Capa da publicação ADI 1.923-DF e limites do fomento público ao terceiro setor
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A ADI 1.923-DF e os limites do fomento público ao terceiro setor à luz da Constituição da República

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19/04/2011 às 08:16
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3. O PERFIL CONSTITUCIONAL DO FOMENTO PÚBLICO AO TERCEIRO SETOR

Inicialmente, para que se possa traçar o perfil constitucional do fomento público no domínio social, cumpre tecer breves considerações sobre fomento público na doutrina estrangeira e na doutrina pátria e, após, uma rápida análise sobre a intervenção direta e indireta do Estado no domínio social, respectivamente, por meio da prestação de serviços públicos e pela atividade administrativa de fomento, na qual se insere o tema relativo às organizações sociais, a fim de delimitar o campo de incidência dos serviços públicos e àquele reservado ao fomento público ao Terceiro Setor.

3.1. O fomento público na doutrina estrangeira

A adoção de técnicas de fomento pelo Estado, como meio de incentivar, promover ou proteger determinados comportamentos ou atividades dos particulares que, ao mesmo tempo, atendam interesses públicos, não é recente.

De fato, como registra José Luís Villar Palasi [20] em seu artigo "As técnicas administrativas de fomento e apoio ao preço político", já em 1336, em Zaragoza e Castilha, eram adotadas as subvenções diretas e indiretas para a construção de obras públicas.

No período absolutista, por sua vez, anota Delacroix [21] a existência de prêmios e vantagens honoríficas concedidas pelo Rei com o objetivo de direcionar a condutas dos nobres para auxiliá-lo na consecução dos "interesses públicos", embora naquele período não raras vezes estes se confundiam com os interesses do próprio monarca.

No século XVIII, a polícia, de acordo com Baena de Alcázar, [22] compreendia toda a atividade que competia ao príncipe. Daí porque a concepção primitiva de fomento público estava relacionada ao Poder de Polícia do Estado, o qual podia ser subdividido em: Poder de Polícia da Ordem e Poder de Polícia do Bem-estar ou da Prosperidade (nesta última estava inserida a idéia de fomento).

O fomento, até o referido período, apresentava-se como uma finalidade do Estado, carecendo o conceito de um valor técnico, razão pela qual não se utilizava como elemento de construção jurídica.

Deveras, a ação fomentadora, como espécie (uma das formas) da atividade administrativa, somente pode ser considerada a partir do momento em que o Estado passou a se submeter à ordem jurídica, ou seja, com o advento do Estado de Direito e o surgimento da Administração Pública e do Direito Administrativo.

A sistematização do instituto, por seu turno, apenas ocorreu em 1949, com a publicação de um ensaio acerca dessa modalidade de intervenção estatal, elaborado pelo professor espanhol Luis Jordana de Pozas, cujas idéias centrais do seu trabalho contribuíram para a formação da atual concepção da atividade administrativa de fomento. O autor conceitua fomento público como:

"a ação da Administração encaminhada a proteger ou promover as atividades, estabelecimentos ou riquezas desenvolvidas pelos particulares e que satisfaçam necessidades públicas ou se estimam de utilidade geral, sem usar da coação e nem criar serviços públicos."

Por conseguinte, conclui que o fomento se distingue da polícia, uma vez que esta "previne e reprime" e aquele "protege e promove", sem usar, no entanto, a coação. De igual modo, não se confunde com o serviço público, no qual a Administração realiza diretamente e com os seus próprios meios o fim perseguido, ao passo que na atividade de fomento se limita a estimular os particulares para que estes, por sua vontade própria, desenvolvam determinadas atividades, as quais cumpram indiretamente o fim perseguido pela Administração.

Jordana de Pozas classificou os meios de fomento por dois critérios distintos: o da atuação sobre a vontade do particular e o das vantagens outorgadas ao particular.

No que toca ao primeiro critério, tem-se os fomentos positivos (os que outorgam prestações, bens ou vantagens) e os fomentos negativos (os que impõem obstáculos ou cargas para dificultar por meios indiretos aquelas atividades contrárias àquelas que os governantes desejam fomentar). Relativamente ao segundo, os meios de fomento se subdividem em: honoríficos; econômicos e jurídicos [23].

A sistematização da atividade administrativa de fomento proposta por Jordana de Pozas, ressalvadas pequenas variações quanto aos destinatários dessa atividade (há doutrinadores que sustentam a possibilidade do fomento alcançar entes públicos menores e não apenas os particulares) e respectivos meios (há doutrinadores que criticam a classificação do fomento jurídico e há ainda aqueles que acrescem o fomento psicológico), na sua essência, até os dias atuais se mantém.

Com efeito, apenas a título de exemplo, confira-se o conceito de atividade administrativa de fomento proposto por Héctor Jorge Escola: [24]

"aquela atividade da Administração Pública que pretende a satisfação de necessidades coletivas e que atendam os fins do Estado de maneira indireta e mediata, mediante a participação voluntária dos particulares, que desenvolvem por si mesmos atividades tendentes a esse objeto, as quais são, por isso, protegidas e estimuladas pela Administração por diversos meios, dos quais está excluída toda a forma de coação."

No mesmo sentido, Roberto Dromi [25] anota que mediante o fomento, a Administração persegue os fins públicos sem o emprego da coação e sem a realização per se de prestações públicas. O fim do fomento é a satisfação indireta das necessidades públicas. A idéia predominante é a de uma atividade persuasiva ou de estímulo e a finalidade perseguida é sempre a mesma: convencer para que se faça ou deixe de fazer. Por meio do fomento, a Administração trata de ajudar, estimular e orientar a iniciativa privada quando esta se mostra insuficiente.

Por fim, cumpre registrar a lição de Ramon Parada [26], para quem a atividade de fomento é "aquela modalidade de intervenção administrativa que consiste em dirigir a ação dos particulares de acordo com os fins de interesse público mediante a outorga de incentivos diversos".

De acordo com o ilustre Professor de Direito Administrativo, a atividade incentivadora foi estendida a todos os setores econômicos (agricultura, extração de minérios, construção naval etc.), chegando à cultura (cinema, teatros) e à ação social, por meio das organizações não governamentais (ONGs) que, praticamente, vivem das subvenções públicas.

O autor cita inúmeras leis que disciplinam a atividade de fomento na Espanha, considerando legítima essa forma de intervenção estatal, com base nos numerosos dispositivos da Constituição espanhola que prestigiam a ação promocional, como, por exemplo, o dever do Poder Público de fomentar a educação sanitária, a educação física (art. 43.3), as organizações dos consumidores (art. 51.2), as sociedades cooperativas (art. 129.2) etc.

3.2. O fomento público na doutrina pátria

A atividade administrativa de fomento não é nova no ordenamento jurídico pátrio. Há tempos a Administração Pública exerce-a mediante diplomas legais esparsos, como por exemplo, a outorga de títulos de utilidade pública regulada pela Lei nº 91, de 1.935, as leis editadas pelos entes políticos que disciplinam o gozo de benefícios fiscais ou ainda, a Lei nº 4.320/64, que dispõe sobre a concessão de auxílios e subvenções às entidades privadas sem fins lucrativos.

Com o advento da Constituição Federal de 1.988 e o crescimento dos modelos de colaboração entre o Poder Público e os administrados para a consecução dos interesses considerados relevantes para a coletividade, houve uma redescoberta da "atividade administrativa de fomento", sobrevindo, por exemplo, as Leis nºs 9.637/98 e 9.790/99, que tratam, respectivamente, das Organizações Sociais – OS e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público - OSCIP.

Entretanto, essa espécie de função administrativa, pelo contexto jurídico, político econômico e social, acabou sendo ofuscada pelas demais funções administrativas, de prestador de serviços públicos, de polícia e do ordenamento econômico social, ocupando-se a doutrina nacional com estas últimas de forma predominante.

Sob o prisma legislativo, não houve, de igual modo, preocupação com a sistematização da matéria, nela incluindo-se a rígida disciplina dos instrumentos jurídicos para a sua implementação e os requisitos objetivos para a qualificação de agente fomentado e para a escolha do parceiro do Estado, tudo em consonância com os contornos traçados pela Constituição da República, tarefa imprescindível e de máxima urgência.

Não se desconhece a dificuldade desse propósito, ante as peculiaridades que envolvem o tema e a necessidade de correção das inúmeras deficiências e omissões atualmente detectadas nos diversos diplomas legais esparsos. No entanto, uma vez alcançada, produzirá inestimáveis benefícios ao País e à coletividade, na busca de um autêntico Estado Republicano.

