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Legalismo e legalidade na política de cotas.

Como definir o que os olhos não vêem

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É você

Que ama o passado

E que não vê

Que o novo sempre vem...

(Belchior. Como nossos pais)

Introdução

Em 1992, Bresser Pereira [01] publicava interessante livro em cujo prefácio afirmava: "Em qualquer sociedade, o Estado é o princípio da ordem e do direito. Nas sociedades modernas, em que a moeda é por ele garantida, é também a base da estabilidade macroeconômica." Para Bresser Pereira, uma das principais estratégias para superação de crises no Estado é pensar no tamanho do Estado e na sua abertura comercial. Não se trataria de uma perspectiva neoliberal, pois vê novas funções para o Estado em suas áreas social, do meio ambiente, no campo econômico, tecnológico e sua inserção internacional. [02]

Aproveitando o mote, devemos então pensar políticas públicas de crescimento e fortalecimento do Estado sem deixar de pensar no aspecto social. Por ora, deixemos a questão do tamanho do Estado em relação a seu aspecto econômico aos economistas. Pensemos, no entanto, no tamanho do Estado em relação a suas instituições públicas, principalmente quanto ao seus poderes constituídos: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Não é de hoje que se observa cada vez mais que tais poderes deixam de ser observados como independentes entre si, tornando-se cada vez mais ativos uns em relação à função original do outro. No que diz respeito ao Poder Judiciário, temos uma crescente intervenção de decisões judiciais que afetam cada vez mais a esfera de ação da Administração Pública, influenciando em sua capacidade de elaborar e implementar políticas públicas orientadas para o social. [03]

Por exemplo, a situação mais fácil de se vislumbrar é aquela referente a disponibilização de medicamentos ou tratamentos de alto custo, quando o cidadão não consegue financiar o tratamento pela rede privada e recorre ao Poder Judiciário para que o Estado seja obrigado a fornecer o tratamento objetivado. [04][05]

Ou então quando tratamos da denominada discriminação positiva para criar políticas de cotas [06].

A política de cotas não pode ser um sistema hermético. Como tudo no Direito, sua orientação deve ser pragmática, orientada a um fim específico e claro de inclusão daquele que não consegue, em condições de igualdade estrita, usufruir os direitos garantidos a todos. Se assim não fosse, teríamos uma mal disfarçada subclasse de cidadãos e a Constituição em seu aspecto amplo não se realizaria.

Acredito que até agora as premissas assentadas são válidas e aceitas por todos. Daremos agora o próximo passo rumo a interessante discussão.

No que diz respeito à discriminação positiva relativa aos deficientes, pode acontecer que sua deficiência não seja externa, ocasionando a que tanto o Estado como os demais deficientes não considerem a deficiência como tal, mas como uma doença completamente incapacitante.

Quando isso ocorre, o portador de deficiência fica excluído das políticas públicas relativas aos deficientes, marginalizado da sociedade. Mais específico, é o que ocorre com os assim denominados deficientes orgânicos quando desejam concorrer a uma vaga de emprego, principalmente por meio de concurso público. Em casos quetais, o acesso ao emprego público lhes é vedado: se tentam a aprovação como normais, serão reprovados no exame médico exigido por lei; se tentam a aprovação através das cotas reservadas para deficientes, são reprovados porque suas patologias não estariam elencadas em lei. E, no entanto, podem – e devem – trabalhar, sendo mesmo indicado terapeuticamente que assim o façam.

A ausência de Políticas Públicas para esse segmento da população, no que diz respeito ao acesso ao trabalho, é notória. E como o segmento ainda é politicamente irrelevante, o primeiro caminho para assegurar seus direitos é o Poder Judiciário. Assim, se os Magistrados compreenderem a questão, reconhecendo o direito de uma existência a uma vida digna poderá, pouco a pouco, poderá este influxo contribuir para que o Estado como um todo, aí sim, repense sua política de inclusão em relação aos deficientes orgânicos.

