2 Concretização de Políticas Públicas pelo judiciário: Limites e possibilidades
Inicialmente, deve-se salientar que, a priori, não é competência originária do Judiciário implementar ou formular políticas públicas, [17] que, para Maria Paula Dallari Bucci, são "programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados." (BUCCI, 2002, p. 241).
Ainda, segundo Teixeira (2002), citado por Santos et al. (2007, p. 829):
"Políticas Públicas" são diretrizes, princípios norteadores da ação do poder público; regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade, mediação entre atores da sociedade e do Estado. São esses casos, de políticas explicitadas, sistematizadas ou formuladas em documentos que orientam ações que normalmente envolvem aplicações de recursos públicos.
Logo, percebe-se que política pública é o Estado em ação. E também sabemos que o Estado deve "funcionar como uma máquina voltada, prioritariamente, para a satisfação dos direitos fundamentais" (CLÉVE, 2005). Portanto, de acordo com o caso em estudo, é possível esse tipo de atuação judiciária, como se aduz dessa passagem presente no voto do Ministro Celso de Mello, na ADPF/45:
Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.
A própria constituição estabelece seus fins essenciais, sendo a promoção dos direitos fundamentais, um deles. As políticas públicas, como já visto, constituem um meio para se alcançar esse fim, mas elas envolvem gastos, principalmente no que concerne aos direitos sociais (de segunda dimensão). O problema reside no fato de que como não há excesso financeiro, é necessário que se façam escolhas, e tais opções não são totalmente discricionárias, recebendo forte influencia de normas jurídicas (BARCELLOS, 2008).
Krell (2002), na conclusão de sua obra intitulada "Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha", afirma que se os doutrinadores alemães tivessem que lidar com uma situação como a nossa (de exclusão social), passariam a exigir do judiciário sua interferência nos outros poderes quando esses não cumprissem as exigências básicas da constituição.
Atualmente não se trata mais de saber se é viável ou não o controle judicial dos comportamentos públicos ilícitos. Tal posicionamento deriva do artigo 5º, inciso XXXV, da CF/88 [18] e também da noção de Estado Democrático de Direito. O que urge agora é reconhecer os limites a essa intervenção, a fim de que esta não seja inócua, e no outro extremo, não invada esferas discricionárias e políticas de outros poderes (CARVALHO, 2008).
Já existe na jurisprudência nacional casos que vão ao encontro do aqui defendido, como o Ag. Regimental no RE nº 410.715-SP, do relator Min. Celso de Mello:
[19]RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. - Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina (DJU de 03/02/2006, p. 76). (sem grifo no original).
Destarte, pode-se concluir que em alguns casos específicos deve haver sim, uma interferência do Judiciário nos outros poderes no que tange ao tema do presente capítulo. Porém, tal interferência encontra três grandes barreiras à sua efetivação, quais sejam: a previsão orçamentária, a cláusula da reserva do possível e a separação de poderes.
Nos próximos sub-capítulos iremos tratar com mais atenção desses obstáculos, tentando encontrar caminhos para transpô-los.
2.1 Planejamento Orçamentário
O orçamento, historicamente, era tido como uma peça que continha previsões de receitas e de gastos. Era meramente uma peça contábil. Já no mundo moderno, o orçamento é tido como um instrumento da ação estatal. Não vislumbra apenas aspectos de contabilidade como outrora, mas também os anseios de toda a sociedade.
A CF/88 prevê no artigo 165, três planejamentos orçamentários, quais sejam o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual. A lei orçamentária anual deve respeitar as diretrizes orçamentárias e ambas devem concordar com o orçamento plurianual [20].
O Plano Plurianual define o planejamento das atividades governamentais de longo prazo. É um plano conjuntural para a promoção do desenvolvimento econômico, do equilíbrio entre as regiões do país e da estabilidade na economia (TORRES, 2005). Está previsto no §1º, do artigo 165, da CF/88.
Já a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro seguinte, orientará a lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras de fomento, conforme expresso no artigo 165, §2º, da nossa constituição.
