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A exploração da atividade econômica pelo Estado

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18/05/2011 às 18:09
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III. A EXPLORAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA PELAS EMPRESAS ESTATAIS

A carta de 1988 restringiu a possibilidade de interferência do Estado na ordem econômica, não mais falando de intervenção, mas sim de atuação, conforme o seu artigo 173.

O artigo 173, caput, e §4º, da CF [19] tem de ser interpretado conjugadamente com o art. 170, IV e parágrafo único [20], pois a exploração de atividades econômicas cabe, via de regra, à iniciativa privada, um dos postulados fundamentais do regime capitalista. Dessa forma, a possibilidade que a Constituição admitiu no art.173 há de ser considerada como tendo caráter excepcional. Por isso é que o próprio texto estabeleceu os limites que ensejariam essa forma de atuar do Estado. Por derradeiro, não é difícil perceber que a leitura do texto indica claramente que a regra é que o Estado não explore atividades econômicas, podendo fazê-lo, contudo, em caráter especial, quando estiverem presentes os pressupostos nele consignados.

Segundo Hely Lopes Meirelles,

Atuar é intervir na iniciativa privada. Por isso mesmo, a atuação estatal só se justifica como exceção à liberdade individual, nos casos expressamente permitidos pela Constituição e na forma que a lei estabelecer. O modo de atuação pode variar segundo o objeto, o motivo e o interesse público a amparar. Tal interferência pode ir desde a repressão a abuso do poder econômico até as medidas mais atenuadas de controle do abastecimento e de tabelamento de preços, sem excluir outras formas que o Poder Público julgar adequadas em cada caso particular. O essencial é que as medidas interventivas estejam previstas em lei e sejam executadas pela União ou por seus delegados legalmente autorizados." [21]

Mantendo a orientação da Constituição de 1967, a atual Carta assegurou à iniciativa privada a preferência para exploração da atividade econômica, atribuindo ao Estado somente as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, a teor do artigo 174, da CF [22].

Quanto à maneira de intervenção do Estado na economia, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, assim classifica:

Essas instituições interventivas se classificam em quatro modalidades: regulatórias, concorrenciais, monopolistas e sancionatórias. Pela intervenção regulatória, em que o Estado impõe uma ordenação coagente aos processos econômicos; pela intervenção concorrencial, em que o Estado compete com a sociedade no desempenho de atividades econômicas empresariais; pela intervenção monopolistas, em que o Estado se impõe com exclusividade na exploração econômica de certos bens ou serviços; e pela intervenção sancionatória, em que o Estado pune os abusos e excessos praticados contra a ordem econômica e financeira, incluída a economia popular e interesses gerais correlatos. [23]

José dos Santos Carvalho Filho, declara que o Estado pode assumir duas posições como titular de atividades econômicas:

O Estado atua de duas formas na ordem econômica. Numa primeira, é ele o agente regulador do sistema econômico. Nessa posição, cria normas, estabelece restrições e faz um diagnóstico social das condições econômicas. É um fiscal da ordem econômica organizada pelos particulares, pode-se dizer que, sob esse ângulo, temos o Estado Regulador. Noutra forma de atuar, que tem caráter especial, o Estado executa atividades econômicas que, em princípio, estão destinadas à iniciativa privada. Aqui a atividade estatal pode estar mais ou menos aproximada à atuação das empresas privadas. O certo, porém, é que não se limita a fiscalizar as atividades econômicas, mas ingressa efetivamente no plano da sua execução. Seja qual for a posição que assuma, o Estado, mesmo quando explora atividades econômicas, há de ter sempre em mira o interesse, direto ou indireto, da coletividade. Podemos considerá-lo nesse ângulo como Estado executor. [24]

Nessa esteira, apresentam-se como forma mais comum de exploração da atividade econômica pelo Estado as empresas estatais, a saber, sociedades de economia mista e empresas públicas.

As sociedades de economia mista e as empresas públicas são as empresas estatais vinculadas ao Estado às quais se atribui a tarefa de intervir diretamente no domínio econômico.

Essa exploração indireta de atividades econômicas pelo Estado tem previsão no art. 173, §1º, da CF, segundo o qual a lei deverá estabelecer o estatuto jurídico da empresa estatal que explore atividade econômica de produção, de comercialização de bens ou de prestação de serviço.

A referida disposição legal destaca vários aspectos, como função social, forma de fiscalização pelo Estado e pela sociedade e sujeição sob regime jurídico das empresas privadas, inclusive no âmbito civil, trabalhista, comercial e tributário.

Quando as sociedades de economia mista e as empresas públicas exercem atividades econômicas, como são dotadas de personalidade jurídica de direito privado, podem agir como verdadeiros particulares no campo mercantil, seja no setor de comércio e indústria, seja em prestações de serviços.

Essas empresas estatais só se justificam quando suas congêneres particulares forem insuficientes para atender à demanda do mercado em obras, produtos ou serviços, pois o Poder Público não pode nem deve competir com as atividades da indústria ou do comércio.

O texto constitucional de 1988, portanto, consagrou uma economia descentralizada, de mercado, sujeita à forte atuação do Estado, de caráter normativo e regulador, permitindo que ele explore diretamente atividade econômica quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (art. 173, da CF).

Segundo os ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho, a Constituição não deixa liberdade para o Estado explorar atividades econômicas, mas, ao contrário, aponta três pressupostos que legitima a intervenção:

O primeiro é a segurança nacional, pressuposto de natureza claramente política. Se a ordem econômica conduzida pelos particulares estiver causando algum risco à soberania do país, fica o Estado autorizado a intervir no domínio econômico, direta ou indiretamente, tudo com vistas a restabelecer a paz e a ordem sociais.

