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O direito social à saúde e atuação do Poder Judiciário no Brasil

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06/07/2011 às 13:55
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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL: O MÍNIMO EXISTENCIAL. 1.1 Os direitos fundamentais. 1.1.1 Conceitos e características. 1.1.2 Evolução histórica: as dimensões dos direitos fundamentais. 1.1.3 Artigo 5º, §1º, CF/88: A auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais – interpretação adequada. 1.2 O direito a saúde como direito fundamental viabilizador da dignidade humana. 1.2.1 Eficácia negativa do direito à saúde: Proibição principiológica do retrocesso social . 2 CONCRETIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELO JUDICIÁRIO: LIMITES E POSSIBILIDADES. 2.1 O planejamento orçamentário. 2.2 O dogma da separação de poderes.2.2.1 Atuação do Ministério Público em Juiz de Fora: Dados Concretos. 2.3 A reserva do possível. CONCLUSÃO .REFERÊNCIAS


Introdução

A saúde é um tema de suma importância em qualquer sociedade, em qualquer época. É indiscutível que ela é necessária para o livre desenvolvimento do homem, seja na infância, na vida adulta ou na velhice.

Como veremos adiante, mesmo estando presente em diversos ordenamentos jurídicos já há algum tempo, nem sempre presenciamos sua real efetivação. Tal ausência acarreta graves problemas sociais.

Nesse contexto, alguns dados sobre o município de Juiz de Fora foram colacionados, servindo como exemplos de tais problemas. Localizada na Zona da Mata Mineira do estado de Minas Gerais, a cidade em questão, de porte médio, conta com 30% da população sem acesso regular aos serviços básicos de saúde (Arbex, 2008), levando-se em conta um total de 517.029 habitantes, segundo o Caderno de Informações de Saúde (BRASIL, 2006).

Outros dados significativos sobre a saúde em Juiz de Fora mostram que existem cerca de sete mil pessoas esperando por cirurgias. O mapa de desassistência da cidade identifica uma grande área sem cobertura de Unidades Básicas de Saúde, o que causa colapso nas unidades regionais e no Hospital de Pronto Socorro (HPS) (Arbex, 2008).

Além do supracitado problema em termos de infra-estrutura, impossibilitando cirurgias e procedimentos médicos, também ocorre a falta de medicamentos e outros insumos farmacêuticos na cidade, agravado com a perda de duas toneladas de remédios vencidos, conforme reporta Arbex (2008).

A relevância do tema também se configura se atentarmos para o número de internações realizadas em 2006, que é da ordem de 43.248 e para o montante de atendimentos básicos realizados por habitante, qual seja, 4,6 (BRASIL, 2006).

Esse trabalho tem como escopo tratar da busca de maneiras possíveis para alcançarmos a efetivação do direito fundamental à saúde. Porém, não temos o intuito de esgotar o tema, visto que existem inúmeros problemas por trás dessas questões, como o fato de Juiz de Fora ser uma cidade pólo na região, atraindo para si pessoas de outras localidades. Embora previsto na concepção do Sistema Único de Saúde (SUS) [01], a hierarquização municipal deve ser garantida através de repasses orçamentários, que, se ocorrem e/ou como ocorrem, não nos cabe aqui discutir.

Diante desse quadro de não efetivação dos direitos fundamentais, iremos tentar elaborar hipóteses que irão tornar possível tal eficácia. O presente trabalho atuará de forma mais específica com essa temática presente no dia a dia de milhões de brasileiros.

Para tentarmos solucionar essa problemática, iremos nos utilizar, já no capítulo seguinte à introdução, do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que norteará e fundamentará essa produção através do respeito ao mínimo existencial e aos direitos fundamentais - do qual a saúde, enquanto direito social de segunda dimensão faz parte - passando pelo histórico desses direitos e a questão de sua aplicabilidade entre outros assuntos relacionados a esse trabalho.

