A tecnologia científica relativa à saúde vem apresentando um vigoroso avanço nos últimos anos. As pesquisas nessa área têm por objetivo principal o prolongamento e a melhoria da qualidade de vida do ser humano. A cada dia, surgem diversas notícias em todo mundo, relatando a utilização de novos métodos investigativos, técnicas científicas, descobertas de novos meios de tratamento, surgimento de medicamentos mais eficazes, possibilitando o controle e a cura de diversas doenças.
No campo da engenharia genética, houve o mapeamento do genoma humano. Entre as vantagens advindas da conclusão desse projeto, pode-se citar a possibilidade de diagnóstico antes do surgimento dos sintomas e o tratamento de pacientes com moléstias graves de acordo com sua constituição genética. Se por esse lado, essas conquistas causam uma maior esperança para a humanidade, por outro se cria uma série de contradições que devem ser analisadas responsavelmente com a finalidade de se manter o equilíbrio e o bem-estar da própria espécie humana, pois, o que se percebe, é que a ciência, para conseguir propiciar a melhora e o prolongamento da vida humana, tem-se utilizado da manipulação genética, realizando experimentos inusitados, que, por vezes, abrem discussões em relação a ética e o possível ferimento a dignidade da pessoa humana, o que exige um profundo debate acerca das consequências jurídicas de tais eventos, sem falar dos resultados negativos do acesso a informação genética de um indivíduo, uma vez podem gerar discriminações, podendo impossibilitar que alguém consiga emprego ou seguro de saúde, diante de suas condições genéticas.
Não se trata, porém, de condenar esses progressos. Pelo contrário, devem ser bem recebidos pela sociedade. Na prática, a manipulação genética já apresenta resultados admiráveis e promete muito mais. Mas é necessário, avaliar como tais avanços têm sido conduzidos e que tipo de consequências e prejuízos essas pesquisas poderão acarretar.
Para realizar essa análise, devemos ter uma clara compreensão do que é moralidade, e por que devemos ser guiados por princípios eticamente válidos, como a dignidade da pessoa humana, para se estabelecer as condutas aceitáveis relativas ao uso e acesso do genoma humano.
Tendo em vista essas premissas, é imposto o debate acerca de como esses avanços estão sendo realizados, as implicações desses experimentos e a necessidade de reflexão acerca da vida humana e dos valores morais a ela inerentes.
Em um primeiro momento, cumpre asseverar que não se pode confundir Ética com Moral, pois são termos distintos com objetos diferentes.
A palavra moral tem origem do latim mos ou mores (costume ou costumes) e quer dizer "algo que seja habitual para um povo". Segundo Ivan de Oliveira Silva (2008. p.62): "moral é a regulação dos valores/comportamentos agregados em um contexto próprio e entendidos como adequados a um determinado segmento social".
Isso significa que o ser humano tem condições de conferir a determinadas coisas ou ações a valoração que as qualifica como boas, más, úteis ou belas, propiciando a formação de uma escala valorativa, que indicará os valores que entende compatíveis para si e para a sociedade.
Em razão disso, podemos afirmar que a moral não é uma realidade unitária ou indiferenciada, as condutas morais não são imutáveis. Dessa maneira, pode-se distinguir diversas esferas e dimensões dentro da moral, já que ela pode variar.
Um desses sectores tem por objeto as condutas morais particulares, que podem ser compreendidas como um conjunto diversificado que pautam a atividade de certos grupos fechados de pessoas, definidos em função da profissão que exercem. Insere-se nessa dimensão, a bioética, e, por conseguinte, a discussão envolvendo as investigações científicas e tecnológicas sobre o patrimônio genético humano.
Como dito, a moral não é una, pode existir diversos padrões morais aceitos pela sociedade, mas sua valorização dependerá do momento histórico e da realidade subjetiva presente no comportamento do praticante da conduta. Por isso, a concepção de atos morais relativos ao genoma humano pode ser diferente de acordo com a sociedade e do contexto histórico histórico-cultural em que se estiver situado.
O ser humano se identifica de acordo com o tempo e com o espaço em que se estabelece, sem olvidar a influência de suas relações com outros seres humanos e com a natureza, o que ocasiona, assim, a variação da cultura, da civilização, e consequentemente da moral.
