2. PRINCÍPIO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
Neste capítulo, buscou-se discutir e determinar a abrangência dos termos apresentados no título: princípio e dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, foram estruturados três tópicos de forma a sistematizar a dinâmica empreendida. A delimitação aqui estabelecida é importante no sentido de fundamentar teoricamente a análise jurisprudencial realizada no terceiro capítulo.
No primeiro tópico foram apresentadas as principais teorias que buscam explicar o papel que os princípios cumprem no ordenamento jurídico, assim como suas características predominantes. A partir disso, no segundo tópico, foi analisada mais detidamente a tese adotada por este trabalho.
No último tópico houve a abordagem acerca da dignidade da pessoa humana, seus principais aspectos e a sua função no ordenamento jurídico.
2.1. O QUE É PRINCÍPIO?
A questão proposta acima é tema bastante controvertido. Seria muito pretensioso, e nem faz parte do escopo deste trabalho, chegar a esta resposta, quando há também bastante repercussão doutrinária. Visa-se, na verdade, apontar uma noção do conceito de modo a se criar um fundamento para alcançar o principal objetivo do trabalho: analisar e demonstrar a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana nas decisões do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região sobre assédio moral no trabalho. Assim, convém indicar e discutir as várias teses existentes acerca do tema e o entendimento acolhido por este trabalho.
Os princípios jurídicos são historicamente entendidos como normas de conteúdo abstrato e axiológico, isto é, uma norma dotada de valores em que sua aplicabilidade depende de certo exercício de ponderação. É como se fossem proposições jurídicas que pairassem no ar e que, para serem aplicadas, devem ser apanhadas pelo intérprete e confrontadas com a realidade concreta, fundamentando a decisão, e dando substrato à norma.
Neste sentido, Josef Esser afirma que "princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado" (apud ÁVILA, 2009, p. 35). Esser caracteriza o princípio como a espécie de norma que tem conteúdo no sentido valorativo: uma norma que contém valores, em oposição a outro tipo de norma caracterizada pela forma. Embora admita que em muitas vezes o essencial é a forma, pois é ela quem confere "significação jurídica àquele conteúdo fundamental" (apud BRANCO; COELHO; MENDES, 2010, p. 96).
Com efeito, Karl Larenz defende os princípios:
Como normas de grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento (apud ÁVILA, 2009, p. 35)
Deste modo, o autor entende os princípios como norteadores da regulamentação jurídica, não tendo aplicabilidade material, pois lhe faltaria a identidade formal de proposição jurídica, ou seja, não seria uma regra de efeito imediato, mas tão somente um direcionador para a obtenção desta.
Para Robert Alexy:
Os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de normas jurídicas por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas (apud ÁVILA, 2009, p. 35)
Este autor compreende os princípios como instrumentos de potencialização normativa aplicada de acordo com as normas e circunstâncias do caso concreto, não determinando esta conseqüência de forma direta. Destarte, esclarece Humberto Ávila (2009, p. 38):
Daí a definição de princípios como deveres de otimização aplicáveis em vários graus segundo as possibilidades normativas e fáticas: normativas, porque a aplicação dos princípios depende dos princípios e regras que a eles se contrapõem; fáticas, porque o conteúdo dos princípios como normas de conduta só pode ser determinado quando diante dos fatos.
Destarte, para Alexy os princípios são norteadores do sistema jurídico devendo ser operados dentro de certos limites impostos tanto pela situação do caso concreto – a realidade – como pelas possibilidades jurídicas. Seriam, portanto, mandatos de otimização normativos:
Os princípios são mandatos de otimização, caracterizados pelo fato de poderem ser cumpridos em diferentes graus, e a medida do seu cumprimento não depende apenas das possibilidades reais, mas também das possibilidades jurídicas (apud BRANCO; COELHO; MENDES, 2010, p. 103).
Ronald Dworkin aborda de forma bastante profunda o papel dos princípios, tendo estes como partes indissociáveis do Direito. Neste sentido, Dworkin utiliza a expressão "princípio" em dois aspectos diversos, ora como método de interpretação e aplicação da norma, ora como parte integrante da norma e que deve ser aplicada como tal:
Com muita freqüência, utilizarei o termo "princípio" de maneira genérica, para indicar todo esse conjunto de padrões que não são regras (DWORKIN, 2010, p. 36).
Ainda, esclarece:
Denomino "princípio" um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade (DWORKIN, 2010, p. 36).
O autor investe na distinção entre princípios e regras, análise que não é cabível neste trabalho. Aqui interessa conhecer o conceito de princípio na filosofia do autor. Neste diapasão, Dworkin apresenta as características pertinentes aos princípios.
Assim, os princípios "não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas" (DWORKIN, 2010, p. 40). Isto é, quando lhe apresentada a situação fática, não tem o princípio o conteúdo normativo que lhe permita ser aplicado imediatamente.
De outro modo, Dworkin confere aos princípios um caráter de importância diferenciado quando expostos à colisão entre si. É o que o autor denomina "dimensão de peso" (dimension of weight):
Os princípios possuem uma dimensão que as regras não tem - a dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (...), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um (DWORKIN, 2010, p. 42).
