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A ação dos movimentos dos sem terra.

Ofensa a propriedade privada ou busca pela sua função social?

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Resumo:


  • Aborda o conflito entre o direito à propriedade e a função social da terra, destacando a necessidade do Direito Penal intervir quando outros ramos do direito são ineficazes.

  • Examina o histórico das lutas pela terra no Brasil, as bases legais e políticas do direito de propriedade versus a função social, e as ações do movimento dos sem terra.

  • Discute a legalidade e os excessos nos movimentos sociais de reivindicação da terra, ressaltando a importância de agir dentro dos limites da lei para manter a legitimidade da causa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

RESUMO: Em abordagem multidisciplinar, mas focada em aspectos penais e processuais penais, que decorrem das invasões de terra, são analisados aspectos históricos, econômicos e sociais e, ainda, os direitos que tutelam a propriedade, bem como aqueles que o limitam através do cumprimento da sua função social. Eles fazem com que esse conflito de direitos fundamentais constitucionais ultrapasse o caráter cível e atinja o direito penal, que em ultima ratio, se torna necessário para tutelar interesses que os demais ramos do direito não conseguem solucionar de forma eficiente, frente a crescente violência que decorre das ações dos movimentos dos sem terra. Sem, com isso, querer criminalizar os movimentos de luta pela reforma agrária, mas demonstrando que seus excessos puníveis como infrações penais podem denegrir a imagem de uma luta fidedigna, para que estes, com seu propósito de luta, atuem dentro da legalidade e se utilizem dos meios adequados de reivindicação dentro do Estado Democrático de Direito.

PALAVRAS-CHAVE: 1.Propriedade. 2. Função social. 3. Reforma agrária. 4. Invasão de terras. 5. Excessos puníveis. 6. Descaracterização de legitimidade.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2 Fundamentos históricos que legitimam as invasões de terra em favor da reforma agrária. 3 Aspectos políticos e legais referentes ao direito de propriedade x função social. 4 A limitação da atuação dos sem terra frente aos seus excessos na ótica do direito penal e processual penal. 5. Considerações finais.6. Referências


1 INTRODUÇÃO

Foi-se a época da auto tutela, bem como dos ideais do Absolutismo, e mesmo não tendo resquícios socialistas em nossa organização política, é indiscutível, ao analisar nossa história, que em qualquer de seus períodos, seja qual fosse o sistema político dominante, a luta pela terra foi, e continua sendo, um ponto de divergência social e política, marcada sempre por conflitos entre lados antagônicos da nossa sociedade.

O nosso estudo visa analisar esse antagonismo de interesses numa ótica do Direito Penal e Processual Penal, buscando os aspectos que fundamentam a reforma agrária e a forma de agir dos movimentos dos sem terra em aspectos históricos e legais, bem como posicionar essa divergência em relação aos direitos em favor dos movimentos e dos proprietários de terra, a serem vistos nos capítulos 2 e 3, respectivamente, de nosso estudo.

Busca-se uma análise imparcial do conflito, ressaltando no capítulo 3 os direitos e deveres dos proprietários frente ao cumprimento de sua função social, porém em paralelo aos possíveis abusos sofridos, decorrentes de excessos da atuação dos sem terra, tratados no capítulo 4, em que é feita uma análise detalhada das invasões de terra adequando ações a tipos penais que podem ser cometidos.

Essa avaliação ocorre mais no intuito de limitar legalmente a atuação dos movimentos, para que a impunidade das ações excessivas não seja um fomento a novos abusos, e que frente à ilegalidade de seus atos não percam a legitimidade de sua luta social.

Ressaltando que a luta pela terra há muito tempo ultrapassou os limites das resoluções de litígios eficazes nos âmbitos civil, agrário, ou mesmo administrativo, e assim, como tutela um de seus princípios, frente aos conflitos cada vez mais sangrentos pela terra que afetam a vida e a dignidade da pessoa humana, deve vir o direito penal em ultima ratio atuar de forma mais rígida a fim de tutelar esses interesses fundamentais da sociedade, que por uma demora, que beira a omissão do Estado na solução desses litígios, promovendo efetivamente a reforma agrária, geram um desconforto e um inconformismo social, que não deixa uma margem segura em fazer classificações de "mocinhos" e "bandidos" nesse antagonismo.


