Como atividade administrativa que é, a atuação policial está delimitada pelo princípio da legalidade disposto no artigo 5º, inciso II da nossa Constituição. Por outro lado, a mesma Constituição assevera que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo ns casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei". As hipóteses de prisão em flagrante estão delimitadas pelo Código de Processo Penal em seu artigo 302 e no mesmo Código de Processo Penal consta que a prisão em flagrante se faz obrigatória para as autoridades policiais, tornando-se indisponível a persecução penal daí por diante em razão do princípio da inafastabilidade da Jurisdição (Art. 5º, inciso XXXV da CF). Assim na ocorrência de um crime, a prisão em flagrante se torna um ato administrativo vinculado, pois a autoridade policial não disporia da mínima disponibilidade para efetuar ou não a prisão.
Pois bem, ocorre que a depender do momento consumativo do crime, ou do critério a ser utilizado para fixação de sua consumação haverá ou não a necessidade de prisão em flagrante, o que deixaria certa margem de discricionariedade à autoridade policial.
Vejamos um exemplo:
Seu Zé Higino é um senhor lá pelos seus 70 anos que mora na Zona Rural juntamente com sua filha, que é a dona da fazenda. Lá ambos criaram seus dois netos: Tião, o peão de boiadeiro, e Eugênio, que mora atualmente em São Paulo, e renega insistentemente a vida no campo. Eugênio sempre quis vender as terras em que mora seu avô e sua mãe para que sua vida em São Paulo pudesse ser destinada aos "estudos", todavia, não vinha tendo sucesso na sua empreitada. Ocorre que ele pensou em um subterfúgio, qual seja, fez sua mãe outorgar-lhe uma procuração com poderes para vender as terras. Vale informar apenas que a obtenção dessa assinatura se deu de forma obscura, pois sua mãe é mulher de poucas letras e acabou assinando sem saber do que se tratava.
Pois bem, a fazenda foi vendida e os moradores da propriedade somente ficaram sabendo da venda da fazenda após a consumação do negócio.
Ora, o comprador, inimigo de seu Zé Higino e de Tião, tratou logo de obter uma ordem judicial para se imitir na posse das terras. Mandado em mãos, o oficial de justiça, acompanhado da polícia, foram dar cumprimento ao mandado. Ocorre que seu Zé Higino não quis nem saber e disparou: "Daqui não saio daqui ninguém me tira, quero ver quem vai fazer eu sair". O policial, que conhecia seu Zé Higino, ponderou e disse que estava ali cumprindo uma ordem judicial e que não poderia fazer nada. Independentemente disso, seu Zé Higino reforçou o que dissera: "Não saio", e desafiou a polícia ao dizer novamente "quero ver quem vai me tirar daqui. Se quiserem derrubar a casa, vocês vão ter que derrubar comigo dentro". Diante disso, foi solicitado reforço policial da cidade vizinha. Mesmo com a chegada do reforço policial, seu Zé Higino não arredou o pé, não queria sair. Diante dessa situação, interveio a mãe de Eugênio – aquela que outorgou a procuração – e ponderou que não havia mais nada a fazer, pois a pior traição ocorrera em razão da atitude de Eugênio e que os policias não tinham culpa do que ocorrera. Diante dessa ponderação, seu Zé Higino, em um primeiro momento, manteve-se irredutível, mas logo cedeu, pois não encontrara mais razão para a sua postura. E, apesar de descumprir a ordem judicial, a questão é: Seria necessária a prisão em flagrante do seu Zé Higino?
Levando-se em conta o princípio da legalidade, da obrigatoriedade da prisão em flagrante e do critério atualmente utilizado para a definição do momento consumativo do crime de desobediência, que seria formal, não havia outra alternativa às autoridade policiais se não a prisão em flagrante do seu Zé Higino.
Ora, o delito de desobediência está tipificado o artigo 330 e estabelece: "Desobedecer à ordem legal de funcionário público: pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa".
O referido delito é espécie de crime formal, ou seja, se consuma com a prática de ato que obstaculize o cumprimento da ordem legal sem a necessidade de efetivo descumprimento da ordem judicial.
No caso apresentado, seu Zé Higino praticou atos voltados ao descumprimento do mandado judicial e se recusou, no primeiro momento a dar cumprimento à ordem legal. Como se sabe, o conceito central para o finalismo é o dolo e, como se sabe, no crime de desobediência, o dolo deve traduzir-se em atos inequívocos, que evidenciem, da parte do agente, a intenção deliberada de se contrapor a uma ordem da autoridade pública. E foi isso que aconteceu!