Atualmente, o uso do patrimônio genético humano tem levantado questões que futuramente poderão estar ultrapassadas. Se essas mesmas problemáticas, entretanto, fossem enfrentadas na Europa, na época da Segunda Guerra Mundial, momento em que os direitos relativos à dignidade da pessoa humana estavam bastante restringidos, as respostas poderiam autorizar, como de fato ocorreu, pesquisas nefastas, algumas até tentando provar a concepção de "raça pura", pela eugenia, sob a égide de que os fins justificam os meios.
Adotamos, desse modo, uma posição relativista quanto à moral, entendendo-a como mutável. Contudo, é importante ressaltar que essa concepção não pode permitir a limitação aos princípios que são inerentes a condição humana, como o direito a vida, a dignidade e a personalidade. Daí, porque defendemos que qualquer interferência no genoma humano que desrespeita esses valores, seja qual for o contexto envolvido, deve ser refutada.
Quanto à ética, esta pode ser considerada uma ciência com princípios próprios e objeto definido. Ela estuda a moral e suas diversas implicações, analisando os costumes consagrados e informados por determinado grupo social.
Nalini (2008) afirma que a ética é uma disciplina normativa, não no sentido de um instituto como base para a criação de normas, mas sim por descobri-las e elucidá-las, o que conduz para o aprimoramento e desenvolvimento do sentido moral no comportamento humano e como isso influencia a suas ações.
De modo prático, pode-se estabelecer que a conduta do ser humano, e sua preocupação em agir de certo modo ou de outro, é uma atitude pautada pela moral. Enquanto a investigação da decisão que originou essa ação, a responsabilidade, e as possibilidades implicadas envolvem um problema, cujo estudo é objeto da ética.
Esse termo, ética, tem origem grega, ethos, que significa "modo de ser" ou "caráter". Ela analisa o ser humano com a perspectiva de "ser" ou da realização desse "ser". Consequentemente, para se conhecer o sentido da vida humana é preciso examinar o seu conteúdo, e tal estudo não pode ser feito de modo estático, mas de maneira dinâmica, prática, tendo em vista o espaço e o tempo concretos (Alárcon, 2004).
É diante de determinada situação fática que procuramos compreender a conduta do ser humano, através da descrição e de julgamentos que exercemos a respeito do fenômeno, nos permitindo assimilar que o fato realizado é verdadeiro. A partir desse juízo de valor, efetuamos outros juízos, tentando relacioná-lo com outras conexões já constituídas. Não basta entender como os fatos se produzem, mas é necessário observar a função de cada um no conjunto e as razões da ordem já estabelecidas. Isto possibilita julgamentos mais seguros, pois nos permite entender, com mais clareza, o sentido das partes e do todo e o modo como convergem, para assim podermos situar se essa conduta está de acordo ou não com determinado valor.
Uma dificuldade é estabelecer parâmetros acerca dos critérios pelos quais conferimos a conduta humana este ou aquele valor. O problema é saber se é possível estabelecer condições gerais necessárias para determinar o valor ético das ações. Isso acontece, porque há uma relatividade das coisas humanas e do que se pode conhecer sobre delas, o que ocasiona as oscilações que caracterizam os juízos morais. Por esse lado, tendo em vista que as ações humanas acontecem sempre numa confluência complexa de circunstâncias, no meio das quais é necessário discernir o modo correto de agir, um dos principais problemas que a ética tem que enfrentar é reconhecer esses valores e mediá-los, distinguindo as condutas moralmente aceitáveis das que não são, tentando se alcançar um senso moral comum, posto que os juízos de valor também se remetem a generalidade.
Desse ponto de vista, mais universal, a ética vai tratar da natureza humana como um todo, analisando os comportamentos, ideias e valores contidos em todas as sociedades, logo como pertencentes a todos os seres humanos.
Qualquer ação humana que possa refletir sobre determinadas pessoas ou sobre o meio ambiente em que está inserido deve implicar o reconhecimento de valores e como esses poderão ser afetados. A própria pessoa humana é um desses valores, considerando as peculiaridades que a constituem como as necessidades materiais, físicas e espirituais e, principalmente, um valor que é inseparável da condição humana, que é a vida. A prática de atos que afetem ou que restrinja essa natureza é prejudicial, pois reduz o homem a condição de coisa, retirando sua dignidade. Isso vale, inclusive, para qualquer atividade científica que tenha como fim último, a melhoria da qualidade de vida do ser humano.