Felizmente, a matéria aqui versada tem ocupado, cada vez mais, a pauta de atenção da doutrina nacional, cabendo trazer à colação a contribuição de cientistas do direito pátrio que se debruçaram sobre o fomento público.

No ponto, a festejada obra do eminente Professor de Direito Administrativo da PUC/SP, Silvio Luís Ferreira da Rocha, intitulada Terceiro Setor [27].

Trata-se de um dos trabalhos pioneiros sobre o tema relativo à Administração Fomentadora, preocupado com a inadequada e imprópria invocação desta como fundamento para a legitimar a transferência de bens e serviços de titularidade do Estado a organizações de direito privado sem fins lucrativos, por intermédio de um processo denominado de "publicização", traça importantes marcos para o delineamento do fomento público na área social, cumprindo destacar as seguintes conclusões acerca da atividade administrativa de fomento:

a) a atividade administrativa de fomento é uma atividade teleológica, com vistas à satisfação das necessidades coletivas, sem o uso da coação e sem a prestação de serviços públicos, protegendo ou promovendo as atividades dos particulares;

b) tem por escopo promover ou estimular atividades dos particulares que tendem a favorecer o bem-estar geral. Se a finalidade do bem-estar geral não é detectável com clareza a atividade de fomento apresenta-se como ilegítima, injustificável e discriminatória;

c) distingue-se da prestação de serviços públicos, haja vista que a satisfação das necessidades coletivas se dá de modo indireto e mediato, ou seja, os fins não são alcançados por meio de um agir próprio dos órgãos administrativos, mas por intermédio do agir dos particulares que assim são incentivados pelo Poder Público. Diferencia-se do poder de polícia pela ausência de coação, uma vez que os particulares desenvolvem dita atividades por decisão própria;

d) como espécie da atividade administrativa, está subordinada ao regime jurídico administrativo e aos princípios que o informam, tais como os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, além da motivação, da igualdade e da finalidade, dentre outros;

e) o Estado não poderá substituir completamente a prestação de serviços públicos por atividade de fomento, por isto implicar uma renúncia às funções que lhe foram acometidas pelo Texto Constitucional.

Em linhas gerais, a doutrina pátria adota o conceito referente à atividade administrativa de fomento proposto por Jordana de Pozas, em especial no que diz respeito às características arroladas nos itens "a", "b" e "c" acima, tornando desnecessária a sua repetida reprodução.

Logo, em face do propósito do presente artigo, convém apenas destacar algumas notas pertinentes relacionadas à atividade fomentadora.

Celso Antônio Bandeira de Mello, com o brilho que lhe é peculiar, ensina que a intervenção do Estado no domínio social, "tanto se faz pela prestação dos serviços públicos desta natureza (educação, saúde, previdência e assistência social) como pelo fomento da atividade privada mediante trespasse a particulares de recursos a serem aplicados em fins sociais" [28].

Nessa direção, anota o dever do Estado de prestar serviços de saúde (arts. 196-198); previdência social (art. 201), educação (arts. 205, 208, 211 e 213) e assistência social (arts. 203 e 204). No que toca à atividade de fomento, acolhe a definição do professor Sílvio Luís Ferreira da Rocha, destacando as contribuições, os auxílios e as subvenções como atividade de fomento direta, além das formas de fomento surgidas com a "Reforma Administrativa".

Por seu turno, José Roberto Pimenta Oliveira [29], em sua obra "Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Administrativo Brasileiro" dedica um capítulo para examinar a razoabilidade e a atividade promocional ou de fomento. Entende o autor que:

"(...) para cumprir os objetivos constitucionais inerentes à estruturação do Estado Social e Democrático de Direito, desenhado pela Constituição, não há como a função administrativa restringir-se, na atualidade, ao campo ordenador e sancionatório. Postulou-se da Administração uma crescente e cada vez mais complexa intervenção estatal no domínio social e econômico, formalizada, pela ordem jurídica, com a positivação de dever de prestar serviços públicos, nos diversos campos em que o interesse da coletividade demandava uma presença ativa da atividade administrativa, considerados como atividades materiais vinculadas à existência da própria sociedade, passíveis de fruição direta pelos administrados, fornecidos pela Administração, sob regime de direito público."

No entanto, observa o eminente professor que:

"(...) dada a amplitude das finalidades de interesse público então impostas como de realização irrenunciável e a escassez dos recursos humanos, materiais e institucionais da Administração, esta, ao lado de sua atividade prestacional direta, observou que, sem a utilização de seu poder de império e de seu aparelho administrativo, poderia conduzir diretamente a atividade dos particulares a apóia-la nesse mister, através da criação de incentivos e estímulos que permitissem a canalização dos esforços privados para a consecução dos objetivos públicos visados pela intervenção estatal. Ganha, então, terreno o fomento público."

Diogo de Figueiredo Moreira Neto, por sua vez, destaca duas importantes notas sobre o fomento público. A primeira diz respeito à redescoberta pela doutrina contemporânea da:

"(...) natureza binada da sanção e, com ela, a fecundidade do conceito de premiação pelo adimplemento de uma norma jurídica, como alternativa construtiva à alternativa da punição pelo inadimplemento, abrindo, desse modo, um imenso campo de aplicação às sanções premiais no Direito Administrativo, particularmente nas atividades, aqui sob exame, de fomento público."

A segunda refere-se aos princípios do fomento público como:

"(...) comando primário da sociedade dirigida ao Estado, organizado por ela para ser o seu instrumento de poder, de modo que, ainda que os poderes públicos fracionários venham a se omitir na instituição legal de estímulos e de incentivos, se lhes está vedado, por comissão ou omissão, prejudicar, de qualquer forma, quaisquer daquelas atividades, constitucionalmente especificadas para serem objeto prioritário de fomento público."

Depreende-se da reprodução do pensamento dos eminentes doutrinadores pátrio, que a edição de lei que discipline o fomento público deve observar, antes de tudo, os balizamentos constitucionais, para que, então, possa ser levada a efeito a legítima atividade administrativa de fomento.

Há que se empreender esforços, pois, para a delimitação da atividade promocional no domínio social à luz da Constituição da República.

Para tanto, imperioso se faz, inicialmente, fixar algumas premissas no que diz respeito ao espaço reservado ao serviço público a cargo da Administração Pública e sob regime de Direito Público e à atividade econômica, assegurado, em regra, aos particulares, sob regime de Direito Privado ou predominante de Direito Privado.

Isso porque, somente após a demarcação da área reservada aos particulares para o desenvolvimento da atividade econômica, é que se poderá identificar o campo de incidência da atividade administrativa promocional no domínio social, desde que atenda indiretamente o interesse público.

Veja-se que tal análise se mostra essencial para a melhor compreensão do tema objeto de estudo, haja a vista a necessidade de identificar também a natureza jurídica dessas atividades desenvolvidas pelas entidades integrantes do Terceiro Setor, dentre elas, as Organizações Sociais, mediante o fomento do Estado, para a consecução dos interesses considerados relevantes para a sociedade. É dizer: prestam serviços públicos ou desenvolvem atividades econômicas em sentido estrito ou lato sensu [30]?

Com efeito, na medida em que as tarefas desenvolvidas por tais entidades centram-se naquelas não-exclusivas do Estado, ou seja, que podem ser prestadas tanto pelo Poder Público por meio de serviços públicos, sob o regime jurídico de Direito Público, como pelos particulares, por meio de atividade econômica, com ou sem fins lucrativos, respectivamente, mediante o regime de Direito Privado ou de um regime híbrido, com a predominância do Direito Privado, quando estas últimas sejam destinatárias da atividade de fomento estatal, a indagação se afigura, de igual modo, pertinente.

3.3. Serviço Público e Atividade Econômica na CF/88

O exame do Texto Constitucional, em especial dos títulos que tratam da ordem econômica e social, revela duas classes distintas de normas e princípios – a primeira aplicável ao serviço público, por meio de regime de Direito Público ou predominante de Direito Público, e a segunda destinada a reger a atividade econômica desenvolvida pelos particulares, mediante regime de Direito Privado e, excepcionalmente, pelo Estado, em regime de concorrência com estes, por meio de regime predominantemente de Direito Privado [31].

Deveras, acolhe-se aqui, integralmente, as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello [32] no sentido de que:

"(...) a Constituição estabeleceu uma grande divisão: de um lado, atividades que são da alçada dos particulares – as econômicas; e, de outro, as atividades que são da alçada do Estado, logo, implicitamente qualificadas como juridicamente não-econômicas – os serviços públicos. De par com elas, contemplou, ainda, atividades que pode ser da alçada de uns ou de outro."