A proposta apresentada a seguir, sugere uma interpretação possível neste sentido, que esperamos possa ser adotada.


Do Reconhecimento da Deficiência Orgânica como uma Deficiência a ser protegida pela Política de cotas.

Tomemos como exemplo a pessoa portadora de Nefropatia grave, enfermidade crônica que acarreta uma série de limitações. No entanto, por seu uma deficiência orgânica (interna) e, portanto, não aparente, não está listada no rol das patologias contidas no art. 4º do Decreto nº 3.298/99, que define o que é e o que não é, para fins de políticas públicas, deficiente.

No entanto, referida patologia pode muito bem ser caracterizada como deficiência física, nos termos do art. 3º do mesmo diploma legal.

Assim, se tentará demonstrar que a tese segundo a qual a deficiência física somente se caracteriza por meio da aplicação do art. 4º do Decreto 3.298/99 é extremamente limitadora e inconstitucional, razão pela qual a caracterização da existência de deficiência física deve ser feita com base na leitura integrada do art. 4º com o art. 3º, de mencionado Decreto.

Esclareçamos a questão. Na verdade, a questão legal atinente a definição de deficiente físico restringe-se a correta interpretação do Decreto nº 3.298/99. Para alguns, basta aplicar o contido no art. 4º. Para nós, tal interpretação depende, também, da aplicação do art. 3º, de referido Decreto.

Observemos a redação de tais dispositivos:

Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II - deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e

III - incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida." (grifamos)

"Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:

I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

III - deficiência visual - cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60º; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;(Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a) comunicação;

b) cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;

V - deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.

Neste sentido, ao se optar restritivamente pela aplicação do art. 4º, verificar-se-á antinomia na norma. Pois, como pode o Decreto definir como deficiência uma perda de uma função fisiológica, mas não considerar qualquer patologia interna, com os órgãos internos. Em outras palavras, o que diferencia uma anormalidade de um braço de uma anormalidade de um rim? O que diferencia uma anormalidade em uma perna de uma anormalidade no coração? Esta é a questão principal que exige uma reflexão tanto jurídica quanto médica.

Verifica-se, da leitura de referidos artigos, uma indevida petição de princípios a que conduz o raciocínio adotado na legislação: a pessoa portadora de deficiência orgânica não pode ser considerada deficiente, porque não é considerada deficiente. Com o devido respeito, não há razão lógica para tal discriminação, decorrente de uma interpretação literal e restritiva da lei.

Realmente, conforme apontado pelo professor português A. Menezes Cordeiro [07], o positivismo estrito, enquanto ciência teórica, não tem como oferecer soluções a problemas do quotidiano jurídico como a existência de lacunas, preenchimento de conceitos indeterminados ou normas em branco, contradições de princípios e injustiças de normas. Na presente hipótese, verifica-se dois de referidos problemas. O primeiro refere-se a existência de uma lacuna. O segundo, refere-se à necessidade de preenchimento de um conceito indeterminado.

O problema da lacuna legal reside no fato de que os deficientes orgânicos, pelo teor estrito da letra da lei, apesar de manifestarem uma deficiência tal como classificada na lei, não podem usufruir dos direitos reservados aos portadores de deficiência, tal como previsto na mesma lei por não serem considerados deficientes. Logo, a primeira questão é saber se estão os portadores de deficiência orgânica protegidos por algum tipo de lei.

Isso porque, por serem deficientes, não disputam postos de trabalho na iniciativa privada em igualdade de condições com as pessoas "normais". E se prestam concurso público, concorrendo sem ser no percentual de deficientes físicos, por sua deficiência, serão considerados "doentes" e não aptos ao trabalho. Se concorrerem pela vaga destinada aos deficientes, são considerados como não deficientes, ante a vagueza do art. 4º, do Decreto 3.298/99. Por qualquer prisma que se coloque a questão, há uma lacuna indevida em relação aos deficientes orgânicos que necessita de urgente colmatação para preservar o direito ao trabalho e a uma vida com dignidade.