2 FUNDAMENTOS HISTÓRICOS QUE LEGITIMAM AS INVASÕES DE TERRA EM FAVOR DA REFORMA AGRÁRIA.

Os movimentos de luta pela reforma agrária se fundamentam principalmente em exemplos históricos de lutas, não só pela terra, mas de busca de garantia de direitos sociais, sempre vinculadas à efetividade destes as minorias, que fazem parte das classes mais pobres da população brasileira, como bem observa a professora Delze dos Santos Laureano, em relação à formação do MST.

Enfim, observamos que, no processo de gestação do MST, contribuíram muito as lutas históricas dos indígenas, tal como a de Sepé Tiaraju; dos negros, tal como a de Zumbi dos Palmares; dos deserdados da terra, tal como os cangaceiros e os camponeses de Canudos e do Contestado, e Trombas e Formoso, das "Terras do Rio Sem Dono" às margens do Rio Doce em Minas Gerais, e em tantos outros lugares cujos registros estão encobertos na história, na versão dos vencedores; dos sertanejos com esperança messiânica de Antônio Conselheiro, no Monge José Maria. E de uma forma mais marcante nas Ligas Camponesas de Francisco Julião que deixaram como maior herança para o MST, as características e os princípios de organização e da luta. [01]

Afirma João Pedro Stédile, um dos maiores líderes dos movimentos de luta pela terra, "O MST é a continuidade de um processo histórico das lutas populares. Esperamos ser um elo com as lutas futuras. Este é o nosso papel histórico" [02], e essa interação histórica funciona como fomentadora de novas relações que buscam uma mudança no sentido de fazer do Brasil um país mais solidário, diminuindo as desigualdades sociais.

De acordo com a visão desses movimentos, pode-se dizer que a luta pela terra iniciou-se desde a chegada dos portugueses ao nosso território, como assevera Bernardo Mançano.

A história da formação do Brasil é marcada pela invasão do território indígena, pela escravidão e pela produção do território capitalista. Nesse processo de formação do nosso país, a luta de resistência começou com a chegada do colonizador europeu, há 500 anos, desde quando os povos indígenas resistem ao genocídio histórico. (...) Essa é a memória que nos ajuda a compreender o processo de formação do MST. [03]

Defende-se que o processo histórico da formação social do Brasil sempre fora elitista, passando por oligarquias que culminaram na formação dos latifúndios e consequentemente, no que hoje denominamos de agronegócio, que para os movimentos agrários é o ápice da desigualdade no campo e produto mais aterrador do capitalismo pátrio.

Analisando os exemplos históricos utilizados pelo MST, vê-se clara legitimidade nas lutas de Sepé Tiaraju, líder da resistência dos povos guaranis frente os invasores espanhóis e portugueses contra a escravidão indígena, seguido sequencialmente na história dos líderes negros contra a escravidão, Ganga Zumba e Zumbi dos Palmares, que em meados do século 17 liderava cerca de 20 mil pessoas na Serra da Barriga em Alagoas. [04]

Mesmo antes do fim da escravidão, na iminência de ver esse modelo de exploração da mão de obra escrava ser modificado, seguindo as tendências mundiais de substituição desta mão de obra por trabalhadores, a nossa reestruturação social seguiu um caminho que em nada fomentou a minimização das desigualdades sociais, visto que a Lei de Terras de 1850 "em vez de facilitar a democratização do acesso a terra, contrariamente intensificou a concentração por meio da grilagem e da expropriação da terra" [05], ou seja, os camponeses, e ex-escravos só teriam acesso a terra por meio de compra ou arrendamento, o que na época, se aproximavam de uma nova escravidão, agora, para o arrendante. Situação bem distinta do que ocorreu nos Estados Unidos da América.