No segundo capítulo, trataremos mais detalhadamente da interferência do judiciário, abarcando seus limites mais complexos, como a famigerada reserva do possível, o vetusto dogma da separação de poderes e o planejamento orçamentário. Dentro do citado princípio da separação de poderes, cuidaremos da atuação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e sua atuação no município de Juiz de Fora, trazendo à tona alguns outros dados estatísticos para ilustrar o tema. Lidaremos também com algumas possibilidades para o contorno desses supracitados limites.

Para tanto, nos utilizaremos, em termos de método, da abordagem dedutiva, visto que é a que melhor se coaduna com os objetivos propostos. Partindo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e seus derivados, como o mínimio existencial e os direitos fundamentais e dos limites da interferência do judiciário nos outros poderes, buscaremos discutir uma alternativa para transpormos esses obstáculos, com base na Constituição Federal.

O trabalho assumiu, assim, feição interdisciplinar, tendo em vista o envolvimento de temas pertinentes ao direito constitucional, ao direito administrativo, ao direito financeiro e também às políticas públicas.

A técnica de pesquisa que se mostrou mais adequada foi a documentação indireta, isto é, aquela realizada através de pesquisa documental e bibliográfica, com destaque para análises judiciais atinentes ao tema, da legislação vigente e da doutrina. Não obstante, a experiência como estagiário na 20ª Promotoria Especializada (defesa da saúde, direito dos deficientes e proteção ao idoso) ao longo de mais de um ano, contribuiu de forma significativa para o melhor desenvolvimento do tema em questão.


1 A dignidade da Pessoa Humana como princípio jurídico-constitucional: o mínimo existencial

O Princípio da Dignidade da pessoa humana serve de esteio para os modernos [02] ordenamentos jurídicos e se encontra no artigo 1º, inciso III, da CF/88 [03] e em vários outros códigos, como nos artigos 1º da Lei Fundamental da Alemanha e da Constituição da Republica Portuguesa [04], nos preâmbulos das Cartas das Nações Unidas de 1945 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, entre outros. Ele aparece também como escopo da ordem econômica, como consta no artigo 170 da CF/88, além de outros artigos, como o 226, §7º; o 227 e o 230, todos da CF/88. Vale ressaltar que a dignidade da pessoa humana:

...não é um direito concedido pelo ordenamento jurídico, mas um atributo inerente a todos os seres humanos, independentemente de sua origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outros requisitos. A consagração no plano normativo constitucional significa tão-somente o dever de promoção e proteção pelo Estado, bem como o respeito por parte deste e dos demais indivíduos (CAMARGO, 2008, p.155-156).

É possível destacar o pensamento do qual a dignidade retira seu núcleo essencial: a tradição cristã. Ela é responsável pelo seu surgimento no mundo ocidental e prega que, pelo fato de que os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus, possuem uma igualdade essencial (CAMARGO, 2008). [05]

O princípio em tela atua também como um macro princípio, do qual se irradiam inúmeros outros, dele derivando também, a exigência de cumprimento e promoção dos direitos fundamentais.

A Corte Constitucional Alemã retirou a idéia de mínimo existencial do princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à vida e à integridade física, mediante uma interpretação sistemática dos princípios do Estado Social. Sua jurisprudência confirma a existência de um Direito Fundamental ao mínimo vital (KRELL, 2002).

Tem-se que ressaltar que esse mínimo abarca não apenas o lado físico do ser humano, mas também se refere ao aspecto psicológico e intelectual.

Quando o mínimo existencial não é respeitado, observa-se uma ofensa ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Portanto, é uma obrigação do Estado Social dar aos indivíduos recursos básicos necessários a um mínimo de satisfação de suas necessidades. Um não existe sem o outro.

É tarefa das mais árduas definir o que é esse mínimo ou tentar elencar de forma taxativa suas características [06], porém, segundo Andreas Krell (2002, p. 63), ele deve abranger "sempre um atendimento básico e eficiente de saúde, o acesso a uma alimentação básica e vestimentas, à educação de primeiro grau e a garantia de uma moradia" [07]. Porém, esse mesmo autor prega que o seu conteúdo concreto varia de país para país. Tal idéia se apresenta de várias formas, como nos projetos de lei que tratam de uma renda mínima (FRISCHEINSEN, 2000). Krell (2002) preconiza que o texto constitucional tem que ter respaldo na realidade existente, portanto, deve-se tomar cuidado com as promessas constitucionais para que não ocorra, como ele mesmo conceitua, uma "frustração constitucional".