A distinção e a delimitação entre o campo reservado aos serviços públicos de titularidade do Estado e aqueles destinados aos serviços privados ou atividades econômicas a cargo dos particulares e, excepcionalmente, do ente estatal, a partir de critérios extraídos da Constituição da República, são de suma importância, na medida em que cada qual, como já dito, está submetido a distinto regime jurídico.

3.3.1. O serviço público na Constituição da República

A interpretação sistemática das normas constitucionais revela importantes delineamentos acerca do serviço público no Brasil. É dizer, o Constituinte de 1988 traçou os contornos constitucionais do mencionado instituto [33], deixando demarcado o espaço reservado a tal espécie de atividade administrativa, assim como à atividade econômica dos particulares e à atividade administrativa de fomento, esta última objeto de análise no tópico seguinte.

Inicialmente, cabe anotar que a Constituição de 1988 ao dispor no caput do art. 175 que "Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos", confere ao Estado a titularidade do serviço público.

Isto significa que embora o Estado possa delegar a prestação de serviços públicos a terceiros, mantém a sua titularidade. Nesse passo, não há confundir titularidade do serviço público com a titularidade da prestação do serviço.

Registra-se, por enquanto, como base nos arts. 21, incisos XI e XII, 175 e 223 da CF/88, a primeira conclusão: a titularidade do serviço público pertence ao Estado, embora a sua execução possa ser realizada por pessoas estranhas ao seu aparelho administrativo (particulares, outras pessoas de direito público interno ou administração indireta delas), por meio de autorização, permissão ou concessão.

A par da possibilidade da prestação do serviço público por terceiros, por meio da "autorização, permissão" e "concessão", no que diz respeito àqueles exclusivos do Estado, e no que se refere aos serviços ditos não-exclusivos do Poder Público, da liberdade de atuação destes no espaço reservado ao desenvolvimento da atividade econômica, a exemplo dos serviços de saúde, educação, previdência social e assistência social, é de relevo deixar assentada essa observação sobre a titularidade do serviço público, a qual será essencial no momento em que for definida a natureza jurídica das atividades desenvolvidas pelos entes integrantes do denominado 3º Setor.

Além de conferir titularidade do serviço público ao Estado, a Lei Maior, de antemão, já arrola algumas atividades qualificando-as como tal, atribuindo competência privativa ou comum às pessoas políticas para o desempenho desse encargo (prestar serviço público).

À União Federal compete, dentre outros: Serviço Postal e Correio Aéreo Nacional – art. 21, X; Serviço de Telecomunicação – art. 21, XI; Serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos - art. 21, XII; Serviços de navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária – art. 21, XII; Serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território – art. 21, XII; Serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros – art. 21, XII; Exploração de portos marítimos, fluviais e lacustres – art. 21, XII; Seguridade Social – art. 194; Serviços de saúde – art. 196; Serviços de assistência social – art. 203 e Serviços de educação – art. 205 e 208. Aos Estados-Membros competem os serviços de gás canalizado e aqueles não reservados aos Municípios e à União Federal – art. 25, §§ 1º e 2º. Aos Municípios, por seu turno, competem os serviços públicos de interesse local e os serviços de transporte coletivo – art. 30, V, além dos serviços de atendimento à saúde da população, este com a cooperação técnica e financeira da União e dos Estados – art. 30, VII.

A Carta Magna outorga ainda competência comum à União Federal, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, dentre outras tarefas, para: cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico – art. 23, II, V e IX.

Registre-se, então, a segunda conclusão: a Constituição Federal já qualificou algumas atividades como serviço público de alçada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, apartando-as em caráter privativo a cada um dos entes políticos ou em caráter comum a todos eles.

No ponto, cabe abrir um parêntesis, para anotar que a doutrina, de forma majoritária, entende não ser exaustivo o rol de serviços públicos contido na Lei Maior [34].

Em outras palavras, entende-se que o legislador ordinário tem competência para qualificar determinado serviço como público, desde que respeitados os limites constitucionais para tanto. Nesse passo, Dinorá Mussetti Grotti [35] traz duas correntes doutrinárias que procuraram estabelecer limites a essa liberdade do legislador – uma formalista, dentre os quais, destaca Celso Antônio Bandeira de Mello, Benedicto Porto Neto e Maria Sylvia Zanella Di Pietro e a outra essencialista, representada pelas idéias de Eros Roberto Grau, Juarez Freitas e Marçal Justen Filho e, ao final assevera:

"Pode-se, pois, concluir que, à indagação formulada, todos os autores citados reconhecem poderes ao legislador ordinário para estruturar dado serviço como público, mas que não há liberdade total para essa determinação. Discordam, contudo, quanto à identificação dos limites a serem impostos ao legislador infraconstitucional para a caracterização de um serviço como público. Para os formalistas esses limites decorrem do regime normativo, enquanto que os essencialistas atribuem força a uma qualidade da própria atividade: sua natureza já indicaria que o serviço é público."

Prosseguindo-se no exame dos dispositivos constitucionais, depreende-se da leitura dos artigos 196, 197, 201 a 205, 208, 211, 213, que os serviços de saúde, educação, previdência social e assistência social encontram-se a cargo do Estado, vale dizer, tratam-se de serviços públicos de sua competência.

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Não obstante isso, dado a sua relevância para a coletividade (por isso também denominado de serviços públicos sociais), a Constituição Federal admite o exercício de tais atividades pelos particulares, no âmbito da atividade econômica stricto sensu e lato sensu [36].

Com efeito, no que toca à saúde, o art. 199 estabelece que "a assistência à saúde é livre à iniciativa privada" e o § 1º que as "instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos".

Relativamente à educação, o art. 209, de igual modo, dispõe que o "ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

No que se refere à previdência, contempla o art. 202 da Carta Magna, o regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, e quanto à assistência social, assegura no art. 204 a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

Aliás, por considerar de relevo a atuação dos particulares no campo da assistência social, assim como da educação, é que a Constituição contempla a imunidade tributária às instituições de educação e assistência social quanto aos impostos incidentes sobre a renda, serviços e patrimônio desses entes – art. 150, VI, "c" e quanto às contribuições de seguridade social para as entidades beneficentes de assistência social – art. 195, § 7º, todas nos termos da lei.

A terceira conclusão extraída do sistema constitucional pode ser assim assentada: De um lado a Constituição demarca os serviços públicos privativos do Estado, os quais podem ser prestados diretamente ou por concessão, permissão ou autorização. De outro lado, contempla serviços que o Estado tem o dever de prestar, sob o regime de Direito Público, embora, permita que tais atividades, dado a sua relevância social, sejam, concomitantemente, desenvolvidas pelos particulares. São eles: serviços de saúde, educação, previdência e assistência social. Quando prestados pelo Estado, sob regime de Direito Público, possuem a natureza jurídica de serviços públicos não-exclusivos e quando prestados pelos particulares no âmbito da livre iniciativa, sob regime de Direito Privado ou predominantemente de Direito Privado (como se verá nos casos das entidades do Terceiro Setor) atividade econômica stricto ou lato sensu [37].

Exposta a disciplina constitucional do serviço público [38], passa-se a delimitação da atividade econômica.

3.3.2. A atividade econômica na Constituição Federal

Inicialmente, cumpre asseverar que a noção de "atividade econômica" não é precisa, incluindo-se antes na categoria dos "conceitos indeterminados", cujo conteúdo deve ser revelado à luz dos critérios e padrões vigentes em dada época e Sociedade conforme as precisas lições de Bandeira de Mello [39]

"A noção de "atividade econômica" certamente não é rigorosa; não se inclui entre os conceitos chamados teoréticos, determinados. Antes, encarta-se entre os que são denominados conceitos práticos, fluidos, elásticos, imprecisos ou indeterminados. Sem embargo, como apropriadamente observam os especialistas no tema do Direito e Linguagem, embora tais conceitos comportem uma faixa de incerteza, é certo, entretanto, que existe uma zona de certeza positiva quanto à aplicabilidade deles e uma zona de certeza negativa quanto à não aplicabilidade deles. Vale dizer, em inúmeros casos ter-se-á certeza de que induvidosamente se estará perante "atividade econômica", tanto como, em inúmeros outros, induvidosamente, não se estará perante "atividade econômica". Em suma: o reconhecimento há de ser feito ao lume dos critérios e padrões vigentes em dada época e Sociedade, ou seja, em certo tempo e espaço, de acordo com a intelecção que nela se faz do que sejam a "esfera econômica" (âmbito da livre iniciativa) e a esfera das atividades existenciais à Sociedade em um momento dado e que, por isto mesmo, devem ser prestadas pelo próprio Estado ou criatura sua ("serviços públicos")."