Essa foi uma política contrária a modelo capitalista estadunidense, por exemplo, no qual a propriedade foi facilitada aos colonos e criou as condições para garantir não apenas o direito dos trabalhadores à terra, mas, sobretudo, o modelo de desconcentração da propriedade da terra. [06]

Como resultado desse modelo de formação social agrária, que dificultou o acesso a terra aos pequenos produtores rurais, vem os exemplos messiânicos de Antônio Conselheiro em Canudos e do Monge José Maria no Contestado. No primeiro, tínhamos uma espécie de cooperativa de trabalho onde todos tinham acesso a terra, num modo familiar de produção, inclusive, tendo uma espécie de fundo solidário em prol dos idosos e doentes da comunidade.

Já no Contestado, ocorrido no sul do país, a principal motivação do movimento que abolia a propriedade, visto que essa era comum de todos nos núcleos, fora a construção da ferrovia São Paulo - Rio Grande pela empresa norte americana Railway Company em que

Uma enorme faixa de terra de 30 quilômetros de largura foi explorada e desflorestada pela empresa. Os camponeses expulsos de suas terras ficaram perambulando pelo sertão. A situação agravou-se ainda mais após o fim da construção da ferrovia, quando cerca de 8 mil trabalhadores contratados em outros Estados (sic) da federação, ficaram desempregados. [07]

O cangaço e figuras como Antônio Silvino e Lampião também são exemplos de luta contra o coronelismo, também conhecido como banditismo social, e dentre esses dois, Silvino ainda é mais vangloriado, pois não atacava camponeses e trabalhadores pobres, apenas fazendeiros e comerciantes, repartindo com os pobres aquilo que arrecadava.

Há de se ressaltar que o coronelismo fora um modelo político eficiente de subjugação, que ainda continua sendo eficaz na permanência das desigualdades no campo, posto que esse modelo, se não em todas suas características, mas em boa parte delas ainda é facilmente detectável em grande parte das áreas rurais de país, e ao relatar aspectos desse momento histórico, se não especificarmos o período histórico, parece que falamos de dias atuais, como bem relata Francisco Julião.

O latifúndio é cruel. Escora-se na polícia. E no capanga. Elege os teus piores inimigos. Para ganhar o teu voto usa duas receitas: a violência ou a astúcia. Com violência ele te faz medo. Com a astúcia ele te engana. [...] A astúcia é te tomar por compadre. É entrar na tua casa de mansinho como um cordeiro. Com a garra escondida. Com o veneno guardado. É te oferecer um frasco de remédio. E o jipe para te levar a mulher ao hospital. É um pedaço de dinheiro por empréstimo. Ou uma ordem para o fiado no barracão. É te apanhar desprevenido quando chega a eleição para te dizer: "Compadre, prepara o título, se o meu candidato ganhar a coisa muda". E quando o candidato ganha, a coisa não muda. E se muda é para pior. O latifúndio incha de gordo. Tu inchas de fome. [08]

O movimento nacional, que mais influencia a luta atual pela reforma agrária, sem dúvida, são as Ligas Camponesas, do qual o MST se considera herdeiro, como adverte Stédile.

É muito importante que todos os militantes do MST e dos diversos movimentos sociais que existem no meio rural brasileiro conheçam em profundidade como foi a experiência das Ligas, seja para aprender com seus acertos, seja para evitar os seus erros [09].

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O retorno ao regime democrático após a Era Vargas em 1945 possibilitou as condições adequadas para a mobilização camponesa no país, transcendendo meros aspectos associativos, adentrando na política nacional, elegendo representantes camponeses nos estados como deputados e vereadores, principalmente ligados ao PCB, numa aliança operário-camponesa motivados por ideários socialistas da China, leste europeu, e Cuba, que é uma das principais referências utilizadas na organização do MST. Bem como, ao PSB, do advogado Antônio Julião que por décadas defendeu os foreiros da zona da mata de Pernambuco.