Nesse mesmo sentido, Ana Paula de Barcellos (apud CAMARGO, 2008) pensa que o mínimo existencial (ou núcleo da dignidade humana) serve como uma proposta de superação das dificuldades da dignidade humana, visto que atua como um subconjunto menor que minimiza os problemas dos custos, sendo mais preciso e efetivamente exigível do Estado.

O autor português J. J. Gomes Canotilho anotou o seguinte:

Relativamente aos direitos, liberdades e garantias, a Constituição portuguesa garante e protege um núcleo essencial destes direitos contra leis restritivas (núcleo essencial como reduto último de defesa). Coloca-se também o problema de saber se os direitos econômicos, sociais e culturais exigem a garantia de um núcleo essencial como condição do mínimo de existência (núcleo essencial como standard mínimo). Das várias normas sociais, econômicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda a ordem econômico-social portuguesa: todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economic and social rights), na ausência do qual o estado português se deve considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas. Nesta perspectiva, o "rendimento mínimo garantido", as "prestações de assistência social básica", o "subsídio de desemprego" são verdadeiros direitos sociais originariamente derivados da constituição sempre que eles constituam o standard mínimo de existência indispensável à fruição de qualquer direito (CANOTILHO, 2003, p. 518).

Observa-se que em sede jurisprudencial, mais especificamente, no Supremo Tribunal Federal, já vem sendo adotado posicionamento alinhado com o que foi até então exposto. Segundo o Ministro Celso de Mello:

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04, g. n.).

Em suma, ambos os conceitos estão interligados. Portanto, como já explicitado, esse mínimo tem que ser respeitado para que seja também respeitado o Principio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e, por conseguinte, os direitos fundamentais.

1.1 Direitos Fundamentais

1.1.1 Conceito e características

Pode-se conceituar os direitos fundamentais como um conjunto de prerrogativas e instituições, que, de acordo com o momento histórico, realizam as idéias de liberdade, igualdade e dignidade entre os homens, indispensáveis a uma sociedade política. Nesse mesmo sentido, nas palavras do constitucionalista José Afonso da Silva, os direitos fundamentais do homem são, "No nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas." (SILVA, 2004, p. 178).

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Sarlet (2003) esclarece que o reconhecimento e positivação dos direitos fundamentais são concretizações do que prega o princípio da dignidade da pessoa humana.

No presente trabalho não se irá trabalhar com todas as características dos direitos fundamentais [08], mas apenas com uma delas, a historicidade, visto que acompanhar o desenvolvimento ao longo dos tempos desse direito é importante para o entendimento dos mesmos.

1.1.2 Evolução Histórica: as dimensões dos direitos fundamentais

Usualmente costuma-se dividir os direitos fundamentais em três gerações [09]. Tal distinção se baseia no fato de que os direitos fundamentais sofreram várias mudanças ao longo dos séculos. Porém, o termo "gerações" sofre muitas críticas da doutrina, visto que tal expressão pode passar a impressão da substituição de uma geração por outra. Por esse motivo o termo "dimensões" é o mais aceito, visto que contempla a presença de todas elas concomitantemente, o que reafirma sua unidade e indivisibilidade no contexto constitucional interno. Ou seja, tais gerações estão interligadas e não devem ser vistas de forma estanque. São equiparadas ao tema da Revolução Francesa: "Liberdade, Igualdade e Fraternidade".