Assim, quando houver confronto entre princípios diferentes, o intérprete do Direito deverá fazer uma espécie de mensuração quanto ao valor que deve prevalecer no caso concreto, ou seja, dará uma importância relativa na circunstância em análise a um dos princípios colidentes.
José Afonso da Silva, adotando a teoria defendida por José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, afirma que os princípios são normas nas quais "confluem valores e bens constitucionais" (SILVA, 2007, p. 92).
Em sentido diametralmente oposto, o jurista Luís Antônio Rizzato Nunes afirma que há uma confusão entre "princípio" e "valor". Segundo ele, deve-se afastar a confusão existente na linguagem jurídica entre estes dois conceitos. Para o autor, enquanto o "valor" é relativo, ou seja, está condicionado a um conjunto de fatores históricos, políticos, sociais, econômicos etc., o princípio é absoluto:
Enquanto o valor é sempre um relativo, na medida em que "vale", isto é, aponta para uma relação, o princípio se impõe como um absoluto, como algo que não comporta qualquer espécie de relativização (NUNES, 2010, p. 20).
Ainda, esclarece o autor:
O valor sofre toda a influência de componente histórico, geográfico, pessoal, social, local etc. e acaba se impondo mediante um comando de poder que estabelece regras de interpretação (...). O princípio, não. Uma vez constatado, impõe-se sem alternativa de variação (NUNES, 2010, p. 20).
Feita a distinção, Rizzato Nunes vem a corroborar a tese de Ronald Dworkin ao afirmar que os princípios são constituídos de aspectos de generalidade e abstração. Defende que "os princípios situam-se no ponto mais alto de qualquer sistema jurídico" (NUNES, 2010, p. 35). E, sendo parte integrante do ordenamento jurídico, os princípios são dotados de eficácia plena. Com efeito, a interpretação da norma jurídica deve ser pautada em conformidade com os princípios jurídicos: "o intérprete tem sempre de constatar que o sistema jurídico legal – escrito e não escrito (costumes) – está assentado em princípios" (NUNES, 2010, p. 37).
O jurista Inocêncio Mártires Coelho afirma que os princípios cumprem um papel de fundamentação decisória da norma, isto é, apontam a maneira como deve ser aplicada a norma. Assim afirma:
Os princípios jurídicos não se apresentam como imperativos categóricos, mandados definitivos nem ordenações de vigência diretamente emanadas do legislador, antes apenas enunciam motivos para que o seu aplicador se decida neste ou naquele sentido (BRANCO; COELHO; MENDES, 2010, p. 99).
Desta forma, o legislador, em se tratando de princípios, não delimita claramente a sua hipótese de incidência normativa, conferindo ao intérprete o exercício de investigação da adequação do princípio à situação fática apresentada. Ou seja, é o aplicador do Direito que, frente à realidade concreta oferecida, irá fazer o juízo de ponderação do princípio, averiguando a sua hipótese de cabimento. Neste sentido, os princípios atuam como verdadeiros mandatos de otimização recebidos do legislador.
O autor afirma que o princípio é produzido em duas fases. Na primeira, o legislador formula-os, dotando-os de caráter geral e abstrato. Em seguida, quando efetivados pelo intérprete da norma, atuam como "normas do caso ou normas de decisão" (BRANCO; COELHO; MENDES, 2010, p. 100).
Em última análise, estabelece outra dimensão para os princípios, alargando a sua finalidade:
Os princípios jurídicos possuem, igualmente, uma importante dimensão institucional, como fatores de criação e manutenção de unidade política, à medida que, nos momentos constituintes, por exemplo, graças à amplitude e à indeterminação do seu significado, eles viabilizam acordos ou pactos de convivência sem os quais as disputas ideológicas seriam intermináveis, e os conflitos delas resultantes não permitiriam a promulgação consensual das leis fundamentais (BRANCO; COELHO; MENDES, 2010, p.101).
Destarte, a positivação dos princípios na Constituição cumpre um roteiro pragmático com sentido de facilitar concessões políticas entre membros de diferentes correntes ideológicas. Isto se dá pelo grau de indeterminabilidade e abstração dos princípios. Essas características vêm acompanhadas de outros aspectos, como o caráter de fundamentalidade (os princípios têm uma importância estruturante no ordenamento), proximidade com a idéia de Direito (funcionam como padrões vinculantes aos deveres de justiça) e possuem uma "natureza normogenética", isto é, fundamentam as regras, "são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas" (BRANCO; COELHO; MENDES, 2010, p. 104).
Sem prejuízo das posições apresentadas, entendeu-se, para os fins desta monografia, mais adequada a teoria defendida pelo jurista Humberto Ávila, a qual será aprofundada no tópico seguinte.