Esses aspectos são importantíssimos e extremamente atuais, pois ultrapassam os movimentos de cunho quase que unicamente revolucionários, adentrando numa organização adequada a um Estado Democrático de Direito, pois busca mudança através do Legislativo e do Poder Judiciário, em que Julião tinha como lema "combater a legalidade pela própria legalidade" [10], usando o direito civil contra o direito consuetudinário, conseguindo maior visibilidade na luta pela reforma agrária, e aproveitando-se dela para explicitar a legitimidade do movimento frente a história e a situação dos camponeses frente a lei.


3 ASPECTOS POLÍTICOS E LEGAIS REFERENTES AO DIREITO DE PROPRIEDADE X FUNÇÃO SOCIAL.

O posicionamento favorável ou contrário a reforma agrária, reflete a formação político-estrutural da sociedade brasileira, entre favorecidos e desfavorecidos, entre a situação e a oposição, classificação política esta, que hodiernamente é quase impossível de ser feita.

Historicamente os detentores do poder econômico, são os mesmo que detêm o poder político, e consequentemente andam lado a lado com o legislativo e judiciário, trabalhando sempre na defesa de interesses mais comuns a estes, do que comum a todos, no sentido de interesse público, que, em regra, deveria ser a finalidade inerente a Administração Pública.

Passado o liberalismo, vivemos o Welfare State [11], em que o interesse público é o guia de atuação do estado, seja negativamente ou positivamente como salienta Luciano Feldens.

Detentor do monopólio da força, o Estado passa a ter uma dupla missão: deve não apenas respeitar os direitos fundamentais (perspectiva negativa), mas também protegê-los (perspectiva positiva) contra ataques e ameaças de terceiros. Essa dupla missão acometida ao Estado é decorrência lógica da multifuncionalidade que assumiram os direitos fundamentais como, direitos negativos (de resistência, contra o Estado), e positivos (de proteção, por meio do Estado). [12]

Desta feita, a análise dos posicionamentos dentre proprietários de terra e sem terra é caracterizada por antagonismos abissais, que beiram o extremismo na defesa de seus interesses, em que proprietários são adebtos do capitalismo, defensores de um direito de propriedade quase que inatingível, e os sem terra defendem o socialismo e a abolição da propriedade individual, visando uma propriedade como bem comum, em moldes já trabalhados na maioria dos assentamentos.

A motivação histórico-social dos movimentos favoráveis a reforma agrária, é somada a interpretação constitucional da função social da propriedade, instituída na constituição de 1988, no sentido de maximizar as desapropriações e convertê-las em assentamentos, mas principalmente derrubar os entraves legais que dificultam o acesso a essas terras.

Essa tem sido uma das principais bandeiras do MST, deslegitimar a proteção legal à propriedade que não cumpre a função social, seja para os pequenos e médios proprietários – art. 185, I, seja por conta da produtividade – art. 185, II. A primeira reivindicação do movimento é atualização dos índices de produtividade utilizados pelo Incra e que são ainda da década de 1970. Daquela data até os dias atuais a produtividade por hectare já é muito maior devido aos avanços técnicos e científicos disponíveis. [13]

O Art. 5º da constituição federal é o ponto central da briga, pois ao mesmo tempo garante a proteção à propriedade, mas o condiciona ao cumprimento de sua função social, indicando claramente não ser um direito absoluto, que de acordo com a Lei n. 8.629/93, que disciplina a reforma agrária dia que devem ser cumprido simultaneamente os requisitos:

[...] o aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos disponíveis e preservação do meio ambiente; a observância das disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. [14]

Outro artigo importante da constituição, que em regra, é utilizado pelos sem terra, é curiosamente bem utilizada em seu desfavor, é o Art. 184 que diz que

Compete à União

(grifo nosso) desapropriar por interesse social, para fins de, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. [15]

Alegam os movimentos, que a concretude das desapropriações, de competência da União, não pode ser centralizada em atos do executivo, mas também no judiciário, em reconhecer o não cumprimento de requisitos que caracterizam a função social da propriedade, como bem relata o voto da juíza Heloísa Combat, no Agravo de Instrumento nº 412.307-3, conexo ao de nº 411.529-5, em 25.03.2004 no Tribunal de Alçada de Minas Gerais.