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Neste esteio a resposta para o questionamento posto acima conduz ao segundo problema que o positivismo não consegue solucionar. E refere-se à própria conceituação do que seria uma deficiência. Deficiência é um termo semântico que oferece sentidos denotativos variados. O próprio léxico nacional não consegue exprimir os termos em sentido satisfatório. Com efeito, deficiência, refere-se à falta, falha, carência, imperfeição, defeito, ou insuficiência [08]. Logo, deficiência pode ser relacionada a tudo o que não seja eficiente. Por óbvio, esta definição não serve. Muito menos quando se trata de saber o que seria um deficiente orgânico ou fisiológico.

Especificamente no caso da nefropatia crônica, qualquer perícia médica os considerará inaptos, "doentes", vedando seu acesso ao posto de trabalho. Por outro lado, se concorrem pela vaga destinada aos deficientes, são considerados como não deficientes, devendo postular uma colocação no mercado de trabalho em condições iguais aos considerados "normais".

Com o devido respeito, a nefropatia grave é tão inabilitante para o trabalho quanto a cegueira. Cada patologia guarda sua peculiaridade e não é porque uma pessoa é deficiente visual que não estará apta a trabalhar. Do mesmo modo, não é porque uma pessoa é portadora de nefropatia grave que não estará apta ao trabalho. Apenas deve ser levada em consideração a peculiaridade de cada patologia e a adaptação em relação aos assim considerados "normais".

Portanto, em relação aos deficientes orgânicos, por qualquer prisma que se coloque a questão, há uma lacuna indevida na legislação social, que necessita de urgente colmatação para preservar seu direito ao trabalho e a uma vida com dignidade.

Com uma interpretação lógica, verificamos o absurdo da petição de principios na própria lei. Com uma interpretação literal, encontramos lacunas e conceitos indeterminados. Uma interpretação sistemática também pode trazer resultados inconvenientes, tendo em vista que o próprio decreto regulamentador do que se pretende compreender, não traz solução para o caso em concreto. Uma interpretação histórica tambám não ajudaria, tendo em vista que a legislação atual traz avanços significativos em relação ao contexto em que foi editada: proteção aos deficientes físicos, não obstante a problemática ora apontada.

Para equacionar o problema, verifiquemos qual a Política de Proteção ao Portador de Deficiência. Parece que é fora de questão que tal Política visa proteger e assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência, como previsto no art 1º, do Decreto 3.298/99. Referido objetivo cumpre com o fundamento republicano da dignidade humana, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal de 1.988. A solução, portanto, seria proteger a dignidade do deficiente orgânico, enquadrando seus direitos de forma a que possa viver uma vida o mais próximo da normalidade, respeitando suas idiossincrasias.

Autores especializados na área da deficiência sustentam que "na pesquisa e na prática da area da deficiência existem imprecisões dos conceitos, com variações relacionadas ao modelo medico e ao modelo social. [09]" Assim, a moderna doutrina médica e social começa a adotar classificações que incluam termos que associem e classifiquem corretamente deficiências, incapacidades, e desvantagens. Isso porque, conforme indicam os citados Autores [10], "a deficiência pode ser associada à desvantagem, sem incapacidade: o diabético ou o hemofílico possuem uma deficiência, mas com acompanhamento clinico podem não desenvolver incapacidades, embora tenham desvantagens no relacionamento social, como restrições dietéticas ou das atividades físicas."

Tendo em vista referido problema, a Organização Mundial de Saúde propos um novo modelo de Classificação, a chamada Classificação Internacional de Fucionalidades, Inapacidades e Saúde – CIF. Segundo a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo [11],

"a CIF perntence à familia das classificações internacionais desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para aplicação em vários aspectos da saúde. A familia de classificações internacionais da OMS fornece um sistema para a codificação de uma ampla gama de informações sobre saúde (e.g. diagnóstico, funcionalidade e incapacidade, razões para o contrato com os serviços de saúde) e utiliza uma linguagem comum padronizada que permite a comunicação sobre saúde e assistência médica em todo o mundo entre várias disciplinas e ciências."