2.2. A TEORIA DOS PRINCÍPIOS: CONSIDERAÇÕES GERAIS
Humberto Ávila apresenta divergência em relação às demais teorias que buscam explicar o papel dos princípios. Em virtude disso, criou a Teoria dos Princípios, que se propõe a explicar o funcionamento dessa espécie de norma:
É fácil de encontrar dois modos opostos de investigação dos princípios jurídicos. De um lado, podem-se analisar os princípios de modo a exaltar os valores por ele protegidos, sem, no entanto, examinar quais são os comportamentos indispensáveis à realização desses valores e quais os instrumentos metódicos essenciais à fundamentação controlável da sua aplicação. Nessa hipótese privilegia-se a proclamação da importância dos princípios, qualificando-os como alicerces ou pilares do ordenamento jurídico. Mais do que isso, pouco. (ÁVILA, 2010, p. 64)
A crítica apresentada refere-se à excessiva importância dispensada pela ciência jurídica em geral à idéia de princípio como mero fundamento da ordem legal, sem a preocupação de aprofundar os estudos acerca de seu método de aplicação. Isto é, a doutrina predominante costuma exaltar os valores contidos nos princípios, assim como seu papel de base do ordenamento jurídico. No entanto, não aponta os meios que possibilitariam a implementação desses mesmos valores.
Considera-se que essa atuação subestima a real preponderância dos princípios no ordenamento, relegando-os a um papel secundário, quando, na verdade, são primordiais. Neste sentido, os princípios tornam-se apenas depósitos de conteúdo axiológico, os quais, sem o devido aprofundamento sobre a questão de sua aplicação, não são efetivados. Permanecem, assim, subaproveitados, funcionando como "enfeites" normativos que apenas "decoram" o ordenamento jurídico, sem maiores efeitos práticos.
Ao romper de certo modo com esse tipo de análise, propõe-se que o estudo sobre os princípios seja direcionado à apreciação de seu esqueleto normativo. Assim, tendo como fim principal, por um lado, descobrir o método adequado que deve ser utilizado para a efetivação de seus valores e, por outro, justificar e garantir que a sua aplicação se dê em conformidade com a realidade jurídica.
Esclarece ÁVILA (2010, p. 64):
Pode-se investigar os princípios de maneira a privilegiar o exame da sua estrutura, especialmente para nela encontrar um procedimento racional de fundamentação que permita tanto especificar as condutas necessárias à realização dos valores por eles prestigiados quanto justificar e controlar sua aplicação mediante reconstrução racional dos enunciados doutrinários e das decisões judiciais.
Destarte, a própria estrutura do princípio contém os meios mais adequados à sua efetiva aplicação. Com efeito, os princípios teriam assim uma "dimensão" (ÁVILA, 2010, p. 69), mas diferentemente da "dimensão de peso" de Dworkin, trata-se de uma dimensão finalística. Neste sentido, os princípios cumprem uma função normativa de realização de seus valores através da aplicação da norma jurídica.
Com efeito, os princípios possuem essa característica de "normas imediatamente finalísticas" (ÁVILA, 2010, p. 71), pois promovem determinados estados de coisas que dependem de certas condutas para serem alcançados. Assim propõe ÁVILA (2010, p. 71):
Os princípios são normas cuja qualidade frontal é, justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente relevante. (...) Os princípios estabelecem um estado ideal de coisas a ser atingido (state of affairs, Idealzustand), em virtude do qual deve o aplicador verificar a adequação do comportamento a ser escolhido ou já escolhido para resguardar tal tipo de coisas.
Esses "estados de coisas" (ÁVILA, 2010, p. 71) referem-se a uma realidade concreta dotada de certas qualidades e se transformam em uma finalidade quando alguém busca alcançar os valores contidos neles. Portanto, quando o princípio do Estado de Direito, p. ex., propõe estados de coisas, como a responsabilidade estatal, em que para a sua efetivação necessita de determinadas condutas, como instrumentos processuais, o princípio está realizando o seu comportamento finalístico.
Nota-se então mais um aspecto dos princípios: seu caráter "deôntico - teleológico" (ÁVILA, 2010, p. 72). Explica-se: são deônticos, pois constituem determinados fundamentos para a criação de obrigações, permissões ou proibições; de outro modo, são teleológicos porque cumprem a sua finalidade a partir do estabelecimento de certas condutas que visam a promover o estado de coisas proposto. Assim, "os princípios são normas-do-que-deve-ser (ought-to-be-norms): seu conteúdo diz respeito a um estado ideal de coisas" (ÁVILA, 2010, p. 72).
Nesse espírito, os princípios possuem ainda outra faceta. Refere-se ao que ÁVILA (2010, p. 73) chama de "natureza da justificação exigida", isto é, a espécie de alegação que deve ser sustentada. Destarte, ao invocar um princípio (composto de um elemento finalístico), deve-se fundamentar a alegação correlacionando-se os efeitos da conduta devida com a realização do estado de coisas pretendido.
Assim, consiste esse aspecto no tipo de argumentação que deve ser utilizado para a fundamentação de um princípio. Por isso, é necessária que esta argumentação estabeleça-se no sentido de analisar e avaliar a conduta necessária a ser efetivada para que o ideal e os valores contidos na norma principiológica sejam atingidos. Arremata: "os princípios não determinam imediatamente o objeto do comportamento, mas determinam a sua espécie" (ÁVILA, 2010, p. 76). E em razão de apontarem situações a serem construídas, pode-se afirmar que os princípios possuem um aspecto predominantemente prospectivo.