Os direitos fundamentais de primeira dimensão são resultado das idéias liberais do século XVIII, o Século das Luzes. São também chamados de direitos de defesa, visto que são direitos do indivíduo frente ao Estado. Eles se caracterizam por uma não-atuação do Estado (non facere) sendo, portanto, de status negativo e um limite à ação estatal. Nessa fase havia um descaso em relação às desigualdades sociais, já que a maior preocupação era com a liberdade do cidadão. São exemplificados pelos direitos civis e políticos, quais sejam, os direitos à vida, à liberdade e à propriedade, entre outros.

Com a queda do Estado liberal e o crescimento do Estado do bem-estar social (Welfare State), a figura estatal passou a atuar ativamente na sociedade, não havendo mais espaço para o ideal absenteísta de outrora. Tal ação encontra fundamento na busca da igualdade material e de fato e não apenas da igualdade formal. Esse movimento deu origem à segunda dimensão de direitos fundamentais, caracterizada pelos direitos sociais, econômicos e culturais, por se ligarem, como supracitado, a reivindicações de justiça social. São direitos positivos que dependem da atuação estatal (facere). Os diretos fundamentais sociais não são direitos contra o estado, mas sim direitos através do estado (CUNHA JÚNIOR, 2008). São os direitos a prestações. São exemplos dos direitos de segunda dimensão a educação, o trabalho e a saúde.

Os direitos de terceira dimensão versam sobre solidariedade e fraternidade. São direitos de titularidade coletiva ou difusa, não tratando mais do homem como um ser individual e isolado. Entre tais direitos se encontra o direito à paz, ao meio ambiente e à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural.

A teoria que defende que existam direitos de quarta dimensão ainda não se encontra consolidada no mundo jurídico atual. Em nosso país essa nova divisão é preconizada por Paulo Bonavides, que defende ser a mesma o resultado da globalização dos direitos fundamentais (não podendo existir fronteiras para estes). A citada divisão é composta pelos direitos à democracia, à informação e ao pluralismo.

Mais uma crítica às dimensões de direito é tecida pela doutrina. Tal crítica reside na afirmação de que os direitos de primeira geração se caracterizam por uma ausência do agir estatal. Porém, para proteger o direito ao patrimônio, por exemplo, que é, de fato, de primeira dimensão, é necessário que se tenha um aparato policial, ou seja, é preciso ensejar gastos públicos. Assim como o direito à greve, tipicamente social, contém como nota marcante um não-agir estatal, não acarretando gastos do erário.

Os direitos fundamentais possuem funções múltiplas, o que leva que sua estrutura não seja única, ensejando algumas classificações úteis para a melhor compreensão de sua essência. Acima, já vimos uma das importantes distinções dessa seara, que trata dos direitos de defesa e dos direitos a prestações.

No final do século XIX, Jellinek desenvolveu a famosa doutrina dos quatro status em que o indivíduo pode se encontrar face ao Estado. O indivíduo pode se achar em uma posição de subordinação aos poderes públicos, tendo deveres para com o Estado, sendo esse o status subjectionis ou status passivo. Temos ainda o status negativo, já que o homem precisa gozar de um espaço de liberdade em relação ao Estado. Já nas situações em que o indivíduo pode demandar algo dos poderes públicos, há o status positivo, ou status civitatis. E por fim, há o status ativo, que ocorre quando o indivíduo possui competência para influir sobre a formação da vontade estatal (direitos políticos).

Há ainda a divisão feita por Canotilho, que os separa em direitos originários a prestações e direitos derivados a prestações. Os originários são reconhecidos a partir da garantia constitucional de certos direitos, reconhecendo-se o dever do Estado na criação de pressupostos materiais (indispensáveis ao exercício desses) e a possibilidade do cidadão exigir prestações constitutivas desses direitos. Os direitos sociais, econômicos e culturais se enquadram nesse pólo. Já os direitos derivados, para os cidadãos, resultam no direito ao igual acesso, obtenção e utilização das instituições criadas pelo poder público, ao longo das realizações do Estado, como o igual acesso as escolas, aos transportes e as telecomunicações.

Deve-se identificar a saúde, que integra o tema do presente trabalho, como um direito prestacional originário, social e de segunda dimensão. Tais direitos, por demandarem uma ação estatal, sempre enfrentaram problemas no tocante a sua aplicabilidade, que é o próximo tema desse trabalho.

