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Justiça restaurativa: os modelos e as práticas

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Resumo:


  • As práticas restaurativas surgiram como alternativa ao sistema penal tradicional, buscando soluções mais humanizadas e democráticas para conflitos decorrentes de infrações legais e sociais.

  • Modelos de justiça restaurativa incluem mediação entre vítima e ofensor, reuniões de grupo familiar e círculos decisórios, que visam envolver todas as partes afetadas pelo delito em busca de resolução e reparação.

  • Experiências internacionais, como as da Nova Zelândia e Canadá, destacam-se no desenvolvimento e implementação de práticas restaurativas, com a jurisprudência reconhecendo a importância de considerar as circunstâncias individuais e culturais no processo de justiça penal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5 - COMENTÁRIOS ACERCA DE ALGUMAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS.

5.1 – O modelo Neozelandês.

A respeito das práticas restaurativas modernas entendemos ser necessário elaborar alguns pequenos comentáriosacerca das evoluções.

No campo da efetivação legislativa tecemos alguns comentários acerca da evolução Neozelandesa, que foi o primeiro País a adotar em sua legislação as práticas restaurativas.

Neste sentido, o País introduziu o modelo restaurativo na sua legislação em 1989, onde aprovou o Estatuto das Crianças, Jovens e suas Famílias - Children, Young Persons and Their Faimlies Act, elaborado com fundamento nas práticas ancestrais Maoris. Referido estatuto rompeu radicalmente com a legislação anterior e visava responder ao abuso, ao abandono e aos atos infracionais. A responsabilidade primária pelas decisões sobre o que seria feito quando da prática de um ato delitivo envolvendo adolescentes foi estendida às famílias, também chamadas de whanau (famílias/famílias estendidas), que receberiam apoio em seu papel de prestações de serviços e outras formas apropriadas de assistência.

O processo essencial para a tomada de decisões deveria ser a reunião de grupo familiar, que visava incluir todos os envolvidos e os representantes dos órgãos estatais responsáveis (bem-estar infantil para casos de cuidados e proteção e a polícia nos casos de infrações) (Maxwell, 2005).

Como já dito, ao utilizar da Reunião de Grupo Familiar a opção Neozelandesa foi de dotar os órgãos policiais com um poder vinculado de determinação no caso da apuração de um ato delitivo. Nesse sentido, após a constatação pelos Órgãos policiais de que um jovem cometeu a infração, podem-se ter cinco opções disponíveis: usar uma advertência informal (17% (percentual aproximado) dos casos em uma amostra de 2000-2001 (Maxwell, Roberston e Anderson 2002), usar uma advertência escrita (27%), organizar um plano de encaminhamento alternativo (32%), fazer uma indicação direta para um RGF (8%) ou então apresentar a acusação no Tribunal de Jovens, que fará uma indicação para um RGF quando as questões não são negadas ou provadas antes da decisão sobre os resultados (17%) (Maxwell, 2005).

Com o sucesso na diminuição da reincidência e com vista aos resultados de satisfação obtidos em 1995, três esquemas piloto – o Projeto Turnaround (Dar a Volta), TeWhanau Awhina e o Programa de Responsabilidade Comunitária (Community Accountability Programme) – foram patrocinados pela Unidade de Prevenção ao Crime da Nova Zelândia (New Zealand Crime Prevention Unit) em colaboração com a polícia e os Safer Community Councils (Conselhos de Comunidades Mais Seguras) locais para desviar infratores adultos da necessidade de se apresentar em tribunais criminais. Todos os esquemas-piloto tinham elementos da justiça restaurativa.

O Projeto Turnaround é desenvolvido na cidade provinciana da Ilha Sul, chamada Timaru, e compartilha seus escritórios com o Safer Community Council e a Polícia Comunitária (Community Police).

Neste projeto a maioria dos infratores indicados são neozelandeses de origem européia. No primeiro comparecimento do infrator no tribunal, os juízes desviam os casos selecionados para o procedimento de RGF; se o infrator comparece à reunião do painel subseqüente e o plano que foi acordado e é completado, o infrator não comparece mais ao tribunal e a polícia retira suas provas. Os membros do painel no Projeto Turnaround são voluntários selecionados para representar a comunidade e treinados nos princípios da justiça restaurativa. Um policial normalmente está presente na maioria das reuniões do painel e a vítima freqüentemente também está presente. Este processo no Projeto Turnaround pode ser contrastado com um processo plenamente restaurativo onde as decisões são tomadas pelos diretamente afetados pela infração e não por representantes indicados da comunidade. Entretanto, os planos traçados nas reuniões envolvem fazer reparações para a vítima e para a comunidade e fazer arranjos de natureza reintegradora e reabilitadora para o infrator. Este foco na recompensa à vítima e à comunidade é consistente com uma abordagem da justiça restaurativa.