Outra característica pertinente aos princípios é no tocante ao que se chama de "critério da medida de contribuição para a decisão" (ÁVILA, 2010, p. 76). Refere-se à forma pela qual os princípios auxiliam a tomada de decisão pelo intérprete da norma e aplicador do Direito. Deste modo, considera-se que os princípios têm na verdade uma função complementar, atuando juntamente com outros fatores para a formação da decisão a ser aplicada. Assim dispõe Humberto Ávila:
Os princípios consistem em normas primariamente complementares e preliminarmente parciais, na medida em que, sobre abrangerem apenas parte dos aspectos relevantes para a tomada de decisão, não têm a pretensão de gerar uma solução específica, mas de contribuir, ao lado de outras razões, para a tomada de decisão (ÁVILA, 2010, p. 76).Não há que se pensar de modo algum que, devido a esse aspecto, os princípios teriam um papel tangencial na motivação da decisão. Deve-se compreender que, por terem uma finalidade mediata, os princípios não possuem em si todos os elementos que permitam a construção de per si do entendimento decisório: os princípios têm peso preponderante, mas não exclusivo.
Assim, reforça-se o papel diretivo dos princípios, isto é, a função de apontarem valores que devem ser efetivados, mas sem conter em sua constituição normativa a conduta a ser realizada.
Cabe, ainda, tecer alguns comentários acerca do sentido das expressões "primariamente complementares" e "preliminarmente parciais". Por não terem a pretensão de monopolizar a motivação decisória, isto é, de não conglobar todos os elementos responsáveis pela tomada da decisão em seu conteúdo normativo, os princípios são assim considerados "preliminarmente parciais". De outro modo, diz-se que exercem função de complementaridade ao agirem em conjunto com outros e diversos fatores, visando a contribuir para a formulação da decisão.
Nesse sentido, esses aspectos são reflexos da natureza dos princípios: de um lado, atuam concomitantemente a outros fatores; de outro, não abrangem por si só todos os elementos motivadores da decisão.
Com fundamento nas características apresentadas, Humberto Ávila afirma, então:
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária (ÁVILA, 2010, p. 78).
É importante destacar o aspecto finalístico dos princípios, isto é, a finalidade pretendida por eles a partir da concretização de seus valores. Ao apontar um objetivo e atuar de forma diretiva para o estabelecimento das condutas que efetivaram seus valores, busca-se satisfazer o escopo final do princípio. Este fim representa não um término do Direito, ou um ponto final da história, mas sim a realização, a concretização do seu conteúdo, um valor salutar e prestigiado pela sociedade.
Crucial, deste modo, são os meios utilizados para a obtenção do fim desejado. Como já foi observado, os princípios necessitam do cumprimento de certas condutas (seja um objeto, uma ação, uma situação, ou um comportamento, p. ex.) para que sejam efetivados. Assim, caso o meio utilizado não seja o adequado, ficará frustrada a aplicação do princípio, na medida em que não satisfará o seu objetivo.
Destarte, o princípio da dignidade da pessoa humana nunca será concretizado se, por exemplo, o empregador não opera a conduta adequada em relação a seus empregados, tratando-os com desrespeito, expondo-os a situações humilhantes ou vexatórias. Prejudicadas a realização de atos que exigem respeito e urbanidade, fica, então, frustrado o fim pretendido. Em conseqüência, o princípio não é concretizado.
Com efeito, Humberto Ávila defende que:
Os princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação de um estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários (ÁVILA, 2010, p. 80).
Consoante, mesmo que indiretamente, os princípios exigem do legislador que, ao exercer sua função, determine as condutas adequadas à perseguição de seu fim em caráter positivo, especialmente através da instituição de regras jurídicas (assim entendidas as normas de aspecto retrospectivo e de caráter de decidibilidade e abrangência total, em contraponto aos princípios). E é essa qualidade que também diferencia os princípios dos valores. Os primeiros têm um caráter deontológico, pois apontam comportamentos que devem ser adotados, enquanto os valores situam-se num plano axiológico, apenas atribuindo qualidades aos elementos.
A partir dessa análise preliminar, faz-se necessário conhecer como se dá a eficácia dos princípios no plano jurídico-normativo. Diz Humberto Ávila que:
As normas atuam sobre outras normas do mesmo sistema jurídico, especialmente definindo-lhes o seu sentido e valor. Os princípios, por serem normas imediatamente finalísticas, estabelecem um estado ideal de coisas a ser buscado, que diz respeito a outras normas do mesmo sistema, notadamente as regras (ÁVILA, 2010, p. 97).
Não há dúvidas, portanto, que os princípios agem de modo integrativo sendo importantes para a compreensão da acepção normativa das regras. Essa qualidade é chamada "função eficacial" (ÁVILA, 2010, p. 97), quer dizer, refere-se à eficácia dos princípios.
Essa função dos princípios tem dois sentidos com diferentes reflexos: uma eficácia em âmbito interior, denominada de "eficácia interna" (ÁVILA, 2010, p. 97) e outra com implicação em âmbito exterior, chamada "eficácia externa" (ÁVILA, 2010, p. 99).