Desse modo, reconhecendo a vida como um valor, foi que se chegou ao costume de respeitá-la, incorporando isso como uma conduta moralmente aceita em praticamente todos os povos. Nessa esteira, a ONU, por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada em 1966, e, através do Pacto de Direitos Humanos, aprovado em 1966, proclamou a dignidade como essencial e intrínseca a condição humana.
Nesse sentido, podemos entender que a ética da vida, corresponde, além do direito a sobrevivência, o direito a viver com dignidade.
Dessa forma, concluímos que o ser humano pode ser visto como uma entidade dotada de valores, que se autodetermina em razão destes, entre esses está o direito a vida e a dignidade, que devem ser protegidos. No entanto, quando se chega a essa ilação, é necessário formular outras questões, que devem ser analisadas, de acordo com o que pode ocorrer no caso concreto. É que, se entender o ser humano como entidade dotada de razão e valores, como se poderá conceber a proteção jurídica ao embrião, ao feto, aos deficientes mentais, e outros indivíduos que não possuem autodeterminação?
A resposta se encontra, precisamente, em saber que o conceito de pessoa não é ontológico, mas cultural. Atribuímos à dignidade da pessoa, de forma criteriosa, aos seres que entendemos merecedores, em virtude da proximidade que intuímos desfrutar com elas, embora não satisfaçam a definição de pessoa, como ser humano racional, livre, autônomo e responsável.
Assim sendo, não se pode recusar a humanidade ao bárbaro, ao homem em coma profundo, ao nascituro e aos doentes mentais. A vida humana é um bem que antecede a própria concepção de Direito, que a ordem jurídica deve respeitar.
Logo, todos os seres humanos devem estar abarcados pela proteção jurídica fundamentada na dignidade da pessoa humana.
Diante disso, verificamos a preocupação em discutir os temas ligados aos limites do comportamento. Quando o assunto concerne ao ferimento da vida humana e da dignidade da pessoa humana, a discussão a respeito da ética deve estar presente, principalmente em experiências que envolvem a criação ou a destruição de seres vivos, mesmo que para fins terapêuticos.
Nesse diapasão, a genética se utiliza dos diversos princípios e ideais da ética para buscar as soluções de ordem prática, resolvendo os dilemas morais em cada situação específica.
Nesse viés, com a finalidade de se evitar práticas abusivas na biociência e também tratando sobre a responsabilidade dos profissionais da área de Medicina, que surgiu a bioética.
A bioética pode ser definida como o estudo sistemático das dimensões morais que envolvem as ciências da vida. Sua origem advém da obra do oncologista norte-americano Von Rensselaer Potter, autor da obra Bioética: ponte para futuro. No entanto o foco desse primeiro estudo era a defesa da ecologia e como o ser humano poderia se comprometer com o ecossistema.
A bioética é uma ciência voltada no respeito à dignidade da pessoa humana. Conti (2004) retrata que "Sua finalidade é harmonizar o uso das ciências biomédicas e suas tecnologias com os direitos humanos". Em vista disso, podemos concebê-la como uma ciência de cunho personalista, não permitindo qualquer intervenção no corpo humano que não redunde no bem da pessoa, subordinando, assim, as exigências ético-jurídicas dos direitos humanos.
Nesses termos, Maria Helena (2009) assevera:
"A bioética deverá ser um estudo deontológico, que proporcione diretrizes morais para o agir humano diante dos dilemas levantados pela biomedicina, que giram em torno dos direitos entre a vida e a morte, da liberdade da mãe, do futuro ser gerado artificialmente, da possibilidade de doar ou de dispor do próprio corpo, da investigação científica e da necessidade de preservação de direitos das pessoas envolvidas e das gerações futuras."
O seu objetivo básico é a tutela da vida humana. A Constituição já consagra a inviolabilidade da vida humana contra todas as ameaças concretas e virtuais. O início da vida é a concepção, é esse o momento adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro para a configuração da vida, sendo esta a tese defendida pelo Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.
Uma questão notadamente presente nas definições da bioética é sua interdisciplinaridade, pois esse ramo científico converge-se diversas perspectivas. Em razão disso, essa ciência tem se tornado um das matérias mais abrangentes da ciência, o que tem suscitado diversos autores a classificarem a disciplina.