1.1.3 Artigo 5º, §1º, CF/88: A auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais – interpretação adequada

Os direitos fundamentais, muito embora sejam sede de grande celeuma, são normas programáticas. Tais normas não representam meras recomendações ou preceitos morais com eficácia ético-política meramente diretiva, mas constituem Direito diretamente aplicável (KRELL, 2002). Segundo Canotilho (2003), não se deve falar de simples eficácia programática, já que qualquer norma constitucional é obrigatória perante os órgãos do poder político, além de servirem como princípios e regras de diretrizes para o legislador e a administração.

De acordo com o artigo 5º, §1º [10], da nossa Constituição Federal, os supracitados direitos possuem aplicação imediata [11]. Esse princípio da aplicabilidade imediata atinge não só os direitos previstos na Constituição, como também aqueles não previstos expressamente nela, mas que também possuam a característica da fundamentalidade material.

Entretanto, esse preceito constitucional enquadra um tema não pacífico na doutrina nacional. Existem posições diametralmente opostas nessa seara no que diz respeito à aplicabilidade dessa espécie de direitos. Existem aqueles que defendem que essa norma não pode ir contra a natureza das coisas, enquanto outros pregam que até mesmo as normas de cunho programático podem ensejar o gozo do direito subjetivo individual, independentemente de interposição do Legislativo. O único ponto em comum entre as diversas teorias existentes é que, com essa expressa previsão, o constituinte objetivou impedir que os direitos fundamentais viessem a ser letra morta no corpo constitucional (SARLET, 2003).

Porém, Celso Bastos, apud Sarlet (2003), em uma posição intermediária em relação aos extremos opostos acima descritos, prega que os direitos fundamentais são a priori diretamente aplicáveis, salvo quando: a) a Constituição remeter sua concretização ao legislador, estabelecendo que ele seja exercido na forma da lei, ou b) quando a norma não contiver os elementos básicos que venham a garantir sua aplicabilidade, por não possuir normatividade para tal. Nesse caso é necessária a atuação do Judiciário na posição de legislador.

Entre as diversas correntes existentes sobre esse tema, a posição que cremos ser a mais sensata é aquela defendida por Ingo Sarlet, que preconiza que essa norma tem cunho principiológico, sendo ela "uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais" (SARLET, 2003, p. 258), entendimento não apenas dele, como também de Flávia Piovesan (apud Sarlet 2003), que entende que tal dispositivo impõe aos órgãos públicos a tarefa de "maximizar a eficácia" dos direitos fundamentais.

Ainda segundo Sarlet, a aplicabilidade imediata e eficácia plena desses direitos (e somente dos direitos fundamentais) têm que ser entendida como uma regra geral, a qual suporta exceções, desde que justificadas convincentemente.

No mesmo sentido, José Afonso da Silva (2005) diz que as normas devem ser aplicadas até onde possam (até onde haja condições para seu atendimento) e, em segundo lugar que, se invocado, o poder judiciário não pode deixar de garantir o direito reclamado ao cidadão.

O principal nessa seara, já de certa forma pacificada pela doutrina e jurisprudência, é que a "negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos direitos fundamentais sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos" (KRELL, 2002, p. 23).

1.2 O direito à saúde como direito fundamental viabilizador da dignidade humana

No âmbito internacional, a primeira constituição a tratar a saúde como direito fundamental do indivíduo e interesse da coletividade foi a italiana, em 1948 (SILVA, 2004) [12].

Já no âmbito nacional, as Constituições anteriores à atual não foram totalmente omissas no que concerne à questão da saúde. Porém, não se pode negar que a Constituição Cidadã de 1988 (CF/88) elevou a outro patamar essa questão de suma importância. Ela foi a primeira a dar uma relevância maior à saúde, tratando-a como direito fundamental. Esse novo tratamento foi ao encontro das principais declarações internacionais de direitos humanos.