A eficácia interna refere-se à forma de atuação dos princípios no domínio normativo, isto é, na esfera de integração com as outras normas. Assim, quando a ação do princípio sobre uma norma se dá sem interposição de outra norma (princípio, ou regra), diz-se que essa eficácia é direta. Decorre desse tipo de eficácia a função integrativa do princípio. Explica-se: quando o princípio atua sobre a norma, sem interposição ou colaboração de outra, são agregados novos elementos, independentemente de previsão. Há, portanto, uma integração desses elementos à aplicação da norma. Neste sentido, exemplifica Humberto Ávila:
Se não há regra expressa que oportunize a defesa ou a abertura de prazo para manifestação da parte no processo – mas elas são necessárias -, elas deverão ser garantidas com base direta no princípio do devido processo legal (ÁVILA, 2010, p. 97).
De outro modo, quando o princípio, ao atuar sobre a norma, utiliza-se do apoio de outras normas, diz-se que há, então, a eficácia indireta. Destarte, quando o princípio é dotado de eficácia interna indireta, surgem funções relativas ao papel desempenhado por ele. Com efeito, ao delimitar a área de atuação de um princípio mais amplo, conhecido como "sobreprincípio"4 (ÁVILA, 2010, p. 98), há a função definitória. Ou seja, um princípio "inferior" especifica o comando posto pelo princípio "superior". Nesta relação, o princípio da confiança e boa-fé, p. ex., delimita os aspectos do princípio da segurança jurídica (ÁVILA 2010, p. 98).
Por outro lado, quando os princípios agem sobre normas de alcance mais contido, construindo esses sentidos ao ampliá-los, ou restringi-los a partir da interpretação, exercem a função interpretativa. O princípio do devido processo legal atua dessa maneira ao impor a interpretação de regras que garantem citação e defesa de forma a proteger os interesses do cidadão, mesmo os elementos desse princípio já estando previstos no ordenamento, por exemplo (ÁVILA, 2010, p. 98). Nesse sentido, os princípios são considerados "decisões valorativas objetivas com função explicativa" (ÁVILA, 2010, p. 98).
E há, ainda, a função bloqueadora dos princípios. Ocorre quando a atuação deles se dá no sentido de afastar elementos expressos que confrontem os valores que os princípios pretendem realizar. Tem caráter relevante essa função pelo fato de agir de maneira protetiva em relação aos fundamentos defendidos pelos princípios.
É importante ressaltar, ainda nesse contexto, a função rearticuladora, específica dos sobreprincípios. Este caráter permite a essa espécie de princípios fazer a interação entre os elementos componentes do estado ideal de coisas objetivado. Assim ocorre quando o sobreprincípio do devido processo legal permite o relacionamento entre princípios que compõem a sua finalidade, como o da ampla defesa e do contraditório, e regras, como as de citação, intimação etc.
Em relação à eficácia externa, observa-se que é referente à atuação dos princípios sobre fatos e provas, de forma a obter a sua compreensão, não sobre normas, como ocorre na eficácia interna. Humberto Ávila afirma que:
As normas jurídicas são decisivas para a interpretação dos próprios fatos. Não se interpreta a norma e depois o fato, mas o fato de acordo com a norma e a norma de acordo com o fato, simultaneamente (ÁVILA, 2010, p. 99).
Na aplicação da norma cabe avaliar os fatos considerando um exame de pertinência e de valoração, isto é, os fatos devem ser analisados acerca da sua conformidade e de qual a interpretação adequada, no sentido de relacioná-los com a finalidade pretendida pelo princípio.
A eficácia externa pode ser tratada em vários níveis. Distingue-se num primeiro plano entre eficácia externa subjetiva e eficácia externa objetiva. A primeira refere-se à forma de atuação dos princípios jurídicos como direitos subjetivos no sentido de proteger os direitos de liberdade. Decorre daí a função protetora. O Estado, além de respeitar os direitos fundamentais, tem que promovê-los, a partir de medidas que os concretize (ÁVILA, 2010, p. 102).
Já a eficácia externa objetiva é subdividida em eficácia seletiva e eficácia argumentativa. Aquela é referente à forma de interpretação dos fatos. Defende que deve ser feita uma seleção dos fatos que podem alterar a previsibilidade, a mensurabilidade, a continuidade e a estabilidade, apontando os fatos pertinentes à pacificação do conflito. Essa ponderação é realizada a partir dos parâmetros valorativos contidos nos princípios, considerando-se pertinentes aqueles fatos imprescindíveis à identificação do bem jurídico resguardado pelo princípio.
Por outro lado, a eficácia argumentativa atua após a eficácia seletiva. Se esta seleciona os fatos pertinentes, a primeira faz o juízo de valoração, privilegiando a interpretação que aponte os aspectos desses fatos que se coadunam com a finalidade dos princípios, gerando a função eficacial valorativa.
Essa eficácia pode ser direta, quando os princípios não estabelecem previamente a conduta a ser adotada para promover o estado ideal de coisas que propõem. E por isso mesmo esses princípios necessitam da complementação de outras normas para a sua aplicação.
A eficácia argumentativa indireta é relacionada à ponderação entre princípios colidentes, orientando o intérprete a utilizar os meios que considerar adequados ao objetivo finalístico dos princípios.
Com efeito, a aplicação dos princípios é condicionada a um método criterioso, observando-se as funções dessas normas, a fim de concretizar os valores e objetivos contidos.
Nesse sentido, é importante conhecer, não apenas a estrutura normativa dos princípios, mas também os efeitos decorrentes de sua aplicação, para que o intérprete não seja frustrado no seu escopo de concretizar o estado ideal de coisas proposto.