A bioética divide-se em duas variantes terminológicas: a macrobioética, que trata dos problemas éticos relacionados ao homem, a partir da perspectiva de ente inserido em um ecossistema e a microbioética que se preocupa com as relações dos profissionais da área médica, em um contexto médico paciente.
Para Alárcon (2004), essa disciplina divide-se em três grupos temáticos distintos: a) nascimento, desenvolvimento e transformação da vida; b) relações humanas interespecíficas e a relação saúde-doença; e c) as relações interespecíficas e o relacionamento entre o homem e o ambiente.
Já Maria Helena Diniz (2009) classifica do seguinte modo: a) bioética das situações persistentes (se ocupa de temas como aborto, eutanásia, discriminação social) e b) bioética das situações emergentes (trata da contradição entre o progresso biomédico e os limites da dignidade da pessoa humana).
Grande número de temas sociais foi introduzido na abrangência temática da bioética, tais como saúde pública, alocação de recursos em saúde, saúde da mulher, questões populacionais, entre outros. A engenharia genética, mais especificamente, para o presente estudo, o patrimônio genético humano, também é um dos temas que pode ser situado como objeto de discussão da bioética.
A discussão bioética relacionada ao genoma humano envolve as questões acerca da proteção da dignidade da pessoa humana em contextos relacionados ao uso indiscriminado da manipulação genética, a privacidade dessa informação genética e o justo uso dessa informação. Mais especificamente, a bioética ocupa-se de diversas situações de interesse a sociedade, como o início e o fim da vida humana, as pesquisas em seres humanos, técnicas de engenharia genética, terapias gênicas, aborto eugênico, limites da manipulação genética, interferência no código genético para eliminação de doenças, limites a alterações gênicas das células germinais, eleição do sexo do descendente antes da concepção, clonagem de seres humanos, esterilização compulsória, utilização de DNA recombinante, uso de células-tronco, a natureza humana dos embriões, discriminação com fundamento no genótipo do indivíduo.
O Direito deve estar atento a qualquer prática que cause prejuízo ao genoma humano, com a criação de diretrizes e normas que possam, eficazmente, proteger o ser humano, tanto de um ponto de vista individual, como agente passivo do experimento que se utilizou dos seus genes, como do ponto de vista social, em relação ao prejuízo que o acesso a essa informação pela sociedade poderá provocar.
No entanto, quando se leva essas questões ao mundo jurídico, forma-se uma série de dúvidas, em razão do descompasso pela anomia ou mesmo pela incapacidade das normas responderem satisfatoriamente o que apregoa os princípios constitucionais.
Como sabemos, o texto constitucional abriga um conjunto de valores considerados fundamentais, definidos como direitos a serem protegidos pelo Estado. A dignidade da pessoa humana é um desses valores e constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, estando inserido na Constituição, no seu art. 1º, inciso III, conforme se pode inferir:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Município e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
A leitura desse artigo permite-nos deduzir que o constituinte buscou assinalar, de forma inequívoca, a sua intenção de outorgar os princípios fundamentais à ordem constitucional brasileira, servindo de referência para a interpretação e a integração das normas. Nessa medida, a aplicabilidade desses fundamentos no nosso ordenamento deve ser feita de forma direta, não necessitando de uma atuação do legislador para dar efetividade a esses preceitos. Corroborando com esse entendimento, Ingo Sarlet (2004):
"Num primeiro momento – convém frisá-lo, a qualificação da diginidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza que o art. 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas ( embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocadamente carregado de eficácia, alcançando, portanto – tal como sinalou Benda – a condição de valor jurídico fundamental da comunidade."
Reconhecendo a plena eficácia na ordem constitucional do caráter jurídico-normativo da dignidade da pessoa humana, é que se impõe que seja adotado um critério que pondere esse princípio com outros, como o da liberdade e livre iniciativa, estabelecendo diretrizes que norteiem a proteção ao patrimônio genético humano. Com efeito, vale frisar, necessário ainda que se busque, com fundamento nesse direito, a proteção contra novas ofensas e ameaças, a princípio, não expressamente observadas pelo legislador constitucional, como os excessos em sede de uso e acesso ao genoma humano, fundamentando também a formação do direito à identidade genética, que ainda não era contemplado diretamente no nosso direito constitucional.