Nossa Constituição trata da saúde ao longo de diversos dispositivos, como o artigo 23, inciso II, que expressa que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuem competência comum para cuidar da saúde ou, ainda, o artigo 24, inciso XII que versa sobre a competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal sobre a defesa da saúde. Outros artigos importantes na nossa Constituição são os presentes na Seção II (Da saúde), do Capítulo II (Da seguridade social), do Título VIII (Da ordem social), que versam sobre a saúde. Tais artigos (do art. 196 ao art. 200) tratam do Sistema Único de Saúde, entre outros.

Um destaque maior deve ser dado ao supracitado artigo 196, que consagra:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O artigo 6º da carta constitucional brasileira dispõe que a saúde é um direito social (juntamente com a educação, moradia, trabalho, lazer, segurança, previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados) e por estarem situados no Título II, da anteriormente citada Constituição, são direitos fundamentais.

Além disso, deve-se atentar para o fato de que os anteriormente referidos artigos (arts. 196 a 200) não se encontram elencados no rol dos direitos fundamentais do artigo 5º e seguintes de nossa carta magna. Porém, tal direito é materialmente fundamental, independentes de sua posição na Constituição devido ao seu conteúdo, oriundo da dignidade da pessoa humana. Por tal motivo, esse direito se equipara aos formalmente materiais. De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet (2003), para uma posição jurídica ser considerada um direto fundamental deve equivaler em seu conteúdo e dignidade aos direitos fundamentais do catálogo. É também assim considerado com base no artigo 5°, §2° [13], da CF/88, que amplia as hipóteses de direitos fundamentais, inclusive, para além do texto constitucional.

O mote da saúde é também encontrado em diversos diplomas infraconstitucionais, como no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), que em seu artigo 9º preconiza que é obrigação do Estado garantir ao idoso a proteção à saúde. [14] É objeto também da lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, que versa sobre o SUS.

No que concerne a essa temática, cabe aqui uma pequena explicação sobre o funcionamento e características desse sistema. É atribuição do Sistema Único de Saúde (SUS) a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, nos termos do artigo 5º, inciso III, da Lei 8.080/90 [15]. Na mesma legislação, está também expresso que se inclui no campo de atuação do SUS a "assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica".

Mais adiante, nos artigos 16 a 18 dessa lei federal, estão elencadas as ações que competem a cada direção (nacional, estadual e municipal) do SUS. Porém, dentre as ações apontadas nesses dispositivos, não há referência específica sobre a integralidade dos atos prestados por esses entes federativos, o que leva à conclusão que as três esferas de ação do SUS são igualmente responsáveis pela sua prestação. Todos eles, portanto, são legitimados passivos na ação em que se pleiteiam procedimentos ou medicamentos que deveriam ser prestados por esse sistema. A Norma Operacional Básica – NOB 1/96 também trata de aspectos relevantes do SUS (como a questão do repasse de recursos de um município para o outro), assim como a Lei 8.142/90, que versa sobre a participação da comunidade na gestão desse sistema e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde.

O SUS é regido pelos princípios da descentralização, do atendimento integral e da participação da comunidade. É financiado com recursos do orçamento de todos os entes federativos, além de outras fontes. A Emenda Constitucional nº 29 de 2000 deu nova redação ao artigo 198, da Constituição Federal, prevendo a aplicação de recursos do produto de suas arrecadações de tributos e de transferências em porcentagens e critérios estabelecidos em Lei Complementar [16].

Entretanto, apesar de toda essa positivação em nosso ordenamento jurídico, há um grave problema presente nesse tipo de direitos, como os de segunda dimensão, que é a necessidade do gasto público. Gasto esse, que é restringido por vários fatores, encontrando tanto limites fáticos (reserva do possível) como jurídicos (previsão orçamentária), o que acaba fazendo com que exista certa relativização na eficácia e efetividade desses direitos prestacionais.