Por fim, tem-se a Lei Orçamentária Anual (LOA), que trata do orçamento fiscal e dos investimentos de empresas estatais, além da seguridade social.
Embora existam esses três tipos de lei tendo como tema o orçamento, deve-se ressaltar que o orçamento é uno, visto que deve existir harmonia entre estes três documentos. Tal unidade é um princípio extraído do §5° do artigo 165, da CF/88. Segundo Torres (2005, p. 118), "O princípio da unidade já não significa a existência de um único documento, mas a integração finalística e a harmonização entre os diversos orçamentos."
Ainda com fulcro no artigo supracitado, é possível extrair outro princípio orçamentário, que é o da universalidade, que significa que devem estar previstas na lei orçamentária todas as despesas e receitas.
A Constituição Federal de 1988 veda o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual [21], a realização de despesas que excedam os créditos orçamentários [22], bem como a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa [23].
Portanto, a interferência do judiciário esbarra na previsão orçamentária que, como já visto, tem o condão de impedir a criação de uma nova despesa no decorrer de seu período de vigência. Mas ocorre aqui que as opções na hora da feitura do orçamento não são totalmente livres, mas devem atender o disposto na Constituição, como a dignidade da pessoa humana e, conseqüentemente o respeito aos direitos fundamentais. Tal posicionamento é partilhado por Clèmerson Clève (2005):
Desta forma, tratar-se-ia de compelir o Poder Público a cumprir a lei orçamentária que contenha as dotações necessárias (evitando, assim, os remanejamentos de recursos para outras finalidades), assim como de obrigar o Estado a prever na lei orçamentária os recursos necessários para, de forma progressiva, realizar os direitos sociais.
Ainda sobre o planejamento orçamentário, Riani (2005, p. 182) afirma que:
Há diversas vinculações constitucionais expressas que, independentemente da vontade dos Poderes envolvidos, têm que ser feitas de determinada maneira (como a definição de recursos para a educação). A isto pode se chamar, pegando emprestada a terminologia de Canotilho, de heterovinculação dos responsáveis pela elaboração do orçamento.
Ou seja, em relação aos gastos vinculados aos ditames constitucionais, não há discricionariedade do Executivo.
Vale ressaltar que o orçamento não é mais admitido como uma peça meramente autorizativa, e sim como um programa. Portanto, ele é lei que precisa ser cumprida pelo Poder Executivo, de acordo com os princípios que regem a administração pública, sendo eles o princípio da legalidade, da economicidade e da eficiência.
2.2 O dogma da Separação de Poderes
O Princípio da Separação de Poderes já se encontrava nas obras de Aristóteles, John Locke e Rousseau, mas foi mais difundido com o iluminista Montesquieu, em sua obra "Do espírito das leis". Essa separação está presente na Constituição dos Estados Unidos de 1787 e na França por meio da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789.
Segundo Montesquieu (apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 155):
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções publicas, e o de julgar os crimes ou divergências dos indivíduos.
Esse princípio teve seu apogeu no início do constitucionalismo moderno, esteando, nas palavras de Paulo Bonavides (1972, p. 36):
...a organização política do novo Estado liberal-democrático, amparado no triunfo doutrinário que coroou a rebelião das 13 colônias americanas e a insurreição libertadora da burguesia revolucionária de França, em fins do século XVIII.
Em nossa constituição tal princípio se encontra no artigo 2º [24], que declara que os poderes da União são independentes e harmônicos, sendo, inclusive, uma clausula pétrea [25].
Esse instituto serviu para evitar a concentração de poderes na mão do soberano, figura comum na época do Estado Absoluto, anterior as revoluções burguesas. O intuito básico dessa divisão do poder reside na real garantia dos direitos fundamentais, situação mais fácil de ser encontrada em um Estado onde esse princípio atuava. Ele era uma "arma de que se valeu a doutrina para combater sistemas tradicionais de opressão política" (BONAVIDES, 1972, p. 47).
Posteriormente, foi elaborado o sistema de "freios e contrapesos" (checks and balances), no qual o poder limita o próprio poder, evitando abusos e o arbítrio das autoridades.