Cumpre ressaltar, que a proteção a dignidade da pessoa humana é considerado um dos alicerces das conjecturas e balizamentos da bioética, pois reconhece o homem como o destinatário dos esforços das ciências médicas. Para tanto, qualquer atividade científica relativa à saúde humana deve considerar o ser humano como um fim em si mesmo e não como meio para se atingir determinado objetivo ou para interesses escusos.
Isso, no entanto, não é exclusividade da bioética. Todas as leis jurídicas exprimem regras de condutas voltadas ao Homem. Isso que diferencia a ciência jurídica, composta sempre por um enunciado que indica um dever ser, das ciências naturais, onde o objeto é o próprio ser, o que torna os seus preceitos invioláveis, estáticos, só podendo ser alterados por outra regra científica que a substitua. Contrariando essa concepção, as regras jurídicas podem, embora não devem, ser violadas, e o seu desrespeito não implica um substituição imediata por outra lei jurídica.
"O Direito encontra no Homem o seu autor e o seu destinatário" (Otero, 1998), por conseguinte, o direito deve traduzir os valores inerentes à condição humana, o seu conteúdo deve estar vinculado necessariamente a essa dimensão axiológica, projetando, no campo de sua aplicação, para o resguardo da vida humana e da sua dignidade.
O instituto da dignidade da pessoa humana se identifica como o núcleo essencial dos direitos fundamentais, uma vez que, por possuir um caráter protetivo, esse princípio acaba constituindo um dos critérios para aferição de constitucionalidade de qualquer medida supressiva ou restritiva, que possa causar algum retrocesso em matéria de direitos fundamentais.
Isso posto, verifica-se que o princípio em comento pode ser observado sob duas funções: a primeira, como integrante dos direito fundamentais; a segunda, constatando que esse princípio se caracteriza como núcleo essencial dos direitos fundamentais, será o elemento que protege esses direitos das medidas que visem restringi-los.
Por isso, justifica-se a adoção de medidas, pelo Estado, que visem garantir a efetividade desses preceitos, promovendo a qualidade de vida e a igualdade real entre as pessoas, orientando a criação de normas no sentido de limitar ou excluir qualquer disposição que possa arriscar a conservação desses direitos e otimizando o alcance daquelas que estão em consonância com os direitos fundamentais.
A vida humana, nesse aspecto, deve ser entendida como um bem intangível que possui valor absoluto, jamais podendo ser legitimada qualquer conduta que vulnere ou coloque-a em risco, devendo ser protegida contra qualquer agente, até mesmo contra seu próprio titular, pois é um direito irrenunciável. Nesta senda, o Estado estará autorizado e obrigado a intervir em face dessas pessoas, mesmo que ajam voluntariamente.
Como dito, as normas e os atos normativos praticados pelo Estado devem atender a esse postulado, assegurando as condições necessárias para o respeito das pessoas quanto a sua vida, existência, integridade, liberdade e moral. Nesse sentido, fala-se em biodireito, constituindo um ramo do direito que toma por fonte imediata a bioética.
Para Maria Helena Diniz (2009), se faz necessário uma "biologização" ou "medicalização" da lei, por não ser possível desvincular as "ciências da vida" do direito.
Nessa óptica, reconhece-se o ser humano como o fim do direito, impondo o respeito a essa diretriz, inclusive aos avanços científicos, pois a sociedade, como relata Alárcon (2004), arrima-se a este e a outros princípios, valores e categorias, que são obrigatórios por representar o conteúdo do grau da civilização humana.
Nesse sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana vincula-se a sobrevivência da espécie. Deve ser inserido nesse conteúdo, a preservação da pluralidade e da heterogeneidade da espécie humana, pois é eticamente inadmissível a imposição, por uma vontade preponderante, de um indivíduo geneticamente ideal, sem "defeitos", o que representaria um risco ao complexo de diversidades que caracteriza o gênero humano.
Por isso, conclui-se que permitir deliberadamente as alterações em genes humanos pode pôr em risco a própria existência da espécie, diante na inexistência de base ôntica na qual a dignidade pudesse se estabelecer.
No entanto, todos esses posicionamentos contra a manipulação genética vêm de encontro, justamente, com uma das possibilidades que a interferência no genoma humano pode trazer, que é, por meio da terapia gênica, corrigir diversos defeitos e curar as doenças ocasionadas pelos genes.