Ademais, como crime formal que é, para a consumação da desobediência basta que o agente se contraponha à ordem de forma dolosa, e a partir daí autorizada estaria a prisão em flagrante. Ora, seu Zé Higino deliberadamente obstaculizou o cumprimento da ordem, todavia, voltou atrás e sucumbiu, não mais interferindo no cumprimento do mandado.
Seu Zé Higino, agiu dolosamente descumprindo a ordem judicial em um primeiro momento, e não há que se levantar nenhuma causa de exclusão de ilicitude. Isso porque a ordem de imissão na posse dada pelo juiz em momento algum configuraria agressão injusta que viesse a legitimar a resistência de seu Zé Higino. Também não há que se falar em estado de necessidade, pois não havia perigo atual. Quanto aos requisitos de culpabilidade há que se falar que seu Zé Higino é imputável, tinha potencial consciência da ilicitude, pois sabia do que tratava a ordem judicial e também de que descumprindo estava agindo de forma contrária ao Direito. Nem dele, naquela situação, era inexigível agir de outra forma. Enfim, ele queria mesmo descumprir a ordem judicial, todavia, voltou atrás.
Ocorre que aos olhos do finalismo, e do princípio da legalidade formal, quando seu Zé Higino resolveu descumprir a ordem judicial, ele deveria ter sido preso em flagrante e indiciado por crime de desobediência. Tal conclusão, todavia, a meu sentir parece extremamente exagerada. Todavia, se a atitude da polícia fosse não efetuar a prisão em flagrante, haveria, por ventura, ofensa ao princípio da legalidade e a possibilidade de haver crime de prevaricação ou a atitude dos policias em não efetuar a prisão seria correta?
Ora, a não prisão em flagrante do seu Zé Higino, correta aos olhos de qualquer pessoa, não encontra fundamento jurídico no finalismo ou mesmo no princípio de legalidade formal e para "preencher tais áreas vazias do mapa doutrinal, num trabalho sistemático, com ajuda de parâmetros político-criminais" é que Claus Roxin propõe seu funcionalismo penal.
Evidentemente que a análise funcionalista começa na tipicidade, e para Roxin as limitações político-criminais à tipicidade estão no princípio da adequação social (de origem welzeniana) e no princípio da insignificância (Roxin, Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, p. 49).Tais princípios, todavia, são inaplicáveis ao caso.
Na análise das causas de exclusão de ilicitude, a análise político-criminal estaria voltada para os princípios que orientam as causas de exclusão de ilicitude.
No caso da legítima defesa estão presentes segundo Roxin os princípios da auto-tutela "todos têm direito de se defender contra agressões proibidas de forma que não sofram dano. Mas também quando houver a possibilidade de escapar da agressão, pode-se exercer a legítima defesa" (Roxin, ob.cit., p. 54). A única exceção segundo o Autor seria no caso de agressão de menores ou deficientes mentais em que a legítima defesa estaria inviabilizada. Outro princípio que orientaria a legítima defesa seria o prevalecimento da ordem jurídica " isto é, a idéia de que o Direito não precisa ceder diante do injusto, o qual incide além das necessidades de auto-proteção e reprime o princípio da ponderação de bens, que tantas vezes tem importância fundamental nas causas de justificação" (Roxin, ob.cit., p. 54). É verdade que ambos princípios encontram sua limitação no princípio da proporcionalidade. E não confundir ponderação de bens com princípio da proporcionalidade, ou seja, pode haver legítima defesa mediante agressão física contra ofensa a honra, desde que atendidos os demais requisitos da excludente, todavia, não se pode repudiar dano insignificante com lesões graves, mesmo que configurada hipótese, em abstrato de legítima defesa.
Já quanto à culpabilidade, a qual Roxin prefere denominar responsabilidade penal, tendo em vista que, segundo o autor: "fosse materialmente mais correto falar em responsabilidade (Verantwortlichkeit) em vez de culpabilidade. Pois a culpabilidade é somente um dos fatores que decidem sobre a responsabilidade penal". Isso porque além dos requisitos classificatórios da culpabilidade na visão do finalismo, a análise da responsabilidade penal vai além, exigindo que a imposição da pena cumpra finalidades político-criminais, quais sejam, prevenção especial e prevenção geral.
