4. Legislação brasileira: aspectos cíveis
A internet estabeleceu um novo paradigma na forma como a informação circula ao redor do mundo. Hoje, temos uma verdadeira explosão da informação em termos de quantidade, rapidez e qualidade à disposição do público. No entanto, a nossa lei que trata sobre os direitos autorais data de 1998, quando a internet ainda engatinhava no Brasil. Em 1998, as redes p2p e a circulação de fonogramas em formato MP3 ainda não haviam se estabelecido na cultura cibernética como acontece hodiernamente. É preciso, portanto, analisar certos conceitos trazidos pela lei n.º 9.610/98 à luz de nossa realidade atual como uma forma de refletir sobre a eficácia desta lei.
4.1 Aplicabilidade da Lei de Direitos Autorais no ciberespaço
Não se discute aqui, obviamente, se tal lei se aplica ao espaço virtual. Em seu artigo 7º a LDA estabelece:
"Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro".
Este artigo abrange claramente a informação digitalizada. Sobre o assunto:
"Por decorrência, todas as obras intelectuais, como livros, músicas, obras de arte, fotos e vídeos, não perdem sua proteção quando digitalizadas. [...] Em outras palavras, a transformação de obras intelectuais de átomos para bits não põe fim aos direitos autorais, pois o suporte é irrelevante" [29].
De fato, como já foi dito anteriormente, a priori a LDA se aplica a todo o conteúdo disponível na web. No entanto, dois questionamentos se colocam: os conceitos utilizados nesta lei ainda abarcam a forma como este conteúdo é disponibilizado na rede? E o segundo e mais perturbador: o direito autoral não conteria em si um paradoxo que o estaria afastando da sua ratio essencial que é fomentar o desenvolvimento cultural e tecnológico? Se até então esta monografia buscou apresentar o problema em toda sua amplitude, a partir de agora esses dois questionamentos nortearão o resto do trabalho.
Um dos primeiros aspectos que se colocam é a adequação dos termos reprodução, distribuição e comunicação ao público, presentes nos artigos 5 e 29 da LDA. Isto porque tal lei concede ao autor a faculdade da utilização pública da obra, e consequentemente do seu uso na rede. Sobre o assunto, diz Ascensão:
As leis nacionais, dominantemente, atribuem ao autor a universalidade das faculdades de utilização pública da obra. Nesse sentido, não só o art. 28 da Lei n. 9.610 atribui ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor, como o art. 29 submete à autorização prévia e expressa do autor essa utilização, por qualquer modalidade. A enumeração que realiza depois é meramente exemplificativa. Segue-se que, esteja ou não aquela faculdade de colocar à disposição em rede expressamente prevista, sempre se compreenderá no exclusivo atribuído ao autor, na medida em que representa uma faculdade de utilização pública da obra [30].
Mais a frente, afirma este autor que os direitos patrimoniais de que trata o art. 29 da LDA compreendem essencialmente três tipos de faculdades: a de reprodução; a de distribuição e a de comunicação ao público. Dessa maneira, seria necessário analisar se a inserção de obra na internet poderia ser considerada reprodução, distribuição ou comunicação ao público para sabermos de que tipo de faculdade se está falando.
Os artigos que tratam do assunto são os seguintes:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:
IV - distribuição - a colocação à disposição do público do original ou cópia de obras literárias, artísticas ou científicas, interpretações ou execuções fixadas e fonogramas, mediante a venda, locação ou qualquer outra forma de transferência de propriedade ou posse;
VI - reprodução - a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido;
V - comunicação ao público - ato mediante o qual a obra é colocada ao alcance do público, por qualquer meio ou procedimento e que não consista na distribuição de exemplares;
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:
I - a reprodução parcial ou integral;
VI - a distribuição, quando não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou exploração da obra;
VIII - a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante:
a) representação, recitação ou declamação;
b) execução musical;
c) emprego de alto-falante ou de sistemas análogos;
d) radiodifusão sonora ou televisiva;
e) captação de transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva;
f) sonorização ambiental;
g) a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo assemelhado;
h) emprego de satélites artificiais;
i) emprego de sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados;
j) exposição de obras de artes plásticas e figurativas;
IX - a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero;
Da leitura destes artigos, Ascensão constata que o ato da colocação da obra na rede à disposição do público não se enquadraria em nenhum dos três conceitos dados pela lei, não se tratando, portanto, nem de distribuição, reprodução ou comunicação ao público.
Não se trataria de reprodução pois, segundo este autor, para que seja considerada reprodução a cópia deve ser realizada por qualquer forma tangível, não sendo o caso do armazenamento eletrônico, que é intangível. Também não se trataria de distribuição pois esta pressupõe a materialização do objeto, uma vez que o art. 5º, inc. IV fala em transferência de propriedade ou posse. Por fim, também não se enquadraria no ato de comunicação ao público pois enquanto a comunicação é dinâmica, a colocação em rede é meramente passiva.
Onde enquadrar então a faculdade do autor de colocar sua obra na rede à disposição do público? Ascensão conclui que este ato está abarcado pelo inciso IX, armazenamento em computador. Percebe-se, portanto, que apesar da LDA resguardar ao autor a faculdade de autorizar ou não a colocação de sua obra na rede, ela o faz através de termos bastante imprecisos. Ao generalizar os atos em "armazenamento em computador", sem diferenciar modalidades específicas, a lei termina por tornar ilícito atos inofensivos aos direitos do autor. Desta forma, de acordo com a lei, é necessária a autorização do autor para o simples ato de transformar um CD adquirido legitimamente em MP3, já que se trata de armazenamento em computador, independentemente do uso que se dê a estes arquivos.
4.2 O problema da cópia privada na Lei de Direitos Autorais e suas implicações
Outro problema da LDA diz respeito à sua restritividade. De tão rígida, a lei 9.610 foi considerada pela ONG Consumers International como a sétima pior do mundo em termos de acesso à educação e à informação [31]. Acontece que no mundo da produção cultural é essencial o aproveitamento de idéias preexistentes, até mesmo como forma de inspiração. No entanto, durante as últimas décadas houve um grande engessamento da cultura decorrente do fato de tudo ser protegido por direitos autorais. A internet, por outro lado vem quebrando esse paradigma.
Mais uma vez se volta à questão:
Se é claro que não é possível permitir o livre e irrestrito uso das obras alheias na elaboração de novas obras, também não é possível vetar de modo absoluto todo e qualquer uso da obra de terceiros, já que esse extremo impediria, de maneira muito mais acentuada e perniciosa, o desenvolvimento social [32].
Portanto, é essencial a existência de obras sem proteção, como matéria prima para a produção de novas obras, sem que isso dependa da autorização de ninguém. Esse é o pensamento de Lessig, o qual denomina essas obras sem proteção, de commons. Em sua definição:
The commons is a resource to which anyone within the relevant community has a right without obtaining the permission of anyone else. The public streets are commons – Einstein’s theory of relativity is a commons – writings in the public domain are a commons. Acess to the resource is not conditioned upon the permission of someone else. [33].
Além dessa carência moderna de bens em domínio público, a nossa lei amplia o problema restringindo de maneira gritante a chamada cópia privada. O assunto é tratado pelo artigo 46, II, da LDA, que determina:
Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:
........................................
II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;
Este aspecto era tratado de maneira diferente nas legislações anteriores. O Código Civil de 1916, em seu artigo 666, VI, permitia uma cópia manuscrita desde que não se destinasse a venda. Já a Lei 5.988/73 previa a possibilidade de cópia de uma obra inteira desde que não houvesse a finalidade de lucro com a cópia obtida.
Todas as legislações de direito autoral ao redor do mundo prevêem, de alguma forma, exceções à proteção ao autor, como uma maneira de garantir a circulação de cultura e informação nos casos em que esse aspecto se sobressai à própria proteção da propriedade intelectual. É disso que trata o referido artigo. Acontece, no entanto, que ele é de aplicação muito restrita.
