Está sendo chamada de usucapião familiar ou usucapião por abandono do lar um instituto trazido ao Código Civil através de recente produção legislativa. Trata-se da inclusão do artigo 1.240-A pela Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011, que trata do programa do governo federal Minha Casa, Minha Vida, cujo objetivo é, segundo a exposição de motivos da medida provisória que deu origem à referida lei, "garantir o acesso à moradia adequada, a melhoria da qualidade de vida da população de baixa renda e a manutenção do nível de atividade econômica, por meio de incentivos ao setor da construção civil" através da construção de casas que serão vendidas para famílias de baixa renda.
O substrato, portanto, das alterações na lei e do programa governamental é claramente ampliar o acesso à moradia digna a grande parte da população brasileira.
O artigo recém-introduzido no Código Civil prevê uma modalidade de usucapião com requisitos semelhantes aos da usucapião urbana para fins de moradia: posse ininterrupta, sem oposição, de área urbana até 250 metros quadrados, usada para moradia sua ou de sua família, por alguém que não possua outro imóvel urbano ou rural e que não tenha adquirido imóvel através de sentença declaratória de usucapião na mesma modalidade. Difere, no entanto, no requisito tempo que na usucapião familiar é de dois anos (sendo de cinco anos para a usucapião pro moradia) e na característica do imóvel usucapiendo: a propriedade deve ser do casal.
Tal requisito sugere que o objetivo do instituto é permitir que o cônjuge ou companheiro que permaneceu no imóvel possa adquirir seu domínio pleno, depois de transcorridos dois anos do abandono do lar pelo outro consorte, acabando com a situação de condomínio em relação ao imóvel. Essa modalidade de usucapião se restringe ao imóvel pertencente ao casal, devendo ser proposta por um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros em face do outro. Resolve-se, assim, uma pendência comum originada quando do fim de relacionamentos afetivos, principalmente quando os cônjuges perdem o contato um do outro, qual seja, a impossibilidade do possuidor exercer todos os poderes inerentes à propriedade – usar, fruir e, em especial, dispor.
Diversos questionamentos estão surgindo e abrangem tanto questões atinentes ao direito de família quanto a questões processuais, passando pela cogitação da desnecessidade do instituto. Dentre os questionamentos, foram destacados alguns, a seguir expostos.
O elemento culpa, na contramão da tendência jurisprudencial, voltará a ser considerado na dissolução dos relacionamentos afetivos, vez que a usucapião familiar muito se assemelha a uma "punição". Noutras palavras, o cônjuge que abandona o lar, portanto o culpado pela dissolução da sociedade conjugal, poderá sofrer uma sanção patrimonial através da perda da propriedade de sua parte no imóvel do casal, independente da fração do imóvel que lhe pertença.
Ocorrem também indagações sobre o que deverá ser considerado como abandono e em que momento estaria configurado. A doutrina aponta como requisitos caracterizadores do abandono do lar o ato voluntário de saída do domicílio conjugal, aliado à ausência de consentimento do outro cônjuge e o decurso de tempo. Ou seja, devem estar presentes os requisitos subjetivos de voluntariedade do ato e a intenção de não mais retornar para a residência familiar, sem que tenha havido motivo justo para tal.
Hipóteses nas quais um dos cônjuges precisa se afastar para trabalhar e buscar o sustento da família devem, portanto, afastar a incidência do instituto. Por vezes, contudo, ocorre de o cônjuge ausente constituir até mesmo outra família, embora permaneça enviando recursos para a mantença dos filhos por certo período. Há um desgaste natural e gradual fim do relacionamento afetivo sem um marco preciso que configure o abandono. A partir de quando o cônjuge que permaneceu no imóvel poderá pleitear o direito que o novo artigo lhe proporciona? Somente acurada análise do caso concreto poderá responder.
Muitas vezes, deixa-se o lar para preservar integridade física e psicológica de um dos cônjuges ou dos filhos, e em virtude mesmo de decisão judicial. E sendo este um afastamento compulsório, não se pode dizer configurado o abandono.
Embora o novo artigo não faça menção, é de se supor, em virtude do princípio da igualdade e da construção jurisprudencial dos tribunais superiores, que casais homossexuais também possam utilizar do instituto, atendidos os requisitos legais.
Mas duvida surge se todos os casais, independente da classe social, poderão recorrer à usucapião familiar. A dúvida procede em virtude do fato de que o instituto ter sido originado em uma lei que trata de programa governamental para famílias de baixa renda, lei específica, portanto, mas que inseriu em uma lei geral – o Código Civil – o artigo que lhe faz menção. Em apreço ao princípio da igualdade, não parece ser possível restringir a aplicabilidade da usucapião familiar a determinada classe social. Afasta-se, então, do objetivo original da medida provisória.
O que dizer do prazo previsto para esta modalidade de aquisição da propriedade? O requisito tempo para outra modalidade de usucapião que tem a mesma base (moradia urbana) que a ora tratada é de cinco anos, definido na Constituição Federal. Cabe questionar o porquê de tão exíguo prazo para situação que envolve, além dos requisitos objetivos, sentimentos e afetos, o que dificulta ainda mais a tomada de decisões racionais e pragmáticas.
Prevê o parágrafo único do artigo em apreço que o direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez, ou seja, a aquisição por usucapião familiar só poderá beneficiar uma única vez determinada pessoa, ainda que passe por situações de abandono em relacionamentos diversos. Não parece, contudo, haver óbice o fato de o imóvel ter sido usucapido conjuntamente pelo casal anteriormente.
Uma vez que já há a dissolução do vínculo, seja casamento ou união estável, visto que a lei usa as expressões "ex-cônjuge" e "ex-companheiro", a questão pertinente ao imóvel da família poderia ser tratada quando da partilha dos bens, atendendo aos requisitos do regime de bens que rege a união. Neste caso, desnecessária a ação de usucapião, cujo procedimento é reconhecidamente custoso e burocrático.
A fim de proteger seu patrimônio e impedir eventual perda da sua parte do bem, será necessário que o cônjuge, ao decidir sair de casa, acione a justiça, através de uma ação de separação de corpos, expondo seus motivos para o afastamento da residência do casal e defendendo-se de eventual ação de usucapião.
A par de todas essas questões e tantas outras que tão novo instituto certamente há de suscitar, deve-se considerar um possível "efeito colateral": a manutenção, por motivos meramente patrimoniais, de relações afetivas deterioradas. É sabido que apenas com muitos anos de esforço que grande parte da população brasileira consegue adquirir a sonhada casa própria. Toda a família colabora para aquisição do terreno e, lentamente, vai se construindo a casa à medida que a família cresce. O receio de perder para o ex-cônjuge ou ex-companheiro bem tão penosamente conquistado pode protelar a decisão de romper definitivamente uma relação na qual não mais prepondera o afeto, criando um ambiente hostil para o casal e para os filhos, com possibilidade real de violência doméstica.
Até o momento, e como era de se esperar, mais perguntas há que respostas e só a construção doutrinária e jurisprudencial poderá, no futuro, apresentar soluções, embora, desde já, se possa prever que a aplicabilidade da usucapião será por demais restrita.
Nota
01 Artigo 1.240-A do Código Civil, in verbis: Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.