Com efeito, a par da noção de "serviço público" (atividades existenciais à Sociedade) e de "atividade econômica" (âmbito da livre iniciativa), é induvidoso que em face da evolução da sociedade e do Estado, algumas atividades deixem de ter a natureza de serviço público, vale dizer, de ser "indispensável à concretização e ao desenvolvimento da interdependência social", ao passo que outras atividades, antes consideradas "econômicas", adquiriram esse "status".

Aliás, no ponto, pertinentes as observações de Jordana de Pozas [40] no sentido de que as necessidades públicas variam muito em seu número e classe, embora um número reduzido seja universal e constante. Em um Estado totalitário todas as necessidades comuns a um grupo ou de caráter geral seriam públicas e, pelo contrário, em Estados que aceitam a ordem individualista somente seriam públicas aquelas necessidades que as pessoas não pudessem satisfazer livremente por si só.

Daí advertir que o limite que separa o campo das necessidades privadas e das necessidades públicas varia constantemente, considerando, pois, uma das mais importantes das funções políticas, aquela capaz de discernir o quanto antes quais necessidades se converteram em públicas e quais perderam esse caráter.

Eros Roberto Grau [41], ao advertir sobre o perigo das expressões "camaleões", dentre elas, a "atividade econômica", ressalta a necessidade do ato de interpretação:

"(...) Porque nutrida na linguagem natural, a linguagem jurídica apresenta textura aberta, na qual proliferam as chamadas palavras – e expressões – "camaleão", que constituem um perigo tanto para o pensamento claro quanto a expressão lúcida. A expressão "atividade econômica" é uma delas. A busca da determinação da conotação das palavras e expressões em certo contexto normativo configura, como adiante enfatizarei, um ato de interpretação. Quando essa busca é empreendida em razão de a palavra ou expressão apresentar um largo arco de denotação, o ato de interpretação é praticado, como abaixo também observo, no nível do contexto lingüístico. Esse exercício de interpretação é que cumpre, neste passo, desenvolver em torno da expressão "atividade econômica".

Deveras, trata-se de tarefa árdua ao intérprete, que deverá adotar uma interpretação sistemática da Carta Magna, com o objetivo de extrair o seu conteúdo e alcance.

Examinando-se as normas constitucionais que tratam da atividade econômica, ao menos quatros delas merecem atenção especial - arts. 170, 173, § 1º, 174 e 177 da CF [42], embora a expressão tenha sido adotada em outros dispositivos constitucionais, a exemplo do previsto no art. 195, §§ 9º e 12º (contribuições de seguridade social).

De acordo com o art. 170, extrai-se que aatividade econômica é informada, dentre outros, pelo princípio da livre iniciativa, que assegura o seu exercício pelos particulares, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Por seu turno, o exame da norma inserta no art. 173, caput, revela que a atividade econômica é reservada, em regra, aos particulares, haja vista que admite tão somente a atuação do Estado nesse campo nas duas hipóteses ali elencadas, quais sejam: a) quando necessária aos imperativos da segurança nacional; b) ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. O parágrafo único do citado dispositivo permite ainda assentar a distinção entre regime prevalente de Direito Público para os serviços públicos e regime de Direito Privado para a atividade econômica [43].

Por fim, os artigos 174 e 177 da CF. O primeiro autoriza o Estado a exercer o seu "poder de polícia", como agente normativo e regulador da atividade econômica, assim como realizar a atividade administrativa de fomento, mediante incentivos à iniciativa privada. O segundo, fixa o monopólio estatal com relação a certas atividades econômicas ali arroladas, e, portanto, retira-as do âmbito da livre iniciativa.

Nesse passo, pertinente se faz trazer à colação precisa lição do saudoso professor Celso Ribeiro Bastos [44], acolhida pela C. 1ª Turma do E. Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 229696/PE, j. 26/11/2000, Relator para Acórdão Ministro Maurício Correa, que assim se expressava sobre o tema:

[...] Se estamos diante de um sistema que consagra a primazia da livre iniciativa é porque a esta cabe o desenvolvimento das atividades de natureza econômica. Portanto, deve-se ter por atividade econômica toda função voltada à produção de bens e serviços, que possam ser vendidos no mercado, ressalvada aquela porção das referidas atividades que a própria Constituição já reservou como próprias do Estado, por tê-la definido como serviço público nos termos dos incisos XI e XII do art. 21 do Texto Constitucional, ou as reservadas a título de monopólio da União (CF, art. 177).

Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior [45] observam que o constituinte fez uma opção clara pelo modelo "econômico capitalista", no qual a livre iniciativa tem um sentido extremamente amplo, abrigando, no seu interior, não só a iniciativa privada, mas também a iniciativa cooperativa ou associativa, a iniciativa autogestionária e a iniciativa pública.

Entretanto, reconhecem os mencionados autores que a livre iniciativa tem o seu ponto sensível na chamada liberdade de empresa, que, na abalizada lição de Manoel Afonso Vaz, deve ser entendida nas suas três vertentes: a) liberdade de investimento ou de acesso (direito à empresa); b) liberdade de organização (liberdade de empresa); e c) liberdade de contratação (liberdade de empresa) [46].

Por fim, cabe ainda invocar as observações de Adriana Laporti Cardinali [47] acerca da noção constitucional de "atividade econômica", na sua dissertação intitulada "Direito Administrativo da ordem econômica na Constituição Federal de 1988 – a intervenção indireta do Estado no domínio econômico". São suas palavras:

"Os serviços públicos são norteados pelo princípio da dignidade da pessoa humana e a atividade econômica, pelo da livre iniciativa. Ambos podem ter fontes de lucro, mas isto não é da natureza da prestação de serviços públicos, como ocorre com a atividade econômica. Além disso, estão submetidos a regime jurídicos distintos, público e privado, respectivamente. [...] A obtenção do lucro é elemento que integra a definição de atividade econômica, mas não é o único capaz de distingui-la dos serviços públicos. O texto constitucional menciona o instituto da atividade relacionando-o à livre iniciativa e ao regime jurídico de Direito Privado. A primeira característica está claramente prevista no parágrafo único do art. 170, e a segunda no art. 173, §§ 1º, II e 2º. O conceito da expressão, para Marçal Justen Filho, envolve ‘atividades relacionadas com a produção, circulação e prestação de bens econômicos e de utilidade economicamente avaliáveis, a partir da livre organização dos fatores da produção e da apropriação privada dos resultados – atividades essas que não são indispensáveis à satisfação de valores fundamentais, relacionados com a dignidade da pessoa humana [...] certas atividades que a Constituição qualificou como serviço público’. Assim, os serviços públicos são aqueles essenciais, necessários à coletividade, de maneira a proporcionar a todos uma existência digna; o Estado tem o dever de prestá-lo ou, ao menos, proporcionar a sua prestação, sob o regime de Direito Público. Afora essas características, temos a atividade econômica, de livre execução para o particular, cujo objetivo não é o de proporcionar a dignidade do ser humano, mas a de circulação de riquezas. Onde há livre iniciativa, há o desenvolvimento de atividades econômicas, ou seja, atividades privadas, serviços privados, e não serviços públicos. Produzem-se bens e serviços que são colocados no mercado com o objetivo de circulação de riqueza."

Em síntese, à vista do exposto, pode-se dizer que se inserem na noção de atividade econômica [48]todas aquelas atividades de produção e circulação de bens e serviços que possam ser objeto de negócio jurídico no mercado, com ou sem finalidade lucrativa, e que são ser exercidas no âmbito da livre iniciativa.

Com efeito, do exame das normas constitucionais, não há como se negar as notas distintivas a cada uma dessas atividades. Entretanto, a par da variedade do regime jurídico dos denominados "serviços públicos sociais" ou "serviços sociais" (educação, saúde, previdência e assistência), os quais, comportam, como visto, regime jurídico de direito público, quando prestado pelo Estado (serviço público não-exclusivo) e regimes jurídicos de direito privado ou predominantemente de direito privado, quando prestado pelo particular no âmbito da livre iniciativa, respectivamente, com o intuito de lucro e sem esse fim, manter-se-á, no presente, a divisão entre serviço público e atividade econômica.

No que toca a esta última, será feita uma subdivisão entre "atividade econômica em sentido amplo", reservada aos serviços sociais desenvolvidos pelo Terceiro Setor no âmbito da livre iniciativa e sem finalidade lucrativa e "atividade econômica em sentido estrito", também exercida no âmbito da livre iniciativa, porém com intuito de lucro.

