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Análise crítica sobre o entendimento de Joaquim Barbosa sobre ação afirmativa e o princípio constitucional da igualdade

07/05/2011 às 14:42
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RESUMO: O presente artigo analisará o Capítulo II (Ação afirmativa: renúncia à neutralidade estatal em matéria de oportunidade de educação e emprego) e o Capítulo III (A base filosófico-constitucional das ações afirmativas) do livro Ação Afirmativa & o Princípio Constitucional da Igualdade (O Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA) de Joaquim B. Barbosa Gomes. Serão demonstradas as idéias principais apresentadas pelo autor, sendo que ao final será feita uma breve análise crítica sobre seu o pensamento.

PALAVRAS-CHAVE: AÇÃO AFIRMATIVA. CONSTITUCIONALIDADE. JOAQUIM BARBOSA.


Considerações iniciais

No Capítulo II (Ação afirmativa: renúncia à neutralidade estatal em matéria de oportunidade de educação e emprego) e o no Capítulo III (A base filosófico-constitucional das ações afirmativas) do livro Ação Afirmativa & o Princípio Constitucional da Igualdade (O Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA) [01], Joaquim B. Barbosa Gomes demonstra qual sua posição com relação ao uso da ação afirmativa, no que tange à sua constitucionalidade.

Serão demonstradas as idéias principais apresentadas pelo autor, sendo que ao final será feita uma breve análise crítica sobre seu o pensamento.


1. Análise do texto: Ação afirmativa: renúncia à neutralidade estatal em matéria de oportunidade em educação e emprego de Joaquim B. Barbosa Gomes.

O autor afirma que a sociedade liberal-capitalista ocidental está respaldada no conceito de neutralidade estatal. No caso do direito, tal neutralidade ficou manifestada através da posição estatal de apenas introduzir nas Constituições regras assegurando igualdade formal perante a lei, sem realizar procedimentos capazes de implementar tal igualdade.

Diante do fracasso da posição de neutralidade estatal, visto que a mera estipulação de direitos legais não foi capaz de transformar a sociedade, ficando cada vez mais patente que somente a atuação estatal poderia reverter o quadro social de desigualdade, ocorreu o surgimento das ações afirmativas. Tais ações foram concebidas, inicialmente, nos Estados Unidos, sendo que posteriormente foram adotadas em países europeus, asiáticos e africanos. No caso do Brasil, já ocorreu a introdução do tema em nível acadêmico, já tendo sido adotado por algumas Universidade.

Dessa forma, o Estado passou a considerar os fatores ligados ao sexo, raça e cor, ao adotar a contratação de funcionários ou regular contratação alheia, bem como durante o acesso aos estabelecimentos educacionais.

O autor apresenta a definição, objetivos e classificações das ações afirmativas.

No que tange ao conceito, assevera que, inicialmente, as ações afirmativas eram definidas como "um mero encorajamento por parte do Estado a que as pessoas com poder decisório nas áreas públicas e privadas levassem em consideração, nas suas decisões relativas a temas sensíveis como o acesso à educação e ao mercado de trabalho" [02]. Neste momento, as ações afirmativas pretendiam que as escolas e as empresas tivessem em sua composição a representação de cada grupo da sociedade.

Por volta da década de 60 e início da década de 70, ocorreu uma mudança do conceito das ações afirmativas, as quais passaram a ser associadas à idéia de realização da igualdade de oportunidades, através da imposição de quotas rígidas de acesso a determinados setores do mercado de trabalho e instituições educacionais.

Atualmente, as ações afirmativas foram definidas pelo referido autor como sendo um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação praticada no passado, sendo que o objetivo seria a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como educação e o emprego.

Em razão disso, ocorrendo uma atuação estatal através de políticas e mecanismos de inclusão, ou seja, o Estado deixou de utilizar apenas repressoras

Ao analisar os objetivos das ações afirmativas, o autor ressalta que este objetivo, além de refletir o ideal de concretização de igualdade de oportunidades, representaria a realização de transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, a fim de retirar do imaginário coletivo a concepção de que uma "raça" é superior a outra.

As políticas afirmativas representam o reconhecimento oficial de perenidade do racismo. Dessa forma, a ação afirmativa teria como escopo coibir a discriminação atual e eliminar os efeitos persistentes da discriminação.