Nesse caso, nota-se a diferença basilar entre finalismo e mera legalidade formal que orienta a atuação policial e o funcionalismo penal de Roxin, pois no caso apresentado a imposição da prisão em flagrante do seu Zé Higino é injustificável, segundo os critérios de prevenção geral e especial da pena e do Direito Penal. Isso porque seu Zé Higino reparou o erro cometido logo após a consumação do crime, ou seja, houve um retorno à legalidade. Ora, a imposição da pena nesse caso se tornou totalmente desnecessária, pois antes mesmo da necessidade do uso da força para o cumprimento da ordem judicial, ele voltou atrás. E, não havendo necessidade de pena, não haverá crime e assim não haverá a necessidade da prisão em flagrante, sem que isso venha a ofender o princípio da legalidade que orienta a atividade policial.O caso apresentado reflete, como preleciona Roxin, uma daquelas áreas vazias que o finalismo não preenche sendo que "a fraqueza dos sistemas abstratos (como o finalismo e o próprio princípio da legalidade formal) não está somente em sua posição defensiva contra a política criminal, mas, mais geralmente, no desprezo pelas peculiaridades do caso concreto, no fato de que, em muitos casos, a segurança jurídica seja salva à custa da justiça" (Roxin ob cit. P. 85)". Por isso, deve-se, acatando a sugestão de Roxin, proceder uma análise global do fato, o que de forma alguma está inviabilizada à autoridade policial, pois, "objeto de valoração jurídico-penal não são apenas momentos parciais, mas todas as circunstâncias relevantes do fato global"(Roxin, ob. cit.p. 72). A análise do fato global exige que se leve em consideração o fato de seu Zé Higino ser pessoa do campo, que passou por uma traição familiar que estava levando aquele homem a sair da fazenda em que viveu toda a sua vida e mesmo diante desse cenário melancólico ele voltou atrás e cedeu à ordem judicial.
Então, apesar de cometer um fato típico (considerada a desobediência como crime formal), ilícito e culpável na visão do finalismo, a imposição da pena seria injustificável na visão funcionalista de Roxin e mesmo a prisão em flagrante pela autoridade policial restaria totalmente desnecessária. Ou seja, o que se propõe aqui é que a atuação da autoridade policial não esteja cegamente presa à legalidade formal, deve a autoridade policial fazer também uma apreciação global do fato e não efetuar a prisão em casos em que a própria prisão seja desnecessária, pois a ordem jurídica foi totalmente restabelecida. Nada impede, aliás, tudo recomenda que mesmo na ausência da prisão em flagrante, o fato deva ser registrado oficialmente para que se viabilize o controle administrativo seja pela Corregedoria da Polícia, seja pelo próprio Ministério Público no exercício do controle externo da polícia.Por outro prisma, vale notar também que a própria determinação do crime como formal ou material deve atender funções político-criminais afetas a atuação policial, pois, no caso apresentado, se considerado o crime de desobediência como crime material, não haveria nem mesmo fato típico, pois teria havido a desistência voluntária (art. 15 do Código Penal) e a prisão em flagrante, em um esforço bem menor de argumentação do que foi feita acima, seria totalmente desnecessária.
Ou seja, a determinação do crime como de mera conduta, formal ou material carrega em si mesmo grande valoração político criminal e repercussões bastante drásticas na atuação policial.
E como última ponderação, vale dizer que, como toda norma jurídica, a definição do flagrante e do momento consumativo do crime, carregam em sim valores de sua época. Basta lembrar que tanto o Código Penal como o Código Processual Penal foram editados em época ditadorial, e com isso, carregavam na sua redação original a idéia de total prevalência da segurança pública em desfavor da liberdade individual e da extrema necessidade de controle social pela via legislativa e pela atuação policial. Basta olhar também nosso Código Penal e os manuais que tratam do momento consumativo dos crimes para se constatar a grande existência de crimes de mera conduta e formais, ou seja, definindo o crime como formal ou de mera conduta, a possibilidade de atuação policial está autorizada bem antes da existência de efetivo prejuízo à vítima. Tal leitura, evidentemente, carrega as idéias da ditadura e tal visão não deve prevalecer diante da ordem constitucional de 1988 e, sob o fundamento da dignidade da pessoa humana, muitos conceitos devem ser revistos e certamente os efeitos dessa revisão terão reflexos inevitáveis na atuação policial, qual deve estar mais alinhada a apreciação global do fato do que presa cegamente à legalidade meramente formal.
Notas de rodapé
Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.> Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Art. 15 - O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)