Alguns cientistas, por vezes, exaltam a relação risco-benefício nas experimentações perigosas, argumentando que tais pesquisas devem ser permitidas, uma vez que os benefícios para a humanidade sobrepujam os riscos. Um problema que surge com a aplicação desse entendimento é que os termos "risco" e "benefício" não estão claramente definidos e podem ser subjetivamente interpretadas pelo pesquisador
Para solucionar esse problema, entendemos que a questão da avaliação dos riscos deve ser priorizada antes dos cientistas realizarem os seus experimentos. Se, por essa avaliação, ficar constatado que pode haver lesões a vida humana, nenhum benefício justificaria a pesquisa genética.
A preocupação com esses riscos é um dos objetos da biossegurança, que se preocupa com a legitimidade da utilização da engenharia genética para transformar a natureza e a vida do homem, buscando, para isso, estabelecer os padrões aceitáveis no manejo dessa tecnologia.
A constatação desses riscos é importante, porque se deve pressupor que o destinatário da pesquisa genética é o próprio homem, o que torna contraditório que ele seja visto unicamente como meio. A Declaração de Helsinque é bem explícita ao inferir que "os interesses do indivíduo devem prevalecer sobre os interesses da ciência e da sociedade". Diante disso, se impõe a necessidade de avaliar cuidadosamente a relação entre riscos e benefícios, compatibilizando as experiências com o genoma humano e o progresso da Medicina. Tudo isto decorre dos direitos humanos que se situam acima desses interesses. Nada justifica a exposição do ser humano a situações de abusos e degradações.
Nem mesmo o art. 5º, IX, da Constituição Federal, que proclama a liberdade da atividade científica como um dos direitos fundamentais, pode permitir que abusos sejam cometidos contra vida humana, uma vez que a própria Carta Magna reconhece outros valores e bem jurídicos. No conflito desses interesses, a solução deverá ser a restrição a liberdade científica para não provocar qualquer perigo a pessoa humana e sua dignidade.
A ideia principal é estabelecer a proteção ao homem, como um fim em si mesmo, não se podendo excepcionar essa regra, utilizando o homem como meio para se atingir outros objetivos. Se a conduta estiver voltada para a primeira intenção, entendemos que ela será uma conduta legítima, moral e constitucional.
Porém, o equilíbrio entre o uso do genoma humano para melhoria da qualidade de vida com o respeito à dignidade humana seria o objetivo ideal para que a ciência genética possa contribuir para a evolução da humanidade. As pesquisas que envolvem manipulação genética devem se utilizar de meios que permitem um nível de segurança tal que não afetem de sobremaneira a vida humana, possibilitando o respeito ao princípio em estudo.
A esse respeito, quando se trata de manter a harmonia de outros princípios com o da dignidade da pessoa humana, importante que se mencione a lição de Sarlet (2004), que argumenta:
"(...) a dignidade, na condição de valor intrínseco da pessoa humana, evidentemente não poderá ser sacrificada, já que, em si mesma, insubstituível (...). No mínimo – e neste sentido já não se poderá falar de um princípio absoluto – impende reconhecer que mesmo prevalecendo em face de todos os demais princípios (e regras) do ordenamento, não há como afastar – como ainda teremos oportunidade de discutir – a necessária relativização (ou, se preferimos, convivência harmônica) do princípio da dignidade da pessoa em homenagem à igual dignidade de todos os seres humanos.
(...) a própria dignidade individual acaba, ao menos de acordo com o que admite parte da doutrina constitucional contemporânea, por admitir certa relativização, desde que justificada pela necessidade de proteção da dignidade de terceiros, especialmente quando se trata de resguardar a dignidade de todos os integrantes de determinada comunidade"
Assim, deve-se reconhecer a possibilidade de alguma relativização e até se permitir algumas restrições, não há, contudo, como tolerar qualquer ato que atente contra a preservação da dignidade, elemento intangível, devendo ser vedado qualquer tentativa de "coisificação" do ser humano ou sua instrumentalização. Nesse sentido, as normas que dispõem sobre a pesquisa genética em seres humanos devem ser cuidadosamente elaboradas para, por um lado, prevenir abusos e, por outro, evitar limitações e proibições descabidas, o que traria uma radical freada no progresso científico. A disciplina jurídica desse tema não deve ir além nem tampouco aquém do necessário à proteção dos valores constitucionais em questão.