Além disso, as ações afirmativas teriam o objetivo de implantar certas diversidades através de uma maior representatividade dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada.

O autor ressalta que é um erro estratégico não oferecer oportunidades efetivas de educação e de emprego, considerando que no futuro, tal ausência pode prejudicar a competitividade e a produtividade econômica do país.

Com relação à classificação das ações afirmativas, BARBOSA afirma que são conhecidos dois tipos de políticas públicas neste sentido: o primeiro seria a adoção de normas constitucionais e infraconstitucionais com o fim de coibir a discriminação e o segundo tipo seria a adoção de medidas de promoção, afirmação ou restauração.

Ao tratar sobre as normas meramente proibitivas de discriminação, o autor afirma que nos Estados Unidos, inicialmente, existia uma concepção de que o Estado deveria ser abstencionista. Posteriormente, o Congresso e a Corte Suprema entenderam que as regras antidiscriminação eram aplicáveis aos atos públicos e aos atos privados. Além disso, tais Poderes entenderam que a proibição de discriminação abrangia todo tipo de discriminação, e não somente o tipo de discriminação existente na época de promulgação da Constituição.

O autor afirma que, em muitos casos, o Poder Judiciário confere natureza promocional a uma norma que tinha, em princípio, intuitos meramente proibitivos.

No que se refere às políticas governamentais positivas de combate à discriminação, BARBOSA afirma que tais ações foram criadas por iniciativa do Poder Executivo Federal, disseminando-se por todo aparato estatal. O autor analisa as ações afirmativas decorrentes de políticas públicas concebidas pelo Poder Executivo, ações afirmativas decorrentes de ação do Poder Judiciário, e políticas de combate à discriminação resultante de atos de iniciativa privada.

Ao tratar sobre as ações afirmativas decorrentes de políticas públicas concebidas pelo Poder Executivo, o autor alega que as ações afirmativas são aplicadas via contratos da Administração e através de adoção de medidas no âmbito do ensino educacional, a fim de possibilitar o acesso das minorias.

No caso do Poder Judiciário, a atuação desse poder pode assumir caráter redistributivo e/ou reparador, sendo que o comando legal autoriza o Poder Judiciário, ao constatar a existência de discriminação intencional em uma determinada empresa, determinar a cessação de tal discriminação, impondo, ainda, medida afirmativa. Além disso, o Poder Judiciário pode determinar o estabelecimento de quotas, caso se faça necessário.

Em virtude da discriminação não ocorrer somente através dos atos do Poder Público, o autor afirma que a Corte Suprema dos EUA entendeu que os particulares devem adotar medida com o fim de corrigir as injustiças e discriminações ocorridas no passado, através de medidas que resultem em integração e promoção dos membros da minoria. Tais medidas podem ter caráter proibitivo e caráter corretivo, promocional e redistributivo.


2. Análise do texto: A base filosófico-constitucional das ações afirmativas de Joaquim B. Barbosa Gomes.

O autor afirma que o debate sobre o princípio constitucional da igualdade, o qual respalda a ação afirmativa, possui os seguintes postulados filosóficos: justiça compensatória e justiça distributiva.

Segundo o autor, a justiça compensatória deriva da necessidade de corrigir o efeito perverso da discriminação ocorrida no passado, sendo aplicada para as sociedades que adotaram políticas de subjugação de um ou vários grupos ou categorias de pessoas por outras. Tal justiça teria natureza restauradora.

Em virtude dos efeitos mais negativos serem visualizados no campo da educação, a justiça compensatória visa aumentar as chances dos membros que pertencem a grupos minoritários de obterem empregos e conquistarem posições de prestígios que elas obteriam caso não existisse discriminação.

O autor ressalta que a noção de justiça compensatória não é isenta de falhas, pois o raciocínio jurídico vincula a noção de reparação de danos à relação de causa e efeito. Somente quem sofre diretamente o dano teria legitimidade para postular a respectiva compensação. Nessa linha, a compensação somente poderia ser reivindicada de quem efetivamente praticou o ato ilícito.


3. Idéias centrais do autor

O autor ressalta que as ações afirmativas são mais convincentes quando estão respaldadas no conceito de justiça distributiva, a qual remonta a Aristóteles, e visa promover a redistribuição equânime dos ônus, direitos, vantagens, riquezas e outros importantes bens e benefícios.