Porém, hoje em dia, para ser interpretado corretamente, esse princípio deve ser visto de forma temperada, com ajustes à luz das diversas realidades constitucionais e não mais da forma rígida de outrora. O princípio em foco pregava a diminuição do Estado, e não o seu alargamento, porém, com o Estado Social, cresceram os fins do Estado. O mundo moderno impôs ao poder estatal sua ampliação e o aumento de suas responsabilidades (BONAVIDES, 1972).
Portanto, o dogma da separação de poderes tem que ser revisto, principalmente, no que tange ao controle dos gastos públicos e da prestação de serviços básicos no Estado Social, visto que atua com um efeito paralisante nessas sociedades (KRELL, 2002), não podendo ser visto como uma contradição aos direitos sociais (BONAVIDES, 1972). Ele "já não oferece em nossos dias o fascínio das primeiras idades do constitucionalismo ocidental" (BONAVIDES, 1972, p. 36), devido, como já explicado, ao crescimento do Estado Social.
Na verdade, já existe certa modernização desse princípio. Dentre as exceções a ele temos a legislação emanada do Poder Executivo, como as Medidas Provisórias (art. 62, CF/88), assim como a oriunda do Judiciário, fruto da criatividade dos juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é freqüente a criação de normas de caráter geral. Também encontramos outra exceção a esse princípio na autorização de delegação de atribuições legislativas ao Presidente da República (art. 68, CF/88). Não se pode esquecer também da figura do Mandado de Injunção, presente no artigo 5º, inciso LXXI, da CF/88.
A quebra desse princípio também é também notada na participação mais ativa do Ministério Público, seja ele Estadual ou Federal, a partir da Constituição Federal de 1988, na questão dos direitos difusos e coletivos. Tal atuação é facilmente encontrada no que diz respeito à sua ativa participação frente aos poderes do Estado, como no caso de defesa da saúde, conforme veremos adiante.
Deve se atentar também para a existência de alguns órgãos de fiscalização, como os Tribunais de Contas e o supracitado Ministério Público, que não se encaixam em nenhum dos três poderes tradicionais.
Em suma, é um poder-dever do Judiciário, por omissão do Estado na concretização de algum direito fundamental ou de lacuna legislativa que venha a impedir sua fruição, aplicar diretamente o preceito definidor desse direito. O poder judiciário tem a capacidade de "por meio de uma interpretação construtiva, de criar o Direito, de modo que os juízes e os tribunais são considerados autênticos Law-makers"(CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 358). Então, nesses casos, o dogma da separação dos poderes deve ser quebrado.
2.2.1 Atuação do Ministério Público em Juiz de Fora: Dados concretos.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, deu nova roupagem ao Ministério Público, dando lhe uma atenção inédita em nossa história. Ele tem seu caráter permanente e essencial à função jurisdicional do Estado proclamado e fortalecido nessa Carta (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008).
Sua origem mais aceita [26] é a que prega que ele é:
...filho da democracia clássica e do Estado de Direito, nascidos da Revolução Francesa de 1789, que, abolindo o Estado autoritário do Ancien Régime, instituiu uma nova ordem, baseada no respeito à lei, como expressão da vontade geral (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 993).
Segundo nossa Carta Magna, cabe ao Ministério Público [27] a defesa dos interesses sociais da sociedade, além da função de zelar pelo efetivo respeito aos direitos assegurados na nossa Constituição, através da promoção das medidas necessárias à sua garantia.
Com vistas a um mapeamento da situação local sobre o tema em foco, foram coletados alguns dados estatísticos acerca da atuação do Ministério Público no município de Juiz de Fora/MG no que concerne à área da Saúde. Esses números foram auferidos com o intuito de se verificar a importância cotidiana que o acesso à saúde representa para a sociedade brasileira, e em especial, a juizforana.
O MP possui inúmeros meios para se fazer respeitar a defesa do direito a saúde, como a Ação Civil Pública [28] e outros mais que veremos adiante.