O outro pressuposto é o interesse coletivo relevante. A noção de interesse coletivo relevante constitui conceito jurídico indeterminado, porque lhe faltam a precisão e a identificação necessárias a sua determinabilidade. Por essa razão, a Constituição admitiu que essa noção viesse a ser definida em lei. Desse modo, será necessário que o Governo edite a lei definidora do que é interessante coletivo relevante para permitir a intervenção legítima do Estado no domínio econômico.

Há um terceiro pressuposto que está implícito no texto. O dispositivo, ao ressalvar os casos previstos na Constituição, está admitindo que o só fato de haver disposição em que haja permissividade interventiva contida no texto constitucional é suficiente para autorizar a exploração da atividade econômica pelo Estado, independentemente de ter hipótese de segurança nacional ou de interesse coletivo relevante. Há, de fato, interesse coletivo relevante presumido, porque constante da Constituição, muito embora não tenha sido ele definido em lei. [25]


IV. CONCLUSÃO

Por todos esses elementos, podemos dizer, em suma, que a atuação do Estado como explorador da atividade econômica é, em princípio, vedada, só sendo permitida quando for exigida a segurança nacional, o interesse da coletividade de forma relevante e o expresso permissivo constitucional.

Acresce que as exigências constitucionais que podem caracterizar a excepcionalidade da atividade empresarial do Estado, segurança nacional e relevante interesse coletivo, não devem apenas estar invocadas como efetivamente existirem. Não há discricionariedade legislativa para inventar hipóteses de segurança nacional e de relevante interesse coletivo, mas, tão somente, para identificá-las quando de fato existam.

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A rigorosa aplicação do artigo 173, da CF, obriga o Estado a rever o fundamento jurídico de suas respectivas empresas estatais e, por certo, haverá muitas delas concorrendo inconstitucionalmente em atividades econômicas reservadas ao setor privado, como na construção civil, na mineração, na fabricação de produtos não monopolizados, nos transportes, etc.

De qualquer modo, é fato que somente dentro das limitadas hipóteses constitucionais o Estado pode ser empresário, se houver interesse coletivo relevante ou pela manutenção da soberania nacional.

Em última instância, não deve mesmo o Estado exercer a função de explorar atividades econômicas. Seu papel é realmente de regular, controlar e fiscalizar, deixando o desempenho para as empresas da iniciativa privada.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987.

BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010.

EHLERS, Dirk. A atividade econômica do Estado na República Federal da Alemanha. DIREITO & JUSTIÇA, Revista da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Livraria Editora Acadêmica, v. 14, ano XII, p. 17, 1990. (Tradução de Peter Walter Ashton da Faculdade de Direito da UFRGS e PUC/RS; Direção Claudio Cezar Maciel Fetter).

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patrono político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958.

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

ORTEGA, Ricardo Rivero. Introducción al derecho administrativo económico. 2. ed. Salamanca: Ratio Legis, 2001.

SMITH, Adam. The nature and causes of the Wealth of Nations. London: Cadell, 1811, v. IV, p. 42, apud VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1968.

SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico: Estado e Normalização da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Aspectos do planejamento econômico. 2 ed. Rio de Janeiro. Lúmen Júris, 2000.

VASCONCELLOS, Marco Antonio Sandoval de; GARCIA, Manuel Enriquez. Fundamento de economia. São Paulo: Saraiva, 1998.

VIGORITA, Vincenso Spagnuolo.L’Iniziativa Econômica Privata nel Diritto Publico, p. 170-172, apud VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1968.


Notas

  1. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 192-193.
  2. SMITH, Adam. The nature and causes of the Wealth of Nations. London: Cadell, 1811, v. IV, p. 42, apud VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1968, p. 06.
  3. SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico: Estado e Normalização da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 41.
  4. Ibidem, p. 43.
  5. SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico: Estado e Normalização da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 45-6.
  6. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 986.
  7. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 987.
  8. VIGORITA, Vincenso Spagnuolo.L’Iniziativa Econômica Privata nel Diritto Publico, p. 170-172, apud VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1968, p. 11.
  9. EHLERS, Dirk. A atividade econômica do Estado na República Federal da Alemanha. DIREITO & JUSTIÇA, Revista da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Livraria Editora Acadêmica, v. 14, ano XII, p. 17, 1990. (Tradução de Peter Walter Ashton da Faculdade de Direito da UFRGS e PUC/RS; Direção Claudio Cezar Maciel Fetter).
  10. ORTEGA, Ricardo Rivero. Introducción al derecho administrativo económico. 2. ed. Salamanca: Ratio Legis, 2001, p. 58-59.
  11. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patrono político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958, p. 252.
  12. SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico: Estado e Normalização da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 71.
  13. SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico: Estado e Normalização da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 81.
  14. VASCONCELLOS, Marco Antonio Sandoval de; GARCIA, Manuel Enriquez. Fundamento de economia. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 2.
  15. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
  16. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 390.
  17. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1262.
  18. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1262.
  19. Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. (...) §4º. a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
  20. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IV - livre concorrência; (...) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
  21. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 672-673.
  22. Art. 174, caput, da Constituição Federal: - Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
  23. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 527.
  24. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 991.
  25. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 1009.
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Sobre o autor
Felipe do Canto Zago

Advogado. Mestre em Direito na área de Fundamentos Constitucionais do Direito Público e do Direito Privado e Pós-Graduado em Direito Empresarial ambos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZAGO, Felipe Canto. A exploração da atividade econômica pelo Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2877, 18 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19138. Acesso em: 29 mar. 2024.

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