Aliás, assim como o Estado quando atua diretamente, em caráter excepcional, no domínio econômico, está submetido às regras que regem a atividade econômica (obrigações tributárias, civis, trabalhistas etc.), sofrendo, no entanto, influxo de regras publicísticas, os entes privados sem fins lucrativos quando desempenham atividades no âmbito da livre iniciativa, ainda que em colaboração com o Estado, também estão subordinadas às regras de direito privado. Todavia, por gerirem recursos públicos e em face das suas finalidades, sofrem, de igual modo, influxo de regras publicísticas, sem que com isso possa se falar em uma terceira classe daquelas já delineadas (serviço público/atividade econômica).

Todavia, o direito ao exercício da atividade econômica no âmbito da livre iniciativa não é absoluto. Em outras palavras, sofre condicionamentos em face do modelo de Estado Social e Democrático de Direito aqui adotado, tais como a necessidade de observância no desenvolvimento da atividade econômica aos princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor, do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais, da busca do pleno emprego, dentre outros. Por outro lado, não se pode esquecer a intervenção do Estado tanto no domínio econômico como no domínio social, o que também traz reflexos ao exercício da atividade pelos particulares.

Cabe, pois, tecer algumas considerações entendidas pertinentes sobre os fundamentos da ordem econômica e social e sobre a intervenção do Estado nesses domínios.

Com a promulgação da Constituição da República de 1988, instalou-se entre nós – ao menos se pretende instalar, é bom repisar, um Estado Social e Democrático de Direito. Para tanto, embora tenha adotado um modelo capitalista, somente legitima o exercício das liberdades inerentes à livre iniciativa quando este se mostre de acordo com a Justiça Social, o que se constata já numa rápida leitura, dentre outros, dos artigos 1º e 3º da Carta Magna, que dispõem, respectivamente, sobre os fundamentos e objetivos do Estado Brasileiro.

Veja-se que os artigos 170 e 193 da Carta Magna, quando inauguram, respectivamente, os títulos da ordem econômica [49] e da ordem social [50], fazem expressa alusão à justiça social como um objetivo a ser perseguido pelo Estado e pela sociedade civil.

Não é por outra razão que ao disciplinar a atividade econômica, reservada, como regra geral aos particulares e em caráter excepcional, nos casos previstos nos artigos 173 e 177 da Carta Magna, ao Estado, o texto constitucional adota expressa conformação de tal atividade com os princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor, do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais, da busca do pleno emprego, dentre outros acima arrolados, consoante prescrição contida no artigo 170 caput e incisos I a IX.

É dizer, embora seja assegurado o exercício do direito à livre iniciativa e à propriedade privada, estes não poderão ser realizados de maneira abusiva, arbitrária, na busca do lucro a qualquer custo e em total afronta à ordem econômica, financeira e à economia popular. Tal conduta é interditada não somente pelos princípios já referidos, como também pelas disposições contidas nos §§ 4º e 5º do artigo 173 da Constituição.

Ora, se o artigo 1º da Constituição estabelece que República Federativa do Brasil tem como fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana [51] e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e fixa no artigo 3º como objetivos fundamentais: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, tais normas revelam-se em plena harmonia com aquelas que disciplinam a intervenção estatal na ordem econômica e social.

Adentrando, especificamente, na análise das normas constitucionais que regem a intervenção do Estado no domínio econômico, depreende-se que este poderá intervir na ordem econômica, como agente econômico - artigos 173 e 177 da CF, ou intervir sobre a ordem econômica, como agente normativo, regulador ou fomentador da atividade nesse âmbito – artigo 174. Daí a observação do professor Eros Grau [52] no sentido de que a forma de atuação do Estado no processo econômico pode se dar mediante a:

• Intervenção por absorção ou participação:

O Estado intervém no domínio econômico, isto é, no campo da atividade econômica em sentido estrito. Desenvolve ação como agente econômico em regime de monopólio - absorção ou em regime de competição - participação;

• Intervenção por direção: intervenção sobre o domínio econômico, isto é, sobre o campo da atividade econômica em sentido estrito. Desenvolve ação como regulador dessa atividade, por meio de pressão sobre a economia e normas de comportamento compulsório para os sujeitos da atividade econômica em sentido estrito.

• Intervenção por indução: intervenção sobre o domínio econômico, isto é, sobre o campo da atividade econômica em sentido estrito. Desenvolve ação como regulador dessa atividade, por meio de manipulação dos instrumentos de intervenção: controle de preços etc [53].

A atividade de fomento no domínio econômico se insere nesta última categoria – intervenção sobre a ordem econômica e não na ordem econômica, na medida em que, não atua diretamente no domínio econômico, senão, indiretamente, por meio de instrumentos de fomento, como por exemplo, a concessão de vantagens fiscais com o intuito de direcionar a conduta do particular no desenvolvimento de suas atividades, com vistas à consecução de um interesse público ou de relevância coletiva [54].

No que tange ao domínio social, a intervenção estatal nesse campo, de igual modo, pode se dar, de modo direto, pela prestação de serviços públicos à coletividade e, de modo indireto, pela atividade administrativa de fomento. [55]

Há que se reconhecer a dificuldade do Estado de assegurar a plena efetivação dessas normas constitucionais. Vale dizer, delimitar até onde se mostra legítimo o exercício do direito à livre iniciativa e partir de qual ponto a atividade econômica desenvolvida pelo particular pode ser restringida pelo Estado, em razão da busca da Justiça Social e da incidência dos princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor, do meio ambiente, dentre outros.

Todavia, somente no confronto de tais bens jurídicos, diante do caso concreto, mediante a interpretação sistemática da Carta Constitucional de 1988 e a adoção dos critérios de ponderação - proporcionalidade/razoabilidade dos valores em jogo, é que poderá assegurar a efetivação dessas normas em prol dos objetivos nela consignados.

Nesse passo, entende-se que os limites para a intervenção do Estado na ordem econômica e social estão devidamente gizados no Texto Constitucional, cabendo aos Poderes Públicos constituídos, cada qual na sua esfera de competência, a partir de uma interpretação sistemática e, quando necessário, da adoção do método de ponderação, assegurar a efetivação de uma ordem econômica que, a par das leis de mercado e dos objetivos de lucro, possa contribuir para a implementação da Justiça Social e, por conseguinte, dos direitos sociais.

3.3. O perfil constitucional da atividade administrativa de fomento no domínio social à luz da Constituição Federal

O legislador constituinte de 1988 contemplou no artigo 6º como direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados e, ao tratar desses direitos nos capítulos próprios, atribuiu à sociedade civil a participação e colaboração para o alcance desses direitos considerados de relevante interesse público, ora de forma facultativa (ex. saúde), ora de modo obrigatório (ex. previdência social).

Ressalte-se que, independentemente do caráter facultativo ou obrigatório da atuação da sociedade civil, o que se extrai da Carta Magna é que, por considerar de relevante interesse público o alcance e a plenitude desses direitos sociais, estabelece o dever do Estado de fomentar essas atividades desenvolvidas pelos particulares, em alguns casos, de forma explícita (art. 217 – dever de fomentar práticas desportivas; art. 23, inciso VIII – competência para fomentar a produção agropecuária) em outros de modo implícito (art. 215 – garantia ao acesso às fontes de cultura; art. 204, inciso II – assistência social).

Eis, a seguir, os dispositivos constitucionais que, sob a nossa ótica, contemplam a possibilidade de incidência da atividade administrativa de fomento no domínio social, após a expedição de regular ato legislativo dispondo sobre os parâmetros dessa atuação estatal.

No tocante à saúde, o artigo 197 da CF/88 considera de relevância pública as ações e serviços de saúde e o artigo 199 estabelece a participação complementar da iniciativa privada no sistema único de saúde, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

Na área de educação, o artigo 205 da CF/88, de igual modo, estabelece que o direito à educação é dever do Estado e da família e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, ou seja, identifica-se o caráter complementar da atuação da sociedade civil nessa área considerada pelo Estado como de relevante interesse público.

Importante destacar que o artigo 213 também contempla a transferência de recursos públicos às escolas comunitárias, filantrópicas, confessionais e que comprovem a finalidade não lucrativa e a aplicação dos excedentes nos seus objetivos sociais.