Segundo referida classificação, "deficiências são problemas na função ou estrutura do corpo como um desvio significativo ou perda [12]." Ainda, ressalta a Classificação que, do ponto de vista medico, deve-se ter em mente que as deficiências não são equivalentes à doença de base, mas sim a manifestações dessa patologia. [13]" Assim, para a correta classificação da pessoa como deficiente, é necessário que se leve em conta os seguintes fatore: deficiência, limitação de capacidade, e problemas no desempenho.

Seguindo esta linha de raciocínio, é que o Projeto de Lei nº 3.557, de 2004, de autoria do Deputado Dimas Ramalho, inclui a definição de deficiência orgânica, para melhor explicitar as deficiências fisiológicas. Também a Lei nº 4.887, de 1997, do Município de Guarulhos, inclui a definição de deficiente orgânico para a concessão de passe livre para transportes urbanos. E assim, o Município de Campinas, bem como outras Unidades da Federação.

Se existem legislações específicas que tutelam os interesses dos deficientes orgânicos, considerando-os, com o perdão da redundância, como deficientes, mais razão ainda a Legislação Federal deve considerar tal segmento da sociedade, oferecendo políticas de inclusão e proteção social.

Neste campo, a pessoa portadora de deficiência orgânica, pode não apresentar qualquer deficiência externa, - física – mas, no entanto, possuir relativa limitação de capacidade devida a seu tratamento – deve tomar medicamentos, ter horário flexível dentro da jornada de trabalho, etc. Por esta razão é que a correta definição de deficiência fisiológica como deficiência orgânica, e o portador de deficiência orgânica como deficiente, se faz necessária.

O deficiente pode possuir qualificações técnicas para exercer o cargo ao qual prestou concurso público. No entanto, seu horário de tratamento, consultas rotineiras, e necessidade medicamentosa e diferenças de ritmo devem ser respeitadas. E nisso consiste o fator de discriminação a ser considerado. Se não pode concorrer em condições de igualdade com as pessoas consideradas "normais", deve concorrer em condições de igualdade com as pessoas consideradas "deficientes".

Realmente, ainda o mais inveterado dos positivistas concede que as leis devem ser interpretadas sistematicamente (teoria da completude). Ora, se um artigo de determinada lei dispõe sobre algum direito, o artigo seguinte não poderia dispor em sentido contrário.

Na hipótese, o art. 3º, do Decreto 3.298/99 autoriza a interpretação segundo a qual a nefropatia grave pode ser considerada como deficiência física, pois assim é entendido pela própria Organização Mundial de Saúde, por meio da Classificação CIF.

Apreciando esta questão, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região teve a oportunidade de se posicionar em Acórdão de onde se extrai o seguinte trecho:

A análise da documentação que instrui a lide demonstra que a autora, ora recorrida, é portadora de Doença Renal Grave (CID n 18.0), estágio 5 (fl. 42).

O Edital n. 1/2005, que disciplinou o concurso público para o cargo de Analista Ambiental, dispôs, em seu item 3.7, que (fl. 21):

Os candidatos que se declararem portadores de deficiência deverão submeter-se à perícia médica promovida pelo IBAMA, que verificará sobre a sua qualificação como portador de deficiência ou não, bem como sobre o grau de deficiência incapacitante para o exercício do cargo/especialidade, nos termos do artigo 43 do Decreto Federal n.º 3.298/99, alterado pelo Decreto Federal n.º 5.296/2004.

A ilustre julgadora em 1º grau, com propriedade, analisou a questão sob o seguinte prisma (fls. 257-258):

O documento juntado à fl. 88, Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidades e Saúde (CIF), da Organização Mundial de Saúde (2001), conceitua estruturas do corpo como: "partes anatômicas do corpo como órgãos, membros e seus componentes".

Desse modo, entendo que uma pessoa com a referida enfermidade pode ser enquadrada no conceito de deficiência que o benefício da reserva de vagas tenta compensar.

