão [44]. Perdigão Malheiro, em 1863, produziu a obra "Da ilegitimidade da propriedade constituída sobre os Escravos", traduzida para o inglês e publicada na Inglaterra, tendo sido reconhecida como a melhor escrita no Brasil sobre a escravidão e que contribuiu para a queda desse regime [45].

A favor da abolição ergueu-se também a voz da Mocidade Acadêmica, guiada por Castro Alves, de 1862 a 1870, influenciando as mentes nas Faculdades em São Paulo, seguindo-se Recife, a Bahia e o Rio de Janeiro, rumo à abolição (e também à República) [46].

Em 1866 D. Pedro II, instigado pelas ideias de Perdigão Malheiro e Castro Alves, apresentou ao Conselho de Estado cinco projetos elaborados por Pimenta Bueno, um deles sobre a libertação dos nascituros, quebrando, assim, o Imperador, "a ordem constitucional", pois "apelava para os juristas, superava o Governo e os políticos" [47]. Em 1871, após intensos e longos debates, notadamente no parlamento, e diante da incansável luta de figuras como Pimenta Bueno e Nabuco de Araújo, a Câmara aprovou a Lei do Ventre Livre.

A atuação de D. Pedro II é analisada no contexto da política da abolição, por Carvalho [48], como a luta do "rei contra os barões", retratando as "relações entre o governo, isto é, o rei e seus burocratas, e a classe dos proprietários rurais". Era a grande lavoura, como dito, quem mais utilizava a mão de obra escrava. Eram, também, esses proprietários, quem detinha o poder. Obviamente, opunham-se à abolição, de modo a deixar claro o confronto de interesses entre o polo burocrático do poder e o polo social e econômico do mesmo poder.

A política da Lei do Ventre Livre envolveu liberais e conservadores para a sua aprovação, observando-se que a ideia fazia parte do discurso dos primeiros, mas foi apropriada e concretizada pelos últimos, quando estavam no poder [49].

Em 1879 inicia-se "o movimento abolicionista concretizado", conforme Valladão [50], com o discurso do deputado Jenonymo Sodré, no sentido da imediata emancipação. Foi seguido por Joaquim Nabuco, que veio a fundar, em 1880, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, e seu trabalho foi decisivo para a total abolição, mesmo estando, depois, fora da Câmara. Sua força moral conseguiu que o Clube Militar se posicionasse junto à Princesa Izabel para que os oficias e praças do Exército não fossem desviados para caça aos escravos fugidos.

Nada obstante a resistência à imediata e total abolição, pelos políticos ligados aos proprietários rurais, mas já aberta a estrada jurídica pela Lei do Ventre Livre, em 1885 foi aprovada a Lei dos Sexagenários, resultante do Projeto Saraiva, pelo Gabinete ultraconservador de Cotegipe [51]. Seu objetivo era a extinção gradual da servidão, na medida em que a população de escravos fosse envelhecendo.

Enquanto os escravistas tentavam postergar o fim da escravidão que se avistava, inclusive porque não mais apoiada pela Coroa, e procuravam vender seus escravos, libertar voluntariamente outros e atrair imigrantes da Europa para substituir mão de obra cativa [52], vivia-se a última fase do processo abolicionista, demarcada por um novo elemento, qual seja, a participação popular [53] - decisiva, aliás, para a aprovação da Lei dos Sexagenários.

O movimento abolicionista, segundo Valladão, chegou ao Judiciário, "com sentenças de ilustres magistrados, Macedo Soares e Teixeira de Sá, demonstrando a falta de fundamento do direito à escravidão" [54].

Em 1886, a Lei n. 3.310 alterou o Código Criminal para extinguir a pena de açoite, ficando os escravos sujeitos às mesmas penalidades dos homens livres. A falta de receio aos castigos corporais de antes incrementou as fugas das fazendas e a recusa ao trabalho pelos escravos, desorganizando seus serviços [55].

Finalmente, em 1888, com o apoio dos republicanos paulistas e dos conservadores liderados por Antonio Prado, foi aprovada a Lei Áurea. Isso se deu no Gabinete do conservador João Alfredo, tendo a Princesa Izabel, na Fala do Trono de 7 de maio daquele ano, apresentado a proposta, que foi aprovada com poucos votos contrários [56].

1.6 A abolição da escravatura no Brasil: um processo legislativo-progressivo e paulatino

Considerada como "a grande reforma social do Império", segundo Valladão [57], a abolição da escravatura deu-se "na linha brasileira das mudanças, sem violência, em forma pacífica, evolutiva, juridicamente, por via legislativa-progressiva, com espírito de sacrifício individual para o bem geral, sem derramamento de sangue, sem doentes, feridos ou mortos". A afirmação está correta apenas em parte. Como se viu, apesar de o Brasil não ter passado por uma Guerra de Secessão, como os norte-americanos, para libertar seus escravos, aqui houve alguma resistência à servidão, reprimida com violência, e os feridos e mortos nos quilombos são prova disso, notadamente os do quilombo de Palmares, destruído por Domingos Jorge Velho em 1694, ocasião em que os negros foram "abatidos a tiros, talhados a golpes de armas brancas, submetidos à degola" [58].

Essas reações violentas foram, porém, minoritárias, e o que prevaleceu no processo rumo à libertação dos escravos foi o que se denomina de tradição brasileira de efetuar mudanças lentas e graduais, sem profundas rupturas sociais e sem batalhas sangrentas.

A confirmação dessa assertiva é obtida a partir da análise do caminho percorrido desde a primeira lei tendente à abolição do tráfico de africanos, até a Lei Áurea, que se demorou por quase sessenta anos.

Tem-se, assim, de 1831, quando editada a Lei de 7 de novembro daquele ano, que proibia o tráfico e declarava livres os escravos que entrassem nos portos brasileiros (não cumprida), até 1850, quando, efetivamente, o tráfico foi abolido pela Lei Euzébio de Queiroz, um período de vinte anos. E até 1866, quando D. Pedro II encaminhou os cinco projetos sobre emancipação dos escravos, passaram-se mais dezesseis anos, e mais cinco até 1871, ano da Lei do Ventre Livre. Daí transcorreram mais doze anos até a Lei dos Sexagenários e, finalmente, mais cinco, até a Lei Áurea.

Observa-se, também, que é inegável que esse processo se deu por via legislativa e progressivamente: primeiro, aboliu-se a importação de escravos, estancando a maior fonte de alimentação do contingente de servos. Em seguida, libertou-se quem nascia do ventre escravo e, mais tarde, com a libertação dos maiores de sessenta anos, restringiu-se, mais ainda, a quantidade de cativos - libertos, completamente, em 1888.

Percebe-se nessa lenta marcha a permanente tentativa de conciliação do direito de propriedade dos senhores e dos interesses econômicos predominantes, com a consciência da necessidade de respeito aos direitos de liberdade e igualdade dos escravos, sacrificando-se, com a demora, estes últimos, nada obstante a incidência dos fundamentos jurídicos que se ergueram sobre os ideais da Ilustração.

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Sobre a autora
Evanna Soares

Procuradora Regional do Ministério Público do Trabalho na 7ª Região (CE). Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA, Buenos Aires). Mestra em Direito Constitucional (Unifor, Fortaleza). Pós-graduada (Especialização) em Direito Processual (UFPI, Teresina).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Evanna. Abolição da escravatura e princípio da igualdade no pensamento constitucional brasileiro.: Reflexos na legislação do trabalho doméstico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2835, 6 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18842. Acesso em: 19 abr. 2024.

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