Contudo, o processo sofre criticas no tocante a não obrigatoriedade de presença da vítima na elaboração do plano, o que por vezes mostra, quando não há uma vitima, um procedimento afastado dos ideais restaurativos plenos. Isso porque um dos requisitos dos processos em que há uma mediação de interesses é a participação de ambas as partes.

O Te Whanau Awhina está localizado em um marae (um centro comunitário que incluí uma sala de reuniões e outros edifícios para atividades habituais assim como instalações educacionais e de treinamento em Auckland, a maior cidade da Nova Zelândia, e as reuniões do painel comunitário são feita no wharenui (uma casa de reuniões tradicional). Quase todos os infratores indicados para o Te Whanau Awhina são Maoris (as pessoas nativas da Nova Zelândia). Como no Projeto Turnaround, eles são indicados ao esquema pelo juiz na audiência no tribunal. Entretanto, os infratores que comparecem diante de um painel no Te Whanau Awhina não são necessariamente desviados de outros comparecimentos no tribunal ou de sanções adicionais. (Maxwell, 2005)

A polícia não comparece às reuniões no Te Whanau Awhina, tampouco normalmente o fazem as vítimas diretas, embora, quem conduz as reuniões identifica a família do infrator e a comunidade dos Maoris como vítimas. (Maxwell, 2005) O que mostra mais de forma mais enfática a critica formulada acima acerca do Projeto Turnaround. Não há dúvidas das finalidades restaurativas que o procedimento enseja, contudo não se mostra um projeto puramente restaurativo no modelo de procedimento e finalidades, uma vez que não há, em grande parte das vezes, a participação da vítima para a formulação do acordo.

Dessa forma, apesar da louvável atitude Neozelandesa de introdução na Legislação nacional da prática restaurativa e da opção do modelo a ser seguido, o que se vê na prática é uma forma afastada de aplicação do procedimento e dos princípios de Justiça Restaurativa. Sendo certo, que ao passar dos anos os índices de satisfação acabaram por cair e o índice de reincidência aumentar (Maxwell, 2005), se comparados ao inicio de aplicação, o que acaba por diminuir o brilho dessa forma mais democrática de aplicação da Justiça.

5.2 – O modelo Canadense e o reconhecimento da Suprema Corte (caso Gladue VS the Queen / caso Proulx VS. The Queen).

Outra evolução que merece destaque é a evolução jurisprudencial apresentada pela Suprema Corte Canadense, que sem aplicar uma decisão carregada de um ativismo judicial, reconheceu uma discriminação que ocorria com os aborígenes e decidiu de forma a ocorrer uma inclusão social desses cidadãos mesmo no momento de aplicação da justiça.

O Canadá apresenta os registros da primeira experiência contemporânea com práticas restaurativas dada em 1974, onde dois jovens de Elmira, Ontário, acusados de vandalismo contra 22 propriedades, participaram de encontros presenciais com suas vítimas a fim de chegar a um acordo de indenização. Os dois rapazes visitaram as vítimas e foi negociado o ressarcimento, sendo que, dentro de alguns meses a dívida tinha sido paga. Assim nasceu o movimento de reconciliação entre vítimas e ofensores do Canadá.

No País há a utilização dos modelos de sentencing circles e family-group conferences, assim como na Austrália e Nova Zelândia.

Agregando e sistematizando diversas tendências, o Departamento de Justiça do Ministério da Justiça do Canadá elaborou um documento referencial [17], no qual define que "justiça restaurativa é uma abordagem do crime focada em curar as relações e reparar o dano causado pelo crime aos indivíduos e às comunidades" (Sica, 2006).

Buscando ampliar o suporte institucional aos exitosos programas implementados no país, o documento reconhece que as práticas restaurativas deram contornos a um novo paradigma de justiça criminal, no qual "o crime é considerado como uma ofensa ou um erro praticado contra outra pessoa, ao invés de somente significar a quebra da lei ou uma ofensa contra o Estado" o que impõe uma reação penal diferenciada, não só "preocupada com a determinação de uma resposta adequada ao comportamento criminal, mas também com a reparação" que inclui todas as ações orientadas à tentativa de reparar os danos causados pelo crime, materialmente ou simbolicamente (importa observar que não há qualquer ênfase na reparação material, principalmente nas hipóteses em que a justiça restaurativa é efetivada por meio da mediação) (Sica, 2006).