Transcrevo, por pertinente, excerto do voto no RMS nº 22.459/DF (18.12.2006) exarado pela Exma. Sra. Ministra Laurita Vaz, no qual menciona caso (TRF1 AMS Nº 1998.01.00.061913-2, DJ 16.11.2001; Rel. Des. Fed. João Batista Moreira) em que foi discutida a diferença entre os conceitos de deficiência, incapacidade e invalidez, verbis:

Há que se estabelecer distinção entre a pessoa plenamente capaz, o deficiente e o inválido. O deficiente é o sub-normal, o meio-termo. É a pessoa que, não sendo totalmente capaz, não é, todavia, inválida, porque ser for inválida nem poderá concorrer a cargo público.

Se assim não for considerado, estará criada uma contradição: exige-se que o deficiente, para ingressar no serviço público, tenha condições mínimas de desempenhar as atribuições do cargo, mas, ao mesmo tempo, equipara-se a deficiência à invalidez.

O objetivo do benefício da reserva de vaga é compensar as barreiras que tem o deficiente para disputar as oportunidades no mercado de trabalho. Não há dúvida de que uma pessoa que enxergue apenas de um olho tem dificuldades para estudar, barreiras psicológicas e restrições para o desempenho da maior parte das atividades laborais.

Ainda, nesse sentido, o precedente a seguir, verbis:

"ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PORTADOR DE VISÃO MONOCULAR. DIREITO A CONCORRER ÀS VAGAS DESTINADAS AOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA FÍSICA. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.

1. O art. 4º, III, do Decreto 3.298/99, que define as hipóteses de deficiência visual, deve ser interpretado em consonância com o art. 3º do mesmo diploma legal, de modo a não excluir os portadores de visão monocular da disputa às vagas destinadas aos portadores de deficiência física. Precedentes.

2. Recurso ordinário provido."

(RMS 19.257/PA; Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima; DJ 30.10.2006)

Não se sustenta, outrossim, a alegação de que a autora seria automaticamente aposentada, na hipótese de ser nomeada, por força do disposto na Lei n. 8112/1990, art. 186, § 1º.

O laudo médico produzido pela autora, após descrever a doença renal crônica como caracterizada por uma perda progressiva da função renal, secundária a várias causas e que tem, como desfecho final, a necessidade de métodos substitutivos da função renal, tais como hemodiálise, diálise peritoneal e transplante renal, esclarece que (fl. 42):

Apesar de tudo isto, é importante lembrarmos que diante da evolução que estamos tendo no controle destas complicações e no tratamento destes problemas, mais e mais pacientes portadores de doença renal crônica continuam desempenhando suas funções sociais, profissionais, esportivas e de lazer, sem maiores alterações em sua qualidade de vida.

A jurisprudência pátria tem pontificado, em diversas oportunidades, que o portador de doença renal crônica, desde que submetido a tratamento médico mantenedor de sua higidez, está habilitado a ocupar vaga para a qual tenha sido aprovado em concurso público.

Em amparo ao posicionamento adotado, transcrevo o seguinte julgado:

ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL. CONCURSO PÚBLICO. CARGO DE FISCAL FEDERAL AGROPECUÁRIO. DOENÇA RENAL. PERÍCIA. APTIDÃO PARA O TRABALHO. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. VENCIMENTOS E VALORES ATRASADOS. IMPOSSIBILIDADE. SUCUMBÊNCIA. MANTIDA. PRECEDENTES.

- A autora está em plenas condições de saúde para trabalhar, pois mesmo realizando sessões semanais de diálise, não encontra limitações para nenhum trabalho intelectual e profissional.

- A perícia médica afirma que a autora tem aptidão física para realizar as atividades relacionadas ao trabalho que irá desempenhar no exercício do novo cargo (fls. 359/364).

- O princípio da acessibilidade aos cargos públicos, estabelecido no parágrafo único do art. 37 da CF/88, que oferece ampla acessibilidade aos cargos públicos a todos que preencham os requisitos estabelecidos em lei é princípio de concreção dos princípios constitucionais da isonomia e da igualdade.