Esse mesmo raciocínio da colaboração da sociedade civil pode ser identificado no campo da assistência social, posto que o artigo 204, inciso II, da CF/88 contempla a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação de políticas e no controle as ações em todos os níveis. As entidades de assistência social sem fins lucrativos são contempladas, inclusive, com a imunidade tributária de impostos incidentes sobre a sua renda, patrimônio e serviços, e de contribuições da seguridade social – art. 150, VI, "c" e 195, § 7º, da CF/88.

O acesso às fontes de cultura a todos está garantido no artigo 215, que impõe ao Estado o dever de apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais e no artigo 216 ao dispor que promoção e a proteção do patrimônio cultural brasileiro serão realizadas pelo Poder Público, com a colaboração da comunidade.

O constituinte de 1988 segue atribuindo ao Estado no artigo 217 o dever de fomentar práticas desportivas formais e não-formais, com a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional, bem como o dever de incentivar o lazer, como forma de promoção social.

O desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica também serão promovidos e incentivados pelo Poder Público, sendo, inclusive, facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica – art. 218.

Por fim, vislumbramos ainda a atuação conjunta entre Estado e sociedade nas áreas relativas ao meio ambiente, aos idosos e à criança e o adolescente – artigos 225, 230 e 227, todos da Constituição da República.

Depreende-se, pois, que atividade administrativa de fomento realizada pelo Estado nas áreas consideradas relevantes para o alcance do interesse público e a consecução dos direitos sociais é, antes de tudo, mandamento constitucional.

Além disso, tais dispositivos constitucionais deixam claro que a atividade administrativa de fomento está relacionada à atuação complementar do particular.

É dizer, a Constituição não afasta o dever do Poder Público de garantir ditos direitos sociais objeto de fomento, ao contrário, atribui ao mesmo a obrigação de efetivá-los, sem prejuízo da colaboração da sociedade civil.

Esse é o balizamento imposto pela Constituição ao legislador, no momento da edição da lei que regule a atividade administrativa de fomento, que a previsão legal contemple a atuação complementar e voluntária do particular na consecução indireta dos interesses públicos, sem prejuízo dos deveres incumbidos ao Estado, por determinação constitucional.

Essa nota relativa ao caráter complementar da atividade desenvolvida pela sociedade civil na realização dos direitos sociais, sem o emprego de coação e objeto de fomento pelo Estado é essencial para que não haja confusão entre o campo reservado ao serviço público pela Lei Fundamental e aquele destinado à atividade de fomento.

Com efeito, como já visto, é a própria Carta Magna que estabelece o regime jurídico a que estão submetidos os serviços públicos. Dessa configuração constitucional do serviço público e a par dos delineamentos da atividade administrativa de fomento na Carta Política de 1988, pode-se concluir que a atividade de fomento está voltada para o campo de atuação complementar do particular, o qual age como colaborador do Estado na consecução indireta de interesses públicos, com o intuito social e não lucrativo, sob o regime de direito privado permeado por normas de direito público (entidades do 3º Setor).

É dizer, as atividades exercidas pelos particulares voluntariamente e sem intuito lucrativo para a implementação dos direitos sociais, objeto de fomento pelo Estado, são aquelas abertas à iniciativa privada (p. ex. educação e saúde), todavia, se prestado pelo Estado, este somente poderá executá-lo como serviço público e à luz do regime de direito público.

E, justamente porque a atividade administrativa de fomento no domínio social busca a satisfação indireta e mediata do interesse público naquele campo, tem como destinatário aqueles entes particulares que desenvolvem ditas atividades relevantes para a sociedade, sem coação e sem fim lucrativo, componentes do denominado 3º Setor.

Há que se anotar, no entanto, que atividade administrativa promocional, adotada como instrumento de intervenção estatal seja no domínio econômico, seja no domínio social, tem como nota característica a subsidiariedade, embora com conteúdos diversos nos respectivos âmbitos.

Explica-se. No campo econômico a atuação do Estado se mostra subsidiária (poder-se-ia dizer, complementar), na medida em que a regra é o desenvolvimento da atividade econômica pelo particular, com o objetivo de lucro, por seus meios próprios. Assim, o Estado apenas adotará uma política de fomento econômico que se justifique para o alcance das finalidades públicas, a exemplo, da instituição de regimes especiais para determinadas áreas carentes de indústrias etc.

Por outro lado, na seara social, observa-se que o Estado, por ter adotado um modelo de Estado Social e de Estado Democrático de Direito, deve, como regra, assegurar a prestação dos serviços públicos sociais, tais como saúde, educação, previdência e assistencial social. Segue-se, então, que a atividade administrativa de fomento nessa área também somente poderá se efetivar de modo complementar, subsidiário, mediante o incentivo, a promoção, o auxílio dos particulares que desenvolvam, ao lado da Administração Pública, atividades consideradas de interesse público.

Com essas afirmações acerca da natureza complementar da atividade administrativa de fomento, podemos concluir que o Estado não poderá, a pretexto de adotá-la como instrumento de intervenção, pretender substituir os papéis principais reservados, respectivamente, ao Estado e ao particular, nos âmbitos econômico e social. Vale dizer, no primeiro, o particular como protagonista e no segundo o ente estatal e, vice-versa, cada qual como ator secundário naqueles campos.

Daí porque, é sempre bom repisar, não pode o Poder Público, ante os mandamentos constitucionais, pretender se esquivar dos seus encargos quanto à prestação de serviços públicos mediante mero incentivos às entidades do Terceiro Setor.

Nesse sentido, já advertia o professor Sílvio Luís Ferreira da Rocha: "O Estado não poderá, a nosso ver, substituir completamente a prestação de serviços por atividade de fomento, por isto implicar uma renúncia às funções que lhe foram acometidas pelo Texto Constitucional". No mesmo passo, cita-se ainda a posição de Carolina Zancaner Zockun [56], Tarso Cabral Violin [57] e José Roberto Pimenta Oliveira [58].

A par do perfil constitucional da atividade administrativa de fomento, cumpre propor o conceito de tal espécie de função pública.

Entende-se que a referida ação promocional pode ser definida como "atividade administrativa pela qual o Estado incentiva as atividades dos particulares e de outras entidades públicas que atendam o interesse público assim consagrado pelo ordenamento jurídico positivo, com a conseqüente satisfação, de modo indireto e mediato, desse interesse, sem o emprego de meios coercitivos e sem o desempenho de serviços públicos".

Explicita-se o conceito. A alusão à "atividade administrativa pela qual o Estado" significa dizer que, enquanto atividade administrativa [59] a cargo da Administração Pública, está subordinada ao regime jurídico-administrativo, com a incidência dos princípios [60] que o informam, a exemplo dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, dentre outros, implícita ou explicitamente encartados na Constituição Federal de 1988 e albergados em dispositivos da legislação infraconstitucional, como na Lei do Processo Administrativo Federal – Lei nº 9.784/99.

De fato, a questão relativa à implementação eficaz do fomento público no Brasil está a exigir maior atenção tanto do legislador pátrio como da Administração Pública, cada qual no exercício das suas atribuições constitucionais. Isso porque a legitimidade dessa importante atividade estatal está condicionada à observância dos parâmetros fixados na Carta Magna.

Relativamente ao princípio da legalidade, dado a sua importância no contexto do Estado de Direito (no sentido de que todos – Administração e administrados estão subordinados à ordem jurídica), está previsto como direito fundamental no "art. 5º, inciso II, da CF/88 – ninguém será obrigado a fazer ou deixar fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

De acordo com o referido princípio, extrai-se que ao particular é dado fazer tudo aquilo que a lei permita ou não proíba. Relativamente à legalidade administrativa, há que se atentar ainda para o disposto no art. 37, caput e 84, inciso IV, da CF/88, donde se constata um campo menor de atuação, na medida em que a Administração, no exercício da função pública administrativa, somente pode fazer o que a lei autoriza.

No que toca ao princípio da impessoalidade, conforme pontua Bandeira de Mello: [61]

"(...) traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoas, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou da isonomia.

De fato, entende-se que a escolha dos administrados para receber do Estado recursos públicos mediante a atividade administrativa promocional ou de fomento deve se pautar pelo referido princípio, assim como o da moralidade administrativa. Para tanto, há que adotar procedimento licitatório ou, ao menos, processo seletivo com prévias e objetivas regras para a seleção dos administrados interessados.