Ressalta, ainda, que entre os partidários da tese distributiva, alguns vislumbram um substrato utilitarista. Portanto, a redistribuição de benefícios e ônus na sociedade tem o inegável efeito de promover o bem-estar.

Argumenta o autor que Dworkin em sua obra Taking Rights Seriously, com base em argumentos utilitaristas, entende que o objetivo imediato das ações afirmativas seria aumentar o número de certas raças em certas posições e profissões, sendo que o objetivo final seria reduzir o grau de consciência racial da sociedade.

Os críticos da tese da justiça distributiva argumentam que nem sempre é possível identificar, dentre as diversas iniquidades sociais, quais decorreriam da discriminação racial ou sexual, e quais seriam resultantes de outros fatores.

O autor menciona que as ações afirmativas também encontram respaldo nas vertentes moderadas do multiculturalismo. Dessa forma, apresenta o entendimento de Charles Taylor, o qual entende que a identidade do ser humano é parcialmente moldada a partir do seu reconhecimento, razão pela qual o não reconhecimento ou o mau reconhecimento pode ser uma forma de opressão. Por tais motivos, Taylor defende que dar o devido reconhecimento às pessoas e grupos, bem como às suas respectivas identidades culturais, representa uma medida que atende a uma necessidade humana vital.

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Ao tratar sobre a problemática das ações afirmativas no plano constitucional, o autor menciona algumas questões importantes. A primeira é representada pela posição antagônica entre normas proibitivas versus normas integrativas ou afirmativas, sendo que o autor ressalta que já é pacífico o entendimento de que o combate da discriminação não é eficaz apenas através de normas proibitivas, sendo necessária a adoção de medidas afirmativas.

Contudo, agir positivamente implica na adoção de critérios e classificações consideradas "suspeitas", mas o autor assevera que o direito norte-americano já rompeu com essa suposta ortodoxia constitucional, ao admitir que, embora os critérios e classificações sejam em princípio "suspeitos" sob o prisma constitucional, tais critérios são constitucionais quando tenha o fim de corrigir injustiças e promover a igualdade. Portanto, o autor entende que o uso de critérios raciais na implementação de políticas só é viável quando utilizado com intuito benéfico.

Outra questão constitucional seria a do entrave existente entre direito individual versus direito coletivo ou de grupo, sobre este tema o autor assevera que o direito constitucional e o infraconstitucional deve ser compreendido de acordo com a perspectiva individual e a coletiva, pois tais posturas filosóficas seriam complementares.

Com relação à questão existente entre igualdade formal ou procedimental versus igualdade de resultados ou material, o autor menciona que a teoria constitucional clássica herdeira do pensamento de Locke, Rousseau e Montesquieu é responsável pela concepção meramente formal de igualdade. O autor ressalta que as nações que adotaram o referido entendimento de igualdade foram as que tiveram maior índice de injustiça social.

Sobre a questão da discriminação na esfera privada e a discriminação na esfera pública, o autor ressalva a importância da intervenção do Poder Judiciário, considerando que o entendimento que restringia a ação inibitória do Estado acabou resultando num encorajamento à discriminação de caráter privado.

Em suma, o autor afirma ter sido importante o papel do Judiciário ao redefinir a doutrina das ações afirmativas, na medida em que classificou como atividade pública ou de interesse público a inúmeros empreendimentos de índole privada, mas que tinham indício de exercício de autoridade estatal, seja na sua operacionalização, seja na sua regulamentação.

Contudo, nas três últimas décadas, o autor defende que ocorreu pequeno retrocesso, ao ser atribuído caráter privado a atividades anteriormente consideradas como públicas.

Por fim, o autor afirma que a doutrina da "ação governamental" vem tendo alcance reduzido através de decisões judiciais, bem como mediante atos do Congresso que vem outorgando aos órgãos competentes poderes necessários para o combate à discriminação praticada na esfera privada.


4. Análise crítica sobre o tema

Com relação aos argumentos dos partidários da tese distributiva, que vislumbram um substrato utilitarista, entendo que a prática da ação afirmativa tem seu fundamento na justiça material, mesmo que em alguns casos a redistribuição de benefícios não promova o bem-estar geral. Por exemplo, uma faculdade pode adotar o sistema de quotas para negros, mas não alcance metas satisfatórias que demonstrem que tais medidas realmente são eficazes.