- Incabível o pedido dos vencimentos e valores atrasados inerentes ao cargo, pois não há falar em direito adquirido à nomeação, mas mera expectativa de direito e, não havendo trabalho, não há que se falar em retribuição pecuniária.

(TRF-4ª Região: AC n. 2002.70.00.011500-8/PR – Relator Juiz Federal João Batista Lazzari (Convocado) – e-DJ de 12.02.2008)

O pagamento de auxílio-doença, nos termos do art. 62 da Lei 8.213/1991, como se sabe, cessa na hipótese de o beneficiário ser considerado reabilitado para o exercício de outra atividade profissional, ou ainda, na constatação da incapacidade definitiva para qualquer atividade, o que resulta na sua conversão em aposentadoria por invalidez.

O simples fato de a recorrida ser beneficiária de auxílio-doença não implica, portanto, incapacidade definitiva para o exercício da função almejada, como pretende o recorrente.

(ApReeNec nº 2006.34.00.007628-1/DF (0007541-94.2006.4.01.3400). Sexta Turma. Rel. Juiz Convocado Alexandre Jorge Fontes Laranjeira. Unânime. E-DJF1 de 22/10/2010)

Conforme se verifica, o direito reconhecido está insculpido no art. 3º, do Decreto 3,298/99. Logo, está previsto em norma legal, editada em conformidade com os ditames constitucionais.

Note-se que este tipo de interpretação não viola o princípio da legalidade. Ao contrário, está previsto em norma vigente. E, conforme se sabe, a Administração Pública está obrigada a obedecer tal dispositivo, até por imperativo contido no art. 37, caput, da Constituição Federal.

Observe-se, assim, que restringir o conceito de deficiência às hipóteses previstas no art. 4º, do Decreto 3.298/99 caracteriza o extremo do formalismo e do positivismo jurídico, e ainda incorre em grave erro de interpretação.

Ainda o mais inveterado dos positivistas concede que as leis devem ser interpretadas sistematicamente (teoria da completude). Ora, se um artigo de determinada lei dispõe sobre algum direito, o artigo seguinte não poderia dispor em sentido contrário.

Na hipótese, tal como verificado, o art. 3º, do Decreto 3.298/99 autoriza a interpretação segundo a qual a nefropatia grave pode ser considerada como deficiência física, pois assim é entendido pela própria Organização Mundial de Saúde, órgão técnico mundial com capacidade para definição do assunto.

Se tecnicamente tal interpretação é correta, o rol do art. 4º do Decreto 3.298/99 passa a ser exemplificativo e não taxativo. Isto porque se o rol for considerado como taxativo, então ele incorreria em manifesta ilegalidade, pois contrariaria o artigo anterior. E mais, passa a ser inconstitucional, pois contraria o Princípio da Dignidade Humana contido no art. 1º, III, da Constituição Federal, bem como o art. 170, VIII, que prega a busca pelo pleno emprego.

Noutro aspecto, a moderna hermenêutica prega a distinção das normas entre princípios e regras. Não é difícil observar que o art. 4º, do Decreto nº 3.298/99 é uma regra, enquanto os princípios constitucionais acima citados são princípios. Regras e Princípios devem conviver harmonicamente e, quando em colisão, os princípios devem prevalecer, pois refletem objetivos a serem alcançados pela Sociedade.

Ora, conforme demonstrado, existe interpretação literal e sistemática possível a amparar a presente proposta. Basta que se utilize o art. 3º, do Decreto nº 3.298/99 como marco hermenêutico.

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Sobre o autor
Sergio Lindoso Baumann Pietroluongo

Advogado. Especialista em Direito Público na UniDF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIETROLUONGO, Sergio Lindoso Baumann. Legalismo e legalidade na política de cotas.: Como definir o que os olhos não vêem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2910, 20 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19368. Acesso em: 22 dez. 2024.

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