2.3. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O objetivo principal deste trabalho é demonstrar o modo de aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana pela jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região nos casos de assédio moral no ambiente de trabalho. A partir da apreensão das noções sobre assédio moral e seus efeitos sobre o ambiente de trabalho, e sobre os princípios e suas formas de aplicação, cabe então compreender os aspectos gerais do princípio da dignidade da pessoa humana, com o fim de colacionar subsídios teóricos para a futura análise jurisprudencial.
Nesse diapasão, cumpre questionar em sede preliminar o que se entende por dignidade da pessoa humana e porque esse valor é tão caro.
Na verdade, a idéia de dignidade do ser humano é uma construção histórica e funda-se, predominantemente, no pensamento de Immanuel Kant, como preceitua Ingo Sarlet:
É justamente no pensamento de Kant que a doutrina mais expressiva – nacional e alienígena – ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2010, 39).
Afirma Kant que a dignidade da pessoa humana funda-se na própria idéia de autonomia da vontade, isto é, na faculdade de determinar a si mesmo e conforme a lei (qualidade exclusiva dos seres racionais). Com efeito, o autor defende que:
O Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim (apud SARLET, 2010, p. 38).
Nesse sentido, a noção de dignidade é intrínseca à idéia de autodeterminação. Não há como pensar em dignidade sem a garantia do efetivo exercício de sua independência volitiva, isto é, de sua autonomia da vontade.
Nota-se que não há de fato um conceito de dignidade da pessoa humana. Michael Sachs aponta que isso ocorre pelo fato de, ao contrário de outras normas fundamentais que tratam de temas de certa forma específicos da vida humana (saúde, segurança, liberdade, propriedade etc.), a dignidade cuida de um atributo da pessoa, um valor próprio do ser humano (apud SARLET, 2010, p. 47).
Destarte, a dignidade é constituída de alguns aspectos que refletem determinadas características. Nesse contexto, diz-se que a dignidade é inerente à condição humana. Ou seja, independe de qualidades especiais, seja de cunho social, intelectual, sexual, religioso etc. A simples condição de pessoa basta para que seja dotada desse atributo: a dignidade. Consoante, ensina Chaves de Camargo:
Toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na superioridade racional a dignidade de todo ser. Não admite discriminação, quer em razão do nascimento, da raça, da inteligência, saúde mental, ou crença religiosa (apud NUNES, 2010, p. 64).
E sendo propriedade, isto é, atributo intrínseco e indissociável da pessoa, compondo seu patrimônio humano, a dignidade é dotada de certos aspectos. É inalienável e irrenunciável, não podendo mesmo ser separada do indivíduo, e são assim todos os direitos decorrentes dela (integridade física, psíquica e moral; vida e outros). Constitui-se em verdadeiro valor supremo, devendo ser protegida e garantida a sua realização. E para isso não importa sequer a conduta social do indivíduo, quer dizer, mesmo "um criminoso inconteste tem dignidade a ser preservada" (NUNES, 2010, p. 64).
Nesse sentido:
A dignidade pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que reconhecida e atribuída a cada ser humano como algo que lhe é inerente (SARLET, 2010, p. 50).
Interessante notar que a dignidade pode ser inobservada, objeto de violação ou desrespeito, no entanto, nunca será dissociada, ou seja, destacada do sujeito. É uma qualidade que o indivíduo carrega por toda a vida, existindo independentemente de reconhecimento pela ordem jurídica a que está subordinado.
Ressalte-se que neste sentido só é cabível de desrespeito a dignidade de pessoa determinada, de forma que não existe atentado contra a dignidade no plano abstrato, mas tão somente em dimensão concreta:
Importa considerar que apenas a dignidade de determinada (ou de determinadas) pessoa é passível de ser desrespeitada, inexistindo atentados contra a dignidade da pessoa em abstrato (SARLET, 2010, p. 60).
De outro modo, não se pode resumir a dignidade exclusivamente a uma qualidade inata da pessoa. Reside aí também um aspecto cultural, visto que esse atributo foi sendo formado historicamente. É um atributo cujo sentido está sujeito a constante rediscussão:
Importa mencionar que a dignidade da pessoa humana, como símbolo lingüístico que também é (e como tal tem sido utilizada), não tendo, como já frisado, um conteúdo universal e fixo, no sentido de representar uma determinada e imutável visão de mundo e concepção moral, dificilmente poderá ser traduzida por uma fórmula que tenha a pretensão de ser "a verdadeira" noção de dignidade da pessoa humana, mas acaba, pelo menos em parte, sendo permanente objeto de reconstrução e repactuação quanto ao seu conteúdo e significado (SARLET, 2010, p. 55).
Nesse deslinde, cabe ressaltar que a dignidade da pessoa humana é construção histórica, sendo "fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marca a experiência humana" (NUNES, 2010, p. 62). Assim, é natural e salutar que a sua concepção, o seu conteúdo e seus valores estejam em constante redimensionamento, isto é, em perene discussão e reorganização, conformando-se à realidade histórico-cultural de cada sociedade.