Do exame da Constituição Federal, depreende-se que tanto no artigo 37, XXI, quando tratou da contratação de serviços, obras, compras, alienações com particulares, como no artigo 175, quando tratou da concessão e permissão dos serviços públicos aos particulares, exigiu procedimento licitatório para assegurar a isonomia entre os interessados. Ora, a exigência de licitação quando haja contratação entre o Poder Público e o particular decorre da própria Constituição, ressalvados os casos em que tal disputa não se compatibilize com o atendimento do interesse público – dispensa ou inexigibilidade de licitação. Daí porque o artigo 116 da Lei nº 8.666/93 estabelece que os convênios, ajustes, acordos e outros instrumentos congêneres, no que couber, estão sujeitos aos princípios da licitação contidos no referido diploma legal.

O convênio, o contrato de gestão e o termo de parceria, como instrumentos da atividade administrativa de fomento e como espécies do gênero negócio jurídico de cooperação entre o Poder Público e os particulares estão subordinados a tal regramento constitucional.

No atual estágio do Estado Social e Democrático de Direito, é natural ainda que se exija da Administração Pública a transparência de seus atos, ressalvados as hipóteses excepcionais previstas no ordenamento jurídico, e justificadas seja sob a ótica da segurança da sociedade ou do Estado, seja sob o prisma do direito à intimidade.

Com relação ao princípio da eficiência, Celso Antônio Bandeira de Mello [62] entende se tratar de uma faceta do princípio da boa administração. Diz o autor:

"(...) Quanto ao princípio da eficiência, não há nada a dizer sobre ele. Trata-se, evidentemente, de algo mais do que desejável. Contudo, é juridicamente tão fluido e de tão difícil controle ao lume do Direito, que mais parece um simples adorno agregado ao art. 37 ou o extravasamento de uma aspiração dos que burilam no texto. De toda sorte, o fato é que tal princípio não pode ser concebido (entre nós nunca é demais fazer ressalvas obvias) senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais suma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o dever administrativo por excelência. Finalmente, anote-se que este princípio da eficiência é uma faceta de um princípio mais amplo já superiormente tratado, de há muito, no Direito italiano: o princípio da ‘boa administração’."

Ora, não há dúvidas de que a legítima atividade administrativa de fomento exige também a observância do princípio da eficiência, ou seja, da "boa administração", em conjunto com os demais princípios, explícitos ou implícitos (estes últimos, extraídos do sistema jurídico positivo, tal como o princípio da segurança jurídica, da supremacia do interesse público sobre o privado etc.) que regem a Administração Pública. Nesse sentido, o escólio de Silvio Luís Ferreira da Rocha [63]:

"(...) A atividade de fomento, enquanto atividade administrativa, deve estar submetida ao regime jurídico administrativo, que no Brasil deriva diretamente da Constituição Federal. Assim, a atividade de fomento submete-se aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput, redação da EC 19), além da motivação (art. 93, X), da igualdade e da finalidade, entre outros."

Na mesma direção, José Roberto Pimenta Oliveira [64], em primoroso estudo sobre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Administrativo Brasileiro, tece importantes considerações acerca da observância aos princípios que informam o regime jurídico-administrativo na atividade promocional. No ponto, destaca-se a sua lição acerca da incidência dos princípios da legalidade, da eficiência, da razoabilidade e da proporcionalidade na referida atividade:

"(...) A legalidade, em particular, é reiteradamente reforçada com as regras constitucionais disciplinadoras das finanças públicas (arts. 163 e ss.), quando o fomento representar acréscimo de despesa ou redução de receitas. Tem-se, v.g., a norma que veda a instituição de fundos de qualquer natureza sem prévia autorização legislativa (art. 167, IX).

A eficiência, a seu turno, é desdobrada nos deveres de legitimidade e de economicidade, inclusive na aplicação de subvenções, impostos a qualquer pessoa que utilize, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores públicos, fiscalizados pelo sistema de controle do Tribunal de Contas (art. 70 e parágrafo único e art. 71, VI) e controle interno de cada Poder (art. 74, II).

Neste contexto constitucional em que se estabelece um rol extenso de princípios e de formas de controle sobre a atuação administrativa, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade são elementos-chaves para garantir a legitimidade da atividade promocional ou de fomento, executada pela Administração para dar plena efetividade à realização dos objetivos constitucionais, seja no âmbito social, seja no âmbito econômico. [...]

É possível cogitar da incidência do princípio da razoabilidade no momento, seja de criação do quadro regulador da ação fomentadora, seja de implementação da moldura normativa disciplinadora da produção dos atos jurídico-administrativos concretos, no exercício da função."

Por fim, merece destaque o princípio da moralidade administrativa, o qual também se afigura essencial para a conformação do exercício da atividade administrativa promocional ou de fomento, em conjunto com os demais princípios constitucionais que regem a função administrativa.

Adverte-se, por oportuno, que a moralidade administrativa [65] está vinculada a valor ou preceito moral juridicizado, e a sua ofensa não decorre da violação de norma exclusivamente de ordem moral, consoante as precisas lições do eminente professor Márcio Cammarosano [66]:

"Na medida em que o próprio Direito consagra a moralidade administrativa como bem jurídico amparável por ação popular, é porque está outorgando ao cidadão legitimação ativa para provocar o controle judicial dos atos que sejam inválidos por ofensa a valores ou preceitos morais juridicizados. São esses valores ou preceitos que compõem a moralidade administrativa. A moralidade administrativa tem conteúdo jurídico porque compreende valores juridicizados, e tem sentido a expressão moralidade porque os valores juridicizados foram recolhidos de outra ordem normativa do comportamento humano: a ordem moral. Os aspectos jurídicos e morais se fundem, resultando na moralidade jurídica, que é a moralidade administrativa quando reportada à Administração Pública. O princípio da moralidade administrativa está referido, assim, não diretamente à ordem moral do comportamento humano, mas a outros princípios e normas que, por sua vez, juridicizam valores morais. É por essa razão que o princípio da moralidade administrativa não agrega ao mundo do Direito, por si só, qualquer norma moral que, se violada, implicaria invalidade do ato. Não há que se falar em ofensa à moralidade administrativa se ofensa não houver ao Direito. Mas só se pode falar em ofensa à moralidade administrativa se a ofensa ao Direito caracterizar também ofensa a preceito moral por ele juridicizado, e não é o princípio da moralidade que, de per si, juridiciza preceitos morais.

Por seu turno, ao se empregar a expressão "incentiva as atividades dos particulares e de outras entidades públicas que atendam o interesse público assim consagrado pelo ordenamento jurídico positivo" quer-se esclarecer que apenas as atividades dos particulares e de outras entidades públicas [67] que, de algum modo, realizem o interesse público, assim considerado pela Constituição Federal e pela lei, são passíveis da ação fomentadora. É dizer, para o desempenho da atividade promocional há necessidade de previsão legal para definir os parâmetros da atuação estatal, e mais, que esta esteja de acordo com a Lei Maior do país.

Por fim, no que tange à parte final do conceito "com a conseqüente satisfação, de modo indireto e mediato, desse interesse, sem o emprego de meios coercitivos e sem o desempenho de serviços públicos" pretende-se apartar tal atividade daquela relativa ao exercício do poder de polícia e da destinada à realização de serviço público.

3.4. Da Organização Social

A criação da organização social por meio da Lei nº 9.637/98 foi fruto da Reforma do Estado iniciada na década de 90. O denominado Plano Diretor da Reforma do Estado, aloca as funções estatais (de governo, administrativa, legislativa e judiciária) em 04 grupos a partir de critérios retirados da Ciência da Administração, e não da Ciência do Direito [68]:

a) núcleo estratégico -

correspondente às funções dos Poderes Legislativo, Judiciário, Executivo e do Ministério Público. É no núcleo estratégico que as leis e as políticas públicas são definidas;

b) atividades exclusivas - correspondem ao grupo de atividades no qual são prestados serviços exclusivos do Estado, que só o Estado pode realizar, como o poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar;

c) serviços não-exclusivoscorrespondem ao grupo de atividades que o Estado exerce simultaneamente com outras organizações públicas não estatais e privadas, dada a relevância dessas atividades, via de regra relacionadas a direitos humanos fundamentais, como educação e saúde;

d) grupo de produção de bens e serviços para o mercado corresponde à área de atuação das empresas estatais do segmento produtivo ou do mercado financeiro. É caracterizado pelo desempenho de atividades econômicas pelo Estado que podem ser exercidas normalmente pela iniciativa privada.

A proposta do referido Plano contempla ao lado da propriedade estatal e da propriedade privada, a denominada propriedade pública não-estatal de bens e serviços, a ser titularizada pelas organizações sem fins lucrativos. Ao setor de serviços não exclusivos de atuação do Estado deve corresponder a propriedade pública não-estatal; e, por essa razão, bens e serviços de titularidade do Estado são transferidos a organizações sem fins lucrativos e de direito privado, por intermédio do processo que denominou, diga-se de passagem, de forma infeliz e inadequada, de "publicização".