Nesse sentido, de reconhecimento das diversas situações sociais diferentes para uma aplicação mais democrática de justiça é que se citam duas decisões referentes ao artigo 718.2 do Código Criminal e sua interpretação pela Suprema Corte (casos Gladue v. the Queen e Proulx v. the Queen).

A atuação da Suprema Corte se deu no caso Gladue v. the Queen (também mencionado como R. v. Gladue) [18], quando, julgando a aplicação de princípios restaurativos no momento de sentenciar um caso de homicídio doloso, após tecer longas considerações sobre o problema da superpopulação carcerária no país - tema que é quase um tabu nos tribunais pátrios, não só Canadense, mas de grande parte das Noções modernas, e passa longe das decisões judiciais – e sobre a discriminação de classes marginalizadas pelo sistema de justiça (em especial os aborígines), a Suprema Corte reiterou o entendimento de que todas as soluções penais diversas da prisão devem ser privilegiadas, especialmente aquelas que reconhecem a diversidade cultural e a existência de percepções de justiça variadas em qualquer sociedade. A Suprema Corte percebeu que, como os fatores de formação (backgound factors) são uma das causas da criminalidade e devem ser considerados obrigatoriamente no momento de julgar uma conduta criminosa (Sica, 2006).

Nesse tocante, a decisão se tornou um marco a ser seguido, isso porque reconheceu um importante fator do desenvolvimento criminológico, qual seja, os fatores de formação de um indivíduo são uma das causas que cominam na sua conduta criminosa. O reconhecimento de que os fatores que tornam certo cidadão com um melhor desenvolvimento humano devem ser levados em conta na hora de se sentenciar as suas atitudes. A fome, o baixo nível de escolaridade e educação, uma vida abaixo da linha da miséria, são fatores que alteram o comportamento e a visão de um indivíduo com relação ao conceito social e o convívio em sociedade, sendo necessários tornarem-se fatores para um julgamento mais democrático.

A referida decisão Considerou, assim, que a justiça restaurativa oferece mecanismos mais flexíveis para analisar as circunstâncias individuais do caso sobre a seguinte base: "para este crime, cometido por este ofensor, que causou dano a esta vítima, nesta comunidade, qual a sanção apropriada de acordo com o Código Criminal?" (transcrição conforme o original) [19].

O que se verifica é que houve uma tentativa de se reverter a discriminação por parte da Suprema Corte, sendo certo, que se observou a formação de uma "clientela" para o sistema carcerário e de aplicação da justiça penal.

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Dando conta do avanço do modelo restaurativo sobre o modelo tradicional, a Suprema Corte do Canadá, analisando a aplicação da justiça restaurativa aos princípios legais da finalidade da pena, assim definiu (Sica, 2006):

Justiça restaurativa diz respeito à restauração das partes que foram afetadas pela prática de uma ofensa. O crime, geralmente, afeta pelo menos três partes: a vítima, a comunidade e o ofensor. A abordagem da justiça restaurativa visa remediar os efeitos adversos do crime, de maneira a enfocar as necessidades de todas as partes envolvidas. Isto é realizado, em parte, através da reabilitação do ofensor, reparação em favor da vítima e da comunidade e promoção de um senso de responsabilidade no ofensor e reconhecimento do dano causado à vítima e à comunidade (caso Proulx v. the Queen).

Nessa mesma decisão, a Suprema Corte lançou outras duas considerações relevantes, principalmente por se tratar de conclusões apoiadas em casos concretos: (i) a justiça restaurativa e a justiça punitiva não se excluem, complementam-se e (ii) há evidências empíricas do efeito preventivo das práticas restaurativas, as quais se opõem à falta de evidências de que a prisão tenha algum efeito dissuasório em relação à criminalidade (Sica, 2006).

Pelo exposto, tem-se que o desenvolvimento da jurisprudência Canadense vem mostrando que a inclusão da prática restaurativa é uma forma de se aplicar um sistema penal mais democrático, onde se consideram todos os fatores de formação do individuo antes de lhe ser cominada a pena. Sendo essa forma, um meio de se evitar a formação de uma "clientela penal especializada", aonde a massificação de processos se dá em desfavor de determinada raça ou classe social especifica, devendo a sociedade criar formas alternativas de inclusão dessas pessoas e torná-las melhores cidadãos, ao invés de lhe mostrar somente o rigor do sistema e o punho forte da lei [20].