Isso porque a "dignidade não está acima das especificidades culturais" (SARLET, 2010, p. 65) que em determinados momentos admite condutas que em outro contexto podem ser consideradas atentatórias a esta mesma dignidade. Essa relação varia tanto no tempo, como no lugar ou sociedade. Ou seja, em certo momento histórico, pode ser admitido determinado ato que em outro momento é considerado como violador da dignidade, ou ainda, num mesmo contexto temporal uma conduta pode ser aceita num lugar ou sociedade e rechaçada em outro.
Nota-se deste modo que, apesar da indissociabilidade da dignidade com a condição individual, ela possui um aspecto social, ou seja, de grupo, denominado "caráter intersubjetivo e relacional da dignidade da pessoa humana" (SARLET, 2010, p. 61). Assim, a dignidade possui uma dimensão transversal, ultrapassando os limites individuais e refletindo em toda a comunidade:
Sem prejuízo de sua dimensão ontológica e, de certa forma, justamente em razão de se tratar do valor próprio de cada uma e de todas as pessoas, apenas faz sentido no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade (SARLET, 2010, p. 63).
Ainda, a dignidade impõe-se de dois modos: ao ser oposta pelo indivíduo contra o Estado, no sentido de limitar o poder estatal; e ao instituir a este mesmo Estado o dever de promover ações que importem no pleno exercício da dignidade. Assim, a dignidade comporta-se de forma a criar obrigações positivas e negativas para o Estado. É negativa quando impede o poder público de restringir a dignidade; e positiva quando impõe uma prestação a ser cumprida para a devida efetivação da mesma.
Com efeito, acolhendo a perspectiva da autodeterminação do indivíduo, da limitação da tutela estatal e da promoção de ações positivas pelo Estado, Ingo Sarlet aponta a dignidade da pessoa humana como:
A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida (SARLET, 2010, p. 70).
Luís Antônio Rizzato Nunes preceitua que a dignidade ainda prevalece em duas outras dimensões. Uma no sentido já consagrado de considerar-se a dignidade como qualidade inata do indivíduo. A outra consiste no plano de relacionar a dignidade à idéia de vida digna, tendo um reflexo social (NUNES, 2010, p. 64). Nesse sentido, a dignidade não é vivida de forma isolada, mas, como já foi suscitado, dentro de um contexto social e histórico comum a um grupo de pessoas, ou uma comunidade. É assim um valor conjunto.
Destarte, tendo em vista as características apresentadas, passa-se a apresentar-se a positivação da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico e as suas implicações.
Antes, é importante aferir que a proteção da dignidade humana ganhou impulso, principalmente, após a segunda guerra mundial, quando os horrores praticados pelo nazismo foram conhecidos. Assim afirma Luís Antônio Rizzatto Nunes: "foi claramente a experiência nazista que gerou a consciência de que se devia preservar, a qualquer custo, a dignidade da pessoa humana" (NUNES, 2010, p. 62).
Nesse contexto, em reação às atrocidades praticadas no período, buscou-se criar instrumentos normativos que garantissem a proteção à dignidade da pessoa humana.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 dispõe:
Artigo 1º - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. (grifos nossos)
Há, portanto, o reconhecimento pelo Direito da dignidade da pessoa humana. Vale ressaltar que este documento não cria, ou concede a dignidade, pois esta é uma qualidade que nasce com a pessoa e acompanha-a por toda a vida, mas reconhece, ou seja, admite a existência desse atributo.
E, neste espírito, a Constituição Federal do Brasil de 1988 não somente reconheceu, mas elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado brasileiro. Também a estabeleceu como princípio constitucional fundamental a ser observado, garantido e promovido pelo Brasil. Dispõe o art. 1º, inciso III da Constituição:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana; (grifos nossos)
Esse caráter de princípio constitucional dado à dignidade tem um significado especial, não podendo ser entendido como mero texto declaratório. Isso porque, ao alçar a dignidade ao patamar de princípio, ela deixa de ser apenas um atributo do indivíduo e passa a ser um valor pelo qual devem ser observados todos os atos estatais. Isto é, ao efetuar determinadas políticas públicas, o Estado deve objetivar a realização da dignidade da pessoa humana. Isso envolve o Estado em todas as suas dimensões, abrangendo inclusive o Poder Judiciário que, ao aplicar a norma (através de seus membros), deve observá-la e interpretá-la sempre à luz da dignidade da pessoa humana, afastando a aplicação quando esta se mostrar inadequada aos fins daquela.
Diz Luís Antônio Rizzato Nunes que:
Por isso não pode o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas (NUNES, 2010, p. 65).
Neste sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser entendido mesmo como um sobreprincípio (ou supraprincípio), sendo considerado num plano acima de todos os outros:
Tratando-se de um método de ponderação de bens à luz do caso concreto, é intuitivo que a priori não exista uma hierarquia fixa e abstrata entre os diversos princípios, ressalvada – porque fora de cotejo axiológico – apenas a dignidade da pessoa humana como valor-fonte dos demais valores, valor fundante da experiência ética ou, se preferirmos, princípio e fim de toda ordem jurídica (BRANCO; COELHO; MENDES, 2010, p. 102).
Consoante à idéia de sobreprincípio, afirma Paulo Bonavides sobre o princípio da dignidade da pessoa humana que:
Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser portanto máxima e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados (SARLET, 2010, p. 86).
Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana torna-se elemento propriamente constitutivo do Estado Democrático de Direito. Importante notar que, nesse contexto, ficou estabelecida que a atuação do Estado deve ocorrer em função da pessoa, tornando-se o indivíduo fim último da atividade estatal, e o Estado, meio para que a pessoa humana tenha garantida a sua dignidade. Desta forma, ensina José Joaquim Gomes Canotilho:
A dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização que serve ao homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios. (CANOTILHO, 2007, p. 221)
Destarte, o princípio da dignidade, além da dimensão normativa, compõe-se também de um caráter vinculante no sentido de sempre relacionar toda a atuação estatal à finalidade do princípio.
Com efeito, Jorge Reis Novais afirma que:
No momento em que a dignidade é guindada à condição de princípio constitucional estruturante e fundamento do Estado democrático de Direito, é o Estado que passa a servir como instrumento para a garantia e promoção da dignidade das pessoas individual e coletivamente consideradas (apud SARLET, 2010, p. 76).
Deste modo, o princípio da dignidade da pessoa humana ganha contornos que realçam sua função informadora e de integração de todo o sistema jurídico, tornando-se uma espécie de régua por onde deve se pautar a efetividade deste ordenamento. Diz Ingo Sarlet que:
Neste passo, impõe-se seja ressaltada a função instrumental integradora e hermenêutica do princípio na medida em que este serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico (SARLET, 2010, p. 91).
Luís Antônio Rizzato Nunes defende essa abordagem:
Sempre haverá aqueles que pretendem dizer ou supor que Dignidade é uma espécie de enfeite, um valor abstrato de difícil captação. Só que é bem ao contrário: não só esse princípio é vivo, real, pleno e está em vigor como deve ser levado em conta sempre, em qualquer situação (NUNES, 2010, p. 65)
Nesse contexto, torna-se necessário identificar os elementos que compõem esse princípio tão importante. Afinal, do que é constituída a dignidade?
Ao tomar a dignidade da pessoa humana como valor supremo da Constituição, não há dúvida de que ela é formada pelos meios necessários e adequados que garantam aos indivíduos e à sociedade em geral uma vida digna.
Nesse sentido, pode-se verificar que se relacionam com o princípio da dignidade e têm a função de efetivá-lo todos aqueles direitos e garantias considerados fundamentais pela Constituição. Ensina Ingo Sarlet que:
Sendo correta a premissa de que os direitos fundamentais constituem – ainda que com intensidade variável – explicitações da dignidade da pessoa, por via de conseqüência e, ao menos em princípio (já que exceções são admissíveis, consoante já frisado), em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa (SARLET, 2010, p. 96).
Destarte, não há como se pensar em vida digna sem a garantia de direitos como à saúde, à segurança, à honra, à imagem, à educação, ao trabalho, ao devido processo legal, de propriedade etc. Compreende-se, dessa forma, que os direitos fundamentais (especialmente os direitos sociais) mantêm estreita relação com o princípio da dignidade da pessoa humana (embora nem todos estejam fundamentados nessa idéia) e permitem entender que a Constituição comporta-se de modo a efetivar, através de suas normas, a dignidade, o valor supremo que deve ser garantido, protegido e promovido. É esse o "estado de coisas" visado pelo referido princípio.
Argumenta Ingo Sarlet que:
Verifica-se ser de tal forma indissociável a relação entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais que mesmo nas ordens normativas onde a dignidade ainda não mereceu referência expressa, não se poderá – apenas a partir deste dado – concluir que não se faça presente na condição de valor informador de toda a ordem jurídica, desde que nesta estejam reconhecidos e assegurados os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (SARLET, 2010, p. 96).
Assim, existe nítida e íntima relação entre dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais no sentido de que sem estes não é possível concretizar aquele. Ainda, conforme o entendimento de que a dignidade é permanentemente reformulada, de acordo com o contexto social, cultural e histórico, é de bastante salutar o fato de a Constituição prever expressamente a ampliação do rol de direitos fundamentais, permitindo uma constante rediscussão acerca do princípio em análise.
Essa condição de princípio fundamental e estruturante do sistema jurídico conferido à dignidade da pessoa humana importa, por conseguinte, em os direitos fundamentais em geral apontarem para a realização dessa dignidade. Em conseqüência, pode-se afirmar que, para além dos direitos fundamentais, a ordem legal como um todo volta-se para a defesa, garantia e promoção da dignidade.
Destarte, impõe-se ao Estado e à sociedade o dever de respeitar a dignidade de cada indivíduo, assim como implementar atos que apontem para sua promoção. Quando, p. ex., o empregado sofre assédio moral no trabalho, tem violada a sua dignidade, devendo a ordem jurídica agir de forma a condenar essa afronta e restabelecer a dignidade da vítima.
Com efeito, há valorização da dignidade quando a empresa oferece um ambiente de trabalho saudável, ou quando o Estado e a ordem jurídica combatem eventuais abusos que possam violar o princípio.
É necessário que haja uma atuação permanente e conjunta entre sociedade, Estado e pessoas individualmente consideradas para que se possa de fato proteger esse valor tão caro: a dignidade humana.