Primeiramente, porque tal artigo torna praticamente impossível a fiscalização dessa cópia privada. Se esta fiscalização já era um problema em tempos de fitas K7, o que falar de conteúdo disponibilizado na rede? Dessa maneira, a lei coloca a conduta de milhares de pessoas na ilegalidade. Pela análise do artigo percebe-se que não é lícito a conversão de mídias, e aí remete-se mais uma vez ao exemplo da cópia integral de um CD legitimamente adquirido, transformando-o em MP3 para que seja escutado em um ipod.
Um segundo problema advém do fato da lei não fazer quaisquer distinções entre conteúdo raro e fora de circulação, de obras recém publicadas. Sobre o assunto, afirma Sérgio Vieira Branco:
A lei não distingue obras recém publicadas de obras científicas que só existem em bibliotecas e que ainda estão no prazo de proteção autoral. Nesse caso, torna-se a lei extremamente injusta, por não permitir a difusão do conhecimento por meio de cópia integral de obras raras cuja reprodução não acarretasse qualquer prejuízo econômico a seu autor, nem mesmo lucro cessante. [34]
Trazendo a questão para o campo da música, percebe-se que um dos grandes benefícios da internet e especialmente das redes p2p foi a possibilidade das pessoas terem acesso a arquivos raros, já fora de circulação dos catálogos das gravadoras. Muitos se dedicam hoje a passar seu acervo de vinis ou CD’s raros para o MP3 para posteriormente compartilhá-lo na rede. O que do ponto de vista da indústria da música constitui um crime, do ponto de vista do consumidor e dos produtores de cultura trata-se de um ganho enorme para a sociedade. Isto porque se as próprias gravadoras e distribuidoras não vêm lucratividade na distribuição deste material, porque impedir então sua circulação na web?
Um outro problema do artigo ora em análise é o uso do termo "pequenos trechos". Este termo não é caracterizado na lei, pairando sobre ele uma dubiedade que impede sua aplicação. Criou-se uma mítica popular, principalmente nas universidades, de que pequenos trechos seriam "capítulos de livros", ou ainda de 10% a 20% da obra. No entanto, tais afirmações são desprovidas de qualquer fundamento legal. Com relação à música, as redes p2p foram responsáveis por confundir ainda mais o sentido do termo. Isto porque ao fazer o download de uma música, como já foi explicado anteriormente, o usuário recebe vários "pequenos trechos" de uma infinidade de outros usuários, o que a rigor retiraria o caráter ilícito de tal ato.
Sobressai-se, portanto, da análise destes artigos da nossa LDA que apesar da atual lei abarcar o conteúdo digital, ela tem se mostrado ineficaz diante da forma como a circulação de conteúdo cultural se dá na web. Ineficaz tanto pela má adequação dos seus ternos quanto por sua falta de flexibilidade ao abordar questões como a cópia privada integral, o que leva ao seguinte contra-senso: justamente por sua rigidez a lei se tornou praticamente inaplicável.
7. Conclusão
Vive-se hoje um período de mudanças profundas no modo como a cultura é produzida e, principalmente, no modo como ela é consumida. Essa mudança é, sem dúvida alguma, ocasionada pela inserção da internet e suas facilidades, no processo de criação e distribuição da cultura. Como conseqüência, o direito autoral, enquanto proteção aos autores e obras, também foi atingido.
A proteção ao autor, como foi visto, não é matéria antiga e tem em sua origem o surgimento de uma tecnologia: a prensa. Trezentos anos depois, uma nova tecnologia, a internet, tem abalado os alicerces deste ramo do direito civil e esses alicerces foram abalados de tal modo que se percebe hoje claramente uma transição entre o direito autoral tradicional, este produzido e executado até então, e um novo direito autoral que surge, ainda de maneira incipiente. É nesse momento de transição e de revisão das regras sobre o assunto que se faz necessário, mais do que nunca, sua compreensão em toda a plenitude para que se busque através disso, alcançar o objetivo das leis que tratam do assunto. Mas que objetivo é esse?
Nesse artigo verificou-se que, se ambos os sistemas tradicionais do direito autoral, o copyright e o droit d’auteur, criaram normas de proteção ao investimento e ao autor o fizeram como forma de alcançar a ultima ratio do direito autoral: o progresso humano. Desta maneira, as regras que concedem o monopólio aos autores e editores sobre uma obra fazem parte do instrumento jurídico para a concretização dessa ratio, e devem ser analisadas à luz dela.
Acontece que nas últimas décadas houve um incremento substancial das regras do direito autoral chegando a um ponto de engessamento do processo criativo em um mundo de "todos os direitos reservados". E é aí que entra a internet para romper com esse modelo. A internet nos levou a um novo modelo de sociedade, analisado nesta monografia através do título de Sociedade da Informação. Na Sociedade da Informação, como o próprio nome já indica, a informação assume um papel ainda mais importante que antes, principalmente pela maneira como ela circula na internet: livre, sem barreiras, desafiando os sistemas de proteção ao autor. No caso da música, assunto especificamente abordado nesse trabalho, essa circulação foi intensificada pelo surgimento do MP3 e das redes de compartilhamento de arquivo.
Tais aspectos terminaram por evidenciar os paradoxos do direito autoral. Esses paradoxos, entre livre circulação de informação versus proteção ao autor, podem ser constatados em vários aspectos da nossa LDA, bem como na própria gênese do direito do autor. É assim por exemplo no caso da cópia privada integral, que mesmo para obras fora de catálogo não é autorizada. Percebe-se aí o embate entre acesso à cultura e informação e por outro lado a proteção ao autor, ambos direitos assegurados constitucionalmente.
Os paradoxos levaram ainda a dois problemas: falta de eficácia das leis no ciberespaço, bem como a colocação da prática de inúmeros usuários na ilicitude. Isto porque a internet possui mecanismos próprios e que não aceitam muito bem a regulação através de leis externas. Assim, se é claro que sobre a internet devem recair leis, por outro não se deve faze-lo sem analisar seu código próprio, sob o risco dessas leis ficarem em total descompasso com a realidade das práticas na internet, tendo como conseqüência a sua ineficácia.
Conclui-se, portanto, que estamos caminhando, ou pelo menos deveríamos, para um processo de redução do direito do autor. Os maiores afetados têm sido, até então, as grandes gravadoras, daí as reações extremadas que foram apontadas ao longo desta monografia. Sem dúvida alguma, os criadores também foram afetados, mas já é possível perceber um movimento renovador entre esses últimos.
Em todo o mundo, artistas se vêem obrigados a se adequar a uma nova maneira de consumo pelo público. A banda inglesa de rock Radiohead, por exemplo, recentemente lançou um álbum na internet em que se pagava o quanto quisesse para fazer o download desse álbum. Artistas de forró do Nordeste distribuem de graça seus CDs em camelôs, que funcionam como plataforma de contato com seu público alvo. O que os dois casos têm em comum é o fato de usarem as mídias digitais a seu favor, fazendo circular seu trabalho, mudando o foco da remuneração para outros pontos da cadeia de produção, como por exemplo as apresentações ao vivo.
Seria então o fim do direito autoral? Da forma como o concebemos hoje, sim. Mas por mais estranho que pareça, a diminuição da sua esfera de regulabilidade termina assegurando que ele cumpra o papel para o qual foi criado: o desenvolvimento cultural e científico da sociedade. Finalizo este trabalho com uma brilhante constatação de Allan Greenspan, que resume em poucas palavras o maior desafio que o direito autoral vive hoje. Diz o autor:
"Será que estamos conseguindo o equilíbrio certo? A maioria dos participantes do debate sobre propriedade intelectual adota um critério pragmático: A proteção é bastante ampla para estimular a inovação, mas não tão ampla a ponto de poder impedir inovações subseqüentes?" [35]