Tal raciocínio não significa afirmar que a ação afirmativa não deve ter um fim benéfico, apenas é necessário entender que seu fundamento reside na necessidade de ser aplicada justiça, pois a ação afirmativa existe justamente para promover a justiça material, através da concessão de condições igualitárias de acesso ao sistema educacional em favor dos grupos minoritários.

Para demonstrar que a justiça é o fundamento superior das ações afirmativas, cabe mencionar, como exemplo, que no caso de uma Universidade ou empresa que adote tais medidas não conseguir obter resultados satisfatórios, sendo a ação afirmativa ineficaz para o fim de almeja, isto não significa que as ações afirmativas perdem seu fundamento. Ao contrário, isto demonstra que o Estado deve adotar medidas capazes de remover as falhas existentes para que as medidas referidas tenham resultado positivo para a sociedade, sendo que as medidas de ação afirmativa devem permanecer vigorando durante o período necessário.

Neste sentido, também discordo de Dworkin, citado por Joaquim Barbosa, uma vez que aquele autor entende que os programas de ação afirmativa utilizam critérios racialmente explícitos porque sue objetivo imediato seria aumentar o número de membros de certas raças em profissões, sendo que seu objetivo mediato seria reduzir o grau em que a sociedade norte-americana é racialmente consciente. Contudo, pensar de tal forma significa utilizar os estudantes negros como meios para a satisfação de um fim alheio (modificar o grau em que a sociedade norte-americana é racialmente consciente).

Não defendo que a admissão de negros na Universidade não deve resultar em benefício para a sociedade, mas entendo que tais benefícios não consistem apenas na mudança de mentalidade dos norte-americanos, nem tampouco no pensamento de que tal ingresso reduzirá o sentimento de frustração dos negros.

Na realidade, a noção de justiça situa-se num plano superior ao da eficácia, mesmo porque um sistema pode ser eficaz e, ao mesmo tempo, injusto. Condicionar a legalidade e constitucionalidade das ações afirmativas à sua eficácia significa restringir o seu alcance, pois através de uma pesquisa que demonstre que alguma ação afirmativa não está produzindo resultados satisfatórios, tal medida seria julgada inconstitucional.

Portanto, a meu ver é completamente equivocada a concepção de que a ação afirmativa precisa estar vinculada a um resultado útil, mesmo porque as ações afirmativas podem não ter resultado imediato, mas isto não significa que no decorrer dos anos possa ser útil e trazer benefícios coletivos, os quais somente serão conhecidos se ação afirmativa não tiver seu alcance restringido.


Considerações finais.

As ações afirmativas são legais e constitucionais por dar tratamento diferenciado aos que se situam em posição desigual, sendo que este seria o objetivo imediato.

Afirmar que o objetivo imediato das ações afirmativas seria aumentar o número de certas raças em profissões não releva os objetivos de tais ações, que visam justamente concretizar o ideal de igualdade de acesso a bens fundamentais pelas classes menos favorecidas.

Por fim, a maior contribuição do autor é percebida na sua afirmação de que a visão da igualdade material vem complementar a visão meramente formal. Neste sentido, foi decisiva uma mudança da postura do Estado que teve que abandonar a neutralidade para adotar uma postura ativa, através da adoção de ações com o intuito de implementar no plano fático a igualdade material, uma vez que a igualdade formal, por si só, não foi capaz de efetivar a igualdade pretendida.

Por fim, coaduno com o entendimento do autor sobre a necessidade de se romper a rigidez entre a esfera privada e a pública em matéria de discriminação, visto que o princípio constitucional da igualdade vincula não somente o Estado, como também os particulares.


Referências bibliográficas

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa & o Princípio Constitucional da Igualdade (O Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA). São Paulo: Renovar, 2001.


Notas

  1. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa & o Princípio Constitucional da Igualdade (O Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA). São Paulo: Renovar, 2001. P. 35-90.
  2. Ibidem. p. 39.
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Sobre a autora
Urá Lobato Martins

Mestra em direito pela Universidade Federal do Pará. Advogada. Professora da Faculdade de Balsas (UNIBALSAS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Urá Lobato. Análise crítica sobre o entendimento de Joaquim Barbosa sobre ação afirmativa e o princípio constitucional da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2866, 7 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19063. Acesso em: 28 mar. 2024.

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