O Poder Judiciário não pode se esquivar de bem exercer sua função de dar concretude aos princípios constitucionais, sob pena de tornar-se conivente com a ineficiência ou inércia do Pode Executivo em dar prosseguimento, com a celeridade que merecem os direitos lesados, à reforma agrária. Submetidos os conflitos agrários ao crivo do Judiciário cumpre se dar efetividade ao direito material, sob pena de negar vigência a própria Constituição Federal. [16]

Em decisão do HC nº 5.574/SP, o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, na 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afirmou que o mérito da reforma agrária "não pode ser confundida, identificada como o esbulho possessório, ou a alteração de limites (...). Não se volta para usurpar a propriedade alheia" [17] pois tem a finalidade diversa, sendo adequada ao ordenamento jurídico como "expressão do direito de cidadania" [18].

O âmbito de defesa da propriedade frente às invasões de terra traz uma posição inversa, desconstituindo não só a legitimidade das ações dos movimentos dos sem terra, bem como da própria finalidade destes, a ponto de considerá-los antidemocráticos, posto que suas diretrizes visam romper com o modelo capitalista, mesclando marxismo e ideais religiosos, como da teologia a libertação.

Uma teologia de cunho marxista confere essa missão ao que se considera ‘povo oprimido’, recortando a realidade dessa maneira, e apresentando uma nova forma de ação política que se concretiza nas invasões de propriedades da CPT e do MST. [19]

Assim, formam uma consciência teológico-política, como denomina Denis Lerrer Rosenfield, que visa acabar com a propriedade privada e implantar o socialismo no país como uma finalidade, inclusive, supra legal, de acordo com essa consciência.

Nessa ótica, a proposta de reforma agrária do MST, visa construir uma nova sociedade: igualitária e socialista. Bem como, difundir valores humanistas de socialistas, onde a terra dever ser entendida como bem da natureza a serviço da propriedade. Buscando "impedir que bancos, empresas estrangeiras, grupos industriais nacionais, que não dependem da agricultura, possuam terras". [20] Visa, também a formação de um Estado Socialista provedor de todas as necessidades dos trabalhadores, ou seja, um programa todo focado na luta de classes, que busca o rompimento total com o atual modelo estatal, como relata Mitsue Morissawa.

As classes dominantes, que controlam os governos e as leis, congregadas pelos interesses dos latifundiários, da burguesia e do capital estrangeiro, possuem ainda uma enorme força para manterem por muito tempo a atual situação. [21]

A defesa da propriedade privada é garantida constitucionalmente no mesmo Art. 5º, incisos XXII, XXIII, XXIV e XXVI que também condiciona sua utilização, em cumprir sua função social nos termos dos Arts. 182, §2º e 186 da CF/88.

O direito de propriedade ganhou contornos de direito fundamental, como é tratado atualmente, com o Iluminismo, no Estado Liberal, fazendo parte dos direitos de primeira dimensão (geração).

A primeira geração de direitos fundamentais consistiu em deveres de abstenção por parte do Estado, no sentido de preservar as liberdades individuais. Dentre os direitos naturais e inalienáveis da pessoa, o mais significativo era a propriedade. No modelo econômico do laissez faire a função estatal primordial era a de defender a segurança do cidadão e de sua propriedade. [22]

No Brasil a análise da propriedade privada deve ser dissociada do paradigma europeu, pela não existência do modelo feudal em nossa história. As propriedades que eram da coroa portuguesa mudaram de mãos, de acordo com o estudo de Laura Beck Varela.