A 20ª Promotoria, que possui competência para tratar da Defesa da Saúde (e também dos Direitos dos Deficientes e Proteção ao Idoso), emitiu novecentos e quarenta e dois pareceres em Mandados de Segurança nos anos de 2006 e 2007. Os pedidos desses mandados consistem, basicamente, na prestação de medicamentos, insumos farmacêuticos, leitos hospitalares, cirurgias e exames, entre outros procedimentos médicos.
O Parquet realizou ainda, vinte e seis Procedimentos Administrativos [29] ao longo do biênio supracitado, tendo como objeto a não realização de obras necessárias em algumas UBS´s (Unidades Básica de Saúde), o dimensionamento de pessoal e a falta de medicamentos, como o Etanercept [30] e o Rituximabe [31], entre outros casos relacionados à temática desse trabalho.
As ações supracitadas correspondem às medidas jurídicas tomadas por essa promotoria especializada. Porém, existe ainda a hipótese de serem realizados procedimentos diferentes dos supracitados, tal como encaminhar diretamente um ofício para a Secretaria de Saúde, Saneamento e Desenvolvimento Ambiental da Prefeitura de Juiz de Fora, com o intuito de pleitear algum medicamento anteriormente recusado. O número total desses atendimentos feitos pelo MP é da ordem de duzentos e seis em 2006 e de trezentos e dezoito em 2007, totalizando quinhentos e vinte e quatro [32] nesses dois anos.
Ou seja, foram realizadas, nesse biênio, cerca de mil quatrocentas e noventa e duas ações com o intuito de realmente efetivar o mandamento constitucional da Saúde, no município pesquisado.
2.3 A Reserva do Possível
A cláusula da Reserva do Possível, nas palavras de Canotilho (2002, p. 481), traduz "a idéia de que os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos."
Essa cláusula tem origem germânica, em um julgamento de um caso em que estudantes alemães queriam vagas em determinadas universidades desse país. A Corte Constitucional Federal da Alemanha no caso numerus clausus, BVerfGE n.º 33, S. 333, decidiu que:
...a prestação reclamada deve corresponder ao que o individuo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável (SARLET, 2003, p. 276).
As decisões judiciais têm exigido, além da falta de recursos por parte do Estado, a sua real comprovação, com o intuito de se evitar que ela vire uma desculpa para a ausência das prestações estatais. O Supremo Tribunal Federal se coaduna com esse sentido:
É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade (STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04, g. n.).
Portanto, diferindo do que normalmente se apregoa acerca da reserva do possível, sua utilização é balizada não apenas por questões de cunho financeiro, mas também deve ser levada em conta a pretensão deduzida no caso concreto, pois o pedido tem que ser balizado pelo razoável. Mesmo no caso do Estado possuir recursos vultosos, não deve deferir pleitos irrazoáveis dos indivíduos. Destarte, a reserva do possível pode ser utilizada somente nos casos em que sua fundamentação estiver alicerçada em dois fatores concomitantes, quais sejam: a) a razoabilidade do objeto pretendido e b) a real ausência de recursos por parte do Estado; binômio presente na anteriormente citada ADPF/45, no voto do relator Ministro Celso de Mello.
Tem-se como exemplo disso a decisão do Presidente do TRF/4ª Região, na Suspensão de Segurança nº 20050401000213-1/PR [33], requerida em face de liminar concedida em mandado de segurança em que o impetrante postulava liberação de recursos para realização de uma cirurgia nos Estados Unidos da América.
A suspensão foi deferida tendo em vista grave lesão à saúde e à economia públicas ao privilegiar-se uma situação particular. Nas palavras do Desembargador Vladimir Passos de Freitas:
O Estado, ao liberar vultosa soma (U$ 275.000 − duzentos e setenta e cinco mil dólares) para atender a uma situação isolada, prejudicaria as demais políticas públicas voltadas à saúde (...) Saliente−se que há notícias de que o custo de uma cirurgia de intestino realizada no Brasil custa aproximadamente U$ 41.379, ou seja, aproximadamente U$ 260.000,00 (duzentos e sessenta mil dólares) menos do que a de uma realizada na América do Norte. Assim, considerando que os recursos orçamentários são limitados, não há como deixar de considerar procedente o argumento da União, segundo o qual o cumprimento da liminar causaria grave ofensa à economia e saúde públicas.