No plano normativo, constatam-se os esforços para a implementação desse programa, como por exemplo, a Emenda Constitucional nº 19/98 e a Lei nº 9.637/98, que criou e disciplinou as ora examinadas organizações sociais – OS (esta última, objeto da ADI nº 1923, que, atualmente, aguarda julgamento na E. Corte Suprema). Daí, como bem observou Silvio Luís Ferreira da Rocha [69]:

"(...) o texto da Lei 9.637/1998 ter mencionado no art. 20 a criação por decreto do Programa Nacional de Publicização – PNP, com o objetivo de estabelecer diretrizes e critérios para a qualificação de organizações sociais, a fim de assegurar a absorção de atividades referidas no art.1º e desenvolvidas por entidades e órgãos públicos da União; e no art. 21 ter extinguido o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, integrante da estrutura do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico – CNPQ, e a Fundação Roquete Pinto, entidades vinculadas à Presidência da República, e autorizado a absorção das atividades e do acervo dessas entidades por organizações sociais.

Cumpre, pois, verificar o que dispõe o citado diploma legal, no que tange à qualificação das entidades em organizações sociais.

O art. 1º da Lei nº 9.637/98 estabelece que o Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde.

Os requisitos para a qualificação, por seu turno, estão arrolados no art. 2º. São eles:

I - comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre

:

a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação;

b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades;

c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle básicas previstas nesta Lei;

d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral;

e) composição e atribuições da diretoria;

f) obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de gestão;

g) no caso de associação civil, a aceitação de novos associados, na forma do estatuto;

h) proibição de distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese, inclusive em razão de desligamento, retirada ou falecimento de associado ou membro da entidade;

i) previsão de incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União, da mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados;

II - haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado.

Do mencionado dispositivo legal, chama a atenção o disposto no inciso II, do art. 2º, que, não obstante a exigência de cumprimento de todos os nove requisitos previstos no inciso I daquele dispositivo legal, atribui competência discricionária ao Ministro ou titular de órgão supervisor ou regular da área de atividade correspondente ao seu objeto social para, mediante os critérios de conveniência e oportunidade, aprovar a qualificação da entidade como organização social.

Tem-se, com isso, já de início, manifesta inconstitucionalidade, por afronta ao princípio da isonomia. Nesse sentido, compartilha-se do entendimento de Silvio Luís Ferreira da Rocha [70], que assim assevera:

"Não há razão lógica que justifique a decisão administrativa de dentre duas pessoas jurídicas que preencham os requisitos [...] conceder a uma e negar a outra o título de organização social. A escolha afronta manifestamente o princípio da isonomia. Se há igualdade jurídica entre as pessoas jurídicas que pretendam receber o título de organização social, a solução, de lege ferenda, seria a atribuição desta qualidade a todas – e não apenas a algumas – que preencham os requisitos, transformando o exercício da competência do agente de discricionária para vinculada no que diz respeito ao conteúdo do ato. Somente assim o princípio constitucional da igualdade seria respeitado. Uma alternativa seria a realização de procedimento licitatório que, com base em critérios objetivos e imparciais, selecionasse entre as candidatas aquela que se mostrasse mais capacitada a receber o título de organização social."

O artigo 3º, por seu turno, estabelece que o Conselho de Administração, - órgão de deliberação superior das OS, deverá ser composto por membros natos representantes do Poder Público (de 20% a 40%) e de entidades da sociedade civil (de 20% a 30%), os quais deverão corresponder sempre a mais de 50% do Conselho, de até 10% de membros eleitos entre os associados, de membros eleitos pelos demais integrantes do Conselho (de 10% a 30%), e de membros indicados ou eleitos na forma estabelecida pelo estatuto (até 10%).

O art. 4º exige ainda, para fins de qualificação, que o Estatuto da entidade estabeleça atribuições privativas do Conselho de Administração, dentre outras, aquelas previstas nos incisos I a X do referido dispositivo legal.

A qualificação da entidade sem fins lucrativos como Organização Social gera efeitos jurídicos imediato e mediato. O primeiro está previsto em lei e decorre automaticamente do recebimento do título. Trata-se do reconhecimento da qualidade de interesse social e utilidade pública da pessoa jurídica qualificada como OS (art. 11 da Lei nº 9.637/98). O segundo depende de outro ato da Administração, qual seja, a celebração de contrato de gestão entre o Poder Público e a OS [71].

Às organizações sociais poderão ser destinados recursos orçamentários e bens públicos necessários ao cumprimento do contrato de gestão, este último dispensado a licitação, mediante permissão de uso, consoante cláusula expressa do contrato de gestão. É facultado ainda ao Poder Executivo a cessão especial de servidor para as organizações sociais, com ônus para a origem – arts. 12 e 14.

Ora, tais disposições legais, assim como já dito com relação ao art. 2, inciso II, padecem de vício de inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da isonomia e da obrigatoriedade de licitação. A propósito, irreparável a advertência de Celso Antônio Bandeira de Mello [72]:

"Na lei disciplinadora das organizações sociais chama atenção alguns pontos nos quais se patenteiam inconstitucionalidades verdadeiramente aberrantes. O primeiro deles é que, para alguém qualificar-se a receber bens públicos, móveis e imóveis, recursos orçamentários e até servidores públicos, a serem custeados pelo Estado, não necessita demonstrar habilitação técnica ou econômico-financeira de qualquer espécie. Basta a concordância do Ministro da área (ou mesmo do titular do órgão que a supervisione) e do Ministro da Administração (Ministério que já não mais existe, por força da Medida Provisória 1795, de 1.1.99, hoje 2216, de 31.08.2001, e cujas atribuições passaram para o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão). Enquanto para travar relações contratuais singelas (como um contrato de prestação de serviços ou de execução de obras) o pretendente é obrigado a minuciosas demonstrações de aptidão, inversamente, não se faz exigência de capital mínimo nem demonstração de qualquer suficiência técnica para que um interessado receba bens públicos, móveis ou imóveis, verbas públicas e servidores públicos custeados pelo Estado, considerando-se bastante para a realização de tal operação a simples aquiescência de dois Ministros de Estado ou, conforme o caso, de um Ministro e de um supervisor da área correspondente à atividade exercida pela pessoa postulante ao qualificativo de ‘organização social’. Trata-se, pois, da outorga de uma discricionariedade literalmente inconcebível, até mesmo escandalosa, por sua desmedida amplitude, e que permitirá favorecimentos de toda a espécie. Há nisto uma inconstitucionalidade manifesta, pois se trata de postergar o principio constitucional da licitação (art. 37, XXI) e, pois, o principio constitucional da isonomia (art. 5º), do qual a licitação é simples manifestação punctual, conquanto abrangente também de outro propósito (a busca do melhor negócio)."

De fato, ante os propósitos da Lei nº 9.637/98 – de substituir a prestação de serviços públicos pelo Estado por meio de repasse das atividades às pessoas jurídicas de direito privado -, reputa-se inconstitucional o referido diploma legal - ao menos com relação aos arts. 2º, inciso II, 12 e 14 e art. 24, inciso XXIV, da Lei nº 8.666/93, haja vista que, conforme analisado anteriormente, a atuação dessas organizações integrantes do Terceiro Setor somente se legitima, à luz da Constituição da República, na medida em que se afigure uma atuação complementar à ação do Poder Público.

É dizer, o Texto Constitucional autoriza a edição de lei e a respectiva atividade administrativa de fomento somente enquanto ação promocional à atividade do particular que indiretamente satisfaça o interesse público (frise-se, atuação essa que deve ser complementar à do Estado), não cabendo a este substituir o Poder Público no desempenho de suas tarefas constitucionais (prestação de serviços públicos).

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Sobre o autor
Alberto Shinji Higa

Mestre em Direito do Estado e Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Empresarial e Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Procurador Jurídico do Município de Jundiaí (atualmente cedido ao Ministério Público Federal para o desempenho da função de Assessor Jurídico de Procurador Regional da República). Professor de Direito Administrativo e Teoria Geral do Estado da Universidade Padre Anchieta, em Jundiaí/SP (Licenciado). Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação em Direito Tributário da UNIP/SP e Professor Orientador de TCC da rede de ensino LFG/ANHANGUERA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HIGA, Alberto Shinji. A ADI 1.923-DF e os limites do fomento público ao terceiro setor à luz da Constituição da República. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2848, 19 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18937. Acesso em: 25 abr. 2024.

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