[...] com a gradual apropriação deste patrimônio pelos particulares por três vias: usucapião, carta de sesmarias e posses sobre terras devolutas, com a evidente monopolização das terras por senhores de escravos, formando aquilo que até hoje conhecemos como "latifúndio" [23]

Legalmente, sua tutela nasce no Art. 524 do Código Civil de 1916, dizendo que "A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor dos seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua" [24]. Atualmente sua definição geral é bem semelhante no Art. 1.228 do Código Civil de 2002, porém, seus parágrafos seqüenciais o adéquam as exigências de cumprimento da sua função social, demonstrando o quão atual é a nossa constituição frente às dimensões subseqüentes, observando aspectos da 2ª dimensão de direitos sociais, e de 3ª dimensão referente à direitos de solidariedade e meio ambiente [25].

Ocorre que os meios legais de classificar a propriedade como passível de desapropriação, ou mesmo a feitura desta ingerência sobre esse direito fundamental, pertencem ao Estado, especificamente de análises do INCRA, e não aos indivíduos ou grupos organizados. Portanto qualquer ação que vise substituir a atuação do estado torna-se carente de legitimidade, quiçá de legalidade, visto que é assegurado ao proprietário legítimo todos os meios de permanência e reivindicação de seu imóvel, como brilhantemente asseveram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.

Ao defendermos a intervenção da ordem jurídica sobre a propriedade inadimplente na função social, repugnamos qualquer forma de incitação ao uso da violência ou exercício arbitrário as próprias razões como forma transversa de efetivação da função social, ainda que os esbulhadores estejam carregados de boas intenções quanto à concretização futura de função social. A tutela dos interesses difusos e coletivos dos não-proprietários será incumbida aos legitimados extraordinários, especialmente ao Ministério Público pela via da ação civil pública, com imposição de obrigações de fazer (v. g exigir o fim da subprodutividade), não fazer (cessar o abuso de direito) e dar (indenizar pelos danos) com os diversos meios facultados pela Lei 7.347/85 para efetivação do princípio da função social. [26]

Penalmente, a propriedade é tutelada no título II do Código Penal, entitulado Dos crimes contra o patrimônio, englobando bens móveis e imóveis. Em relação à propriedade imóvel, a principal proteção frente ao tema encontra-se no Art. 161 do Código Penal, o crime de alteração de limites, mas precisamente seu inciso II que trata do esbulho possessório. Ocorre que ao analisar a forma de atuação nas invasões de terras, vemos que o esbulho possessório pode ocorrer somados a diversos outros crimes que podem ir do dano ao cárcere privado, e até uma possível caracterização de quadrilha ou bando frente a reiteradas ações com o mesmo propósito e modus operandi, como conceitua Gabriel Habib ao dizer que "Consiste na reunião permanente e duradoura de quatro ou mais pessoas, ajustadas de forma não eventual à prática de diversos crimes" [27], ou mesmo em organização criminosa.

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Sobre os autores
Bruno Cavalcante Leitão Santos

Bacharel em Direito pela Faculdade de Alagoas. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UCDB/ CPC Marcato (lato sensu). Advogado

José Elio Ventura da Silva

Bacharel em Direito pela Faculdade de Alagoas. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UCDB/ CPC Marcato (lato sensu). Advogado

Heitor Romero Marques

Graduado em Ciências e Pedagogia, especialista em Filosofia e Historia, Mestre em Educação (UCDB) e Doutor em Desarrollo Local y PlanteamientoTerritorial pela Universidade Complutense de Madrid. Orientador do Trabalho de Conclusão de Curso de pós-graduação lato sensu da UCDB/CPC Marcato.

Maucir Paulleti

Professor orientador. Bacharel em Direito pela UCDB. Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pela UCDB. Mestre em Direito Econômico pela Universidade Gama Filho-RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Bruno Cavalcante Leitão ; SILVA, José Elio Ventura et al. A ação dos movimentos dos sem terra.: Ofensa a propriedade privada ou busca pela sua função social?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2859, 30 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19013. Acesso em: 25 dez. 2024.

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