Outro caso que se coaduna com o exposto no anterior é o MS nº 296.243-9 de Relatoria do Des. Jarbas Ladeira:
Conceder liminares e ordens no sentido de se obrigar a Administração Pública a arcar com os altos custos e tratamentos médicos longos e caros é uma prática que vem se tornando comum em nossos Fóruns e Tribunais, e que, caso seja realmente disseminada sem controle (a continuar a atual tendência jurisprudencial), pode acabar provocando um grande caos financeiro e administrativo em nosso país. De fato, é sabido que o Estado nem de longe possui recursos necessários para proporcionar, a cada um que dele necessita, o devido tratamento médico, e não se pode tentar "a fórceps" retirar esses recursos de um combalido e extremamente deficitário sistema público de saúde.
Em resumo, não se pode olvidar a realidade do déficit financeiro e operacional em que tem de atuar o Estado, desconsiderando totalmente a falta de recursos da administração, apenas pra invocar preceitos constitucionais cuja aplicação plena e satisfatória é difícil e, muitas vezes impossível.
Além do mais, verifica-se que, no caso presente (a teor de estudos que já fiz a respeito do tema), o Sistema Único de Saúde já fornece gratuitamente um outro medicamento indicado para o tratamento da hepatite C, que é uma variante do medicamento pretendido pelo Impetrante. Chama-se Interferon Alfa. Esse medicamento custa dez vezes menos que o Interferon Peguilado.
Outrossim, não considero presente nos autos a demonstração de que o medicamento mais barato, disponível pelo sistema público de saúde, seria imprestável no caso do Impetrante. Seu direito está sendo respeitado, com o fornecimento de remédio apropriado, embora não tão moderno quanto o que ele deseja (julgado em 30/04/2003).
Nesse caso, os Desembargadores aplicaram corretamente a reserva do possível, se utilizando do binômio supracitado, visto que não há recursos e que no primeiro caso, a tal cirurgia (transplante de intestino delgado) se apresenta disponível – e de qualidade - em nosso país e, no segundo caso, já é disponível um remédio (pelo menos a priori) indicado para o tratamento do Impetrante, não havendo motivos para despender o montante pleiteado.
É necessário ressaltar que vários autores, como Canotilho (2003) e Marcelo Novelino (CAMARGO, 2008), afirmam que a reserva do possível também não pode ser usada quando se trata de efetivar o mínimo existencial, pois este, como já dito anteriormente, é imprescindível a uma vida digna, não entrando nesse caso, no rol dos direitos sociais.
Outra interessante solução é apontada por Krell (2002) e compartilhada por Cunha Júnior (2008). Ela trata do remanejamento de recursos de áreas não tão intimamente ligadas aos direitos fundamentais (fomento econômico, transporte, serviço da dívida, etc.) para suprir as necessidades mais básicas da sociedade. Ressalte-se que aqui não estamos a falar necessariamente de sobras orçamentárias, mas sim, apenas de realocação dessas verbas dentro do abarcado pela própria peça orçamentária.
Por fim, deve-se atentar para o fato de que esse instituto da reserva do possível tem, como supracitado, origem germânica. Diante desse fato, é imperativo que se ressalve que é discutível o traslado de teorias de países centrais, com condições econômicas, sociais e históricas próprias, para países em desenvolvimento como o Brasil, sem as devidas ponderações.
Nesses países mais evoluídos, já existe um ótimo padrão de bem estar, por isso o posicionamento jurídico desses é diferente do encontrado aqui. Tais nações não vivem em um estado de crise social com milhões de cidadãos excluídos.
Para ilustrar esse fato, remetemos à brilhante exposição de Virgílio Afonso da Silva (2005, p. 116):
Não é difícil perceber que a doutrina jurídica recebe de forma muitas vezes pouco ponderada as teorias desenvolvidas no exterior. E, nesse cenário, a doutrina alemã parece gozar de uma posição privilegiada, já que, por razões desconhecidas, tudo o que é produzido na literatura germânica parece ser encarado como revestido de uma aura de cientificidade e verdade indiscutíveis.