Na Alemanha, assim como no Brasil, se sabe que promessas constitucionais exageradas (mediante os direitos fundamentais sociais) são capazes de levar a uma "frustração constitucional", o que acarreta no descrédito da própria instituição (Krell, 2002). Segundo a teoria de Loewenstein (apud Krell, 2002, p. 27), "a carta brasileira representaria uma constituição nominal, cujas normas ainda não estão sendo acompanhadas por parte do processo político dinâmico." Segundo essa teoria, as citadas promessas constitucionais exageradas serviriam como um estímulo aos detentores do poder e uma "fonte de esperança" para os beneficiados.

Porém, tal teoria é rechaçada por Marcelo Neves (Krell, 2002) que diz que muitas normas, por não terem como serem efetivadas, servem somente como um álibi para criar a imagem de um Estado que responde através de normas aos problemas da coletividade, desempenhando uma função ideológica em desenvolver uma forma de manipulação ou ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas.

1.2.1 Eficácia negativa do direito à saúde: Proibição principiológica do retrocesso social

Para tratar da eficácia negativa do direito fundamental à saúde, devemos retomar a crítica feita anteriormente à afirmação de que os direitos de segunda dimensão são sempre caracterizados por um agir estatal, que culmina no gasto de recursos. O tema estudado nesse trabalho, a saúde, também possui uma dupla conotação nesse sentido. Isso decorre do fato de a mesma não só impor ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a real efetivação desse direito, como também possuir a nota característica dos direitos de defesa, no sentido que impede ingerências indevidas por parte não só do Estado, mas também de terceiros na saúde da sociedade. Ou seja, há um não agir, ocorre uma omissão estatal nesse direito social (SARLET, 2002). Como exemplos dessa faceta negativa, temos o impedimento do Estado de editar normas que possam prejudicar a saúde da população ou mesmo de evitar a violação direta da integridade física de um cidadão pelo Estado.

Ainda nesse contexto, deve-se salientar o papel de um princípio não muito difundido entre nós, mas que tem tido uma crescente acolhida no âmbito da doutrina defensora do Estado democrático de direito (SARLET, 2002), que é o princípio da proibição do retrocesso (também conhecido como princípio do não retrocesso social), derivado dessa eficácia negativa supracitada. Tal princípio postula que uma vez obtido determinado grau de realização social, esse nível se transforma em uma garantia institucional e em um direito subjetivo. Ou ainda, segundo o jurista português Canotilho, (2003, p. 340) "o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido". Continuando, ele afirma que "sobretudo quando o núcleo essencial se reconduz à garantia do mínimo de existência condigna inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana" (CANOTILHO, 2003, p. 340).

Dessa forma, suponha-se uma situação em que uma lei seja promulgada e venha a eliminar algum direito anteriormente conseguido. Nesse caso a mesma deverá ser tida como inconstitucional, caso não haja a criação de algum esquema compensativo. Não se pode simplesmente extinguir aquele direito, nem há como desconstituir o grau de concretização do mesmo, visto que isso seria como aduz Sarlet (2002), um "golpe contra nossa Lei Fundamental", cabendo impugnação judicial de tal medida.

Porém, surgem alguns problemas de efetivação no que tange a alguns direitos, como os direitos sociais, conceituados por José Afonso da Silva (2004, p. 285-586):

...como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.

Esses direitos, de uma maneira geral, carecem de uma participação estatal maior do que os direitos de primeira dimensão, que não encontram muitos problemas em sua efetivação. Essa necessidade da atuação do Estado acaba, em alguns casos, frustrando sua real efetivação. Cabe a nós tentar impedir que sejam apenas texto de lei, e que se tornem reais, de fato. Uma das possibilidades é permitir que o judiciário, em alguns casos, concretize políticas públicas. Essa alternativa será tratada com mais atenção no próximo capítulo.

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Sobre o autor
Artur Alves Pinho Vieira

Mestre em Direito pela UCP-RJ.<br>Pós graduado em Direito Público e Penal e Processo Penal.<br>Professor de graduação e pós-graduação em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Artur Alves Pinho. O direito social à saúde e atuação do Poder Judiciário no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2926, 6 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19489. Acesso em: 18 nov. 2024.

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