6 – CONCLUSÃO.

Não restam dúvidas que o aumento da criminalidade e a especialização de alguns grupos criminosos revelaram a fragilidade do nosso atual sistema penal. Algumas grandes falhas vêm mostrando formas cada vez mais problemas na aplicação de uma justiça penal equitativa e democrática, aonde não se observa diversos fatores tais como aqueles de formação do individuo, o aumento da violência, a "crise"de legitimidade do sistema de justiça criminal e a mudança do papel do Estado na solução de conflitos e na promoção de políticas públicas.

A distância que é tratada a vítima e o ofensor fazem com que haja por parte dos mesmos um alto índice de insatisfação e reincidência. A resposta da privação de liberdade de forma indiscriminada não mais ressocializa o individuo tornando-o apto ao convívio social.

A prática de uma forma de punição aonde o indivíduo se torna um cidadão, com responsabilidade e humanidade, aonde há a colocação no lugar daquele que sofre com o ato delitivo (vitima), faz com que a ressocialização seja mais eficiente e correta.

Essa nova forma de aplicação de justiça, uma Justiça Restaurativa, é um tema com evidente margem para crescimento na perspectiva criminológica e penal, até porque tem sua primeira adoção em um sistema legislativo remontado o fim da década de 1980 (Nova Zelândia). O modelo de justiça restaurativa não comporta ainda conceitos fechados e nem uma estrutura rígida, enfatizando o dano sofrido pela vítima e as necessidades dele decorrentes,a responsabilidade do ofensor para que repare o dano, o empoderamento das partes envolvidas, e, sempre que possível a reparação e reafirmação das relações desfiguradas pelo delito.

As evoluções dos modelos e das práticas são uma boa forma de se aprimorar o próprio sistema. Observam-se grandes esforços jurisprudenciais na America do Norte (Canadá e EUA) e em alguns Países Europeus (Bélgica, Alemanha, França, entre outros), também são observados alguns movimentos pioneiros de aplicação complementar à justiça penal com uma prática restaurativa tal como os programas pioneiros do Brasil, da Argentina e dos acima citados. A evolução doutrinária também é notável desde a formação do pensamento de Howard Zehr em "changing lenses"(Zehr, 2008) e de Lode Walgrave (Walgrave, 1999), até as diversas fontes doutrinárias apresentadas tal como Leonardo Sica, Raffaella Pallamolla, Mylène Jaccound, entre tantos outros.

O aprimoramento dessa forma de aplicação restaurativa por parte de uma jurisprudência mais humanizada e de uma doutrina mais especializada culmina em uma justiça penal mais democrática com índices de satisfação dos envolvidos no conflito penal mais favoráveis, e tendo uma retribuição penal mais apropriada. Demonstrou, quando bem aplicado, que os índices de reincidência podem cair drasticamente frente aos índices do sistema penal hodierno. Mostra, de outro lado, uma diminuição de problemas secundários tal como aqueles relacionados à vitimização.

O que é certo é que, seja de forma complementar ou mesmo alternativa, a justiça restaurativa tem se mostrado um excelente componente para a resolução de problemas sociais que afetam cada vez mais a sociedade, e de forma indireta diminuiriam problemas tais como o excesso de presos (super lotação e aumento da criminalidade) e de prisões.

Essa nova forma de regulação social reafirma mais o conceito democrático de Estado, sob o ponto de vista participativo, e determina mais a responsabilidade frente à sociedade, mesmo quando há a quebra de um preceito de convivência social. Sendo uma integração do cidadão infrator, e uma forma para esse cidadão, mais responsável de reparar seus próprios erros.

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Sobre os autores
Daniel Baliza Dias

Advogado, Graduado em Direito pela Centro Universitário de Belo Horizonte - UNI-BH, Mestrando em Direito, na área de Ciências Jurídico-Forenses pela Universidade de Coimbra - PT.

Fabio Antônio Martins

Advogado, Graduado em Direito pela Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU, Pós- Graduando em Direito dos Contratos e do Consumo pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - PT, Mestrando em Direito, na área de Ciências Jurídico-Forenses pela Universidade de Coimbra - PT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Daniel Baliza ; MARTINS, Fabio Antônio. Justiça restaurativa: os modelos e as práticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2939, 19 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19582. Acesso em: 24 dez. 2024.

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