Entendemos que não deve haver a proibição prévia e total a pesquisa que envolva patrimônio genético humano, contudo, deve-se exigir, em cada caso, a devida fundamentação e avaliação por comissões compostas não só pela comunidade científica, mas também por organizações da sociedade civil, legitimando, dessa forma, quaisquer atos voltados a interferência desse patrimônio.
Isso posto, podemos deduzir que a liberdade de realização de pesquisas e de experiências que envolvam o patrimônio genético humano é, como qualquer direito, uma liberdade limitada.
Atualmente, é necessário que os paradigmas biotecnocientíficos evoluam, o que não significa a dissolução dos valores existentes, mas que "deve-se avançar de uma ciência eticamente livre para outra eticamente responsável; de uma tecnocracia que domine o homem para uma tecnologia a serviço da humanidade do próprio homem (...) de uma democracia jurídico-formal a uma democracia real, que concilie liberdade e justiça" (Küng, 1994).
Com esse objetivo, foi assinada por mais de 80 países, em 12 de novembro de 1997, a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, com apoio da UNESCO, onde foram estabelecidas diversas premissas sobre o tema. Entre elas, destacam-se normas que obrigam o consentimento prévio da pessoa envolvida em pesquisa, tratamento ou diagnóstico que afeta o seu genoma; o direito de ser informado ou não sobre resultados dos seus exames genéticos e das consequências resultante; e a proibição a qualquer tipo de discriminação baseada em características genéticas que possibilitem infringir os direitos humanos e as liberdades fundamentais. No seu art. 12, "a", está indicado que os benefícios decorrentes dos avanços em biologia, genética e medicina, relativos ao genoma humano, deverão ser colocados à disposição de cada indivíduo.
Urge a tomada de medidas, inclusive a edição de normas, que orientem os cientistas na seara da biotecnologia, para resguardar a sobrevivência da espécie humana e a proteção de sua dignidade, devendo ser orientados com cautela e segurança nesse sentido. As implicações éticas acerca dos progressos científicos relativos à manipulação do genoma humano devem ser fundadas nesse princípio, servindo de diretriz para o aplicador do direito e para o legislador. Adequando a atuação dos cientistas dessa área as orientações axiológicas que concretizam o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana.
Na legislação pátria, a Lei 11.105/2005, que trata da Biossegurança, veda no seu art. 6º, III, IV, engenharia genética humana em célula germinal e a clonagem de seres humanos. Acreditamos, porém, que somente essa norma é insuficiente, não soluciona os problemas ético-jurídicos pertinentes, considerando a velocidade com que essas tecnologias se aperfeiçoam.
Ante o exposto, a conclusão que chegamos é que a relação entre genética, ética e direito traz em seu bojo diversas questões polêmicas merecedoras de reflexão mais profunda pelos cientistas, juristas e aplicadores do direito. A perspectiva ideal para guiar esses profissionais deve ser o princípio da dignidade da pessoa humana, elemento basilar que deve fundamentar todos os valores do Homem. As pesquisas que envolvam interferência no genoma humana devem curvar-se a esse bem jurídico, hierarquicamente superior, mas não podem restringi-los por completo, sob pena de paralisar os progressos que se destinam também a preservação da espécie humana. Ao direito, caberá traçar os contornos, para que as condutas nesse sentido sejam feitas com responsabilidade, indicando os caminhos por onde a ciência não deve ir, porque as pesquisas não param e muitas descobertas ocorrem pelo acaso, e, acaso ou não, quase sempre são irreversíveis.
BIBLIOGRAFIA
SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, Bioética e Patrimônio Genético Brasileiro. Ed. Pilares. 2008;
NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. Ed. RT. 2008;
ALÁRCON, Pietro de Jesús Lora. Patrimônio Genético e Sua Proteção Na Constituição Federal de 1988. Ed. Método. 2004;
CONTI, Matilde Carone Slaibi; Biodireito A Norma da Vida. Ed. Forense. 2004;
DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. Ed. Saraiva. 2009;
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Ed. Livraria do Advogado. 2004;
OTERO, Paulo. Lições de Introdução ao Estudo do Direito; Ed. Lisboa. 1998;
MOURA, Carlos Alexandre Mechon. Aplicabilidade da ação civil pública na tutela do patrimônio genético humano. Disponível em http://jus.com.br/artigos/13076>. Acesso